terça-feira, 30 de setembro de 2008


Graça Martins
Blood Roses, acrílico e colagem s/tela, 2001











Graça Martins
Bruscamente no Verão Passado, acrílico s/tela, 1999

Qualquer representação gráfica da realidade, precisa nos seus pormenores, proporcionada e particularizada em cada uma das suas partes, é sempre uma interpretação pessoal, uma forma de explicar essa realidade

domingo, 28 de setembro de 2008


Foto de Lucy and Bart

DOSTOIEVSKI

a voz subterrânea

(...)

Olhai bem! Hoje em dia nem sequer sabemos onde se esconde a vida, o que é, como se chama. Se nos abandonarem, se nos tirarem os livros, ficaremos imediatamente desasados, confundimos tudo, não sabemos para onde ir, como comportar-nos, o que devemos amar, o que devemos odiar, o que devemos respeitar, o que devemos desprezar. Até nos é penoso ser homens, homens possuindo corpo e sangue próprios; temos vergonha disso, consideramos isso um opróbio e sonhamos vir a ser uma espécie de seres abstractos, universais. Nós somos nados-mortos, e já há muito que não nascemos de pais vivos, o que sobretudo nos agrada; gostamos disso. Em breve encontraremos um meio de nascer directamente de uma ideia.

Mas basta! Já não quero fazer ouvir mais a minha «voz subterrânea».

(...)

Trad. Célia Henriques/Vitor Silva Tavares, edição & etc, 1989, Lisboa

sábado, 27 de setembro de 2008

« A serenidade não é feita nem de troça nem de narcisismo, é conhecimento supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à borda dos grandes fundos e de todos os abismos.»

Hermann Hesse

COLECÇÃO BOUDICCA 2008















Fragmento de Uma paixão inocente de

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

Servia-me chá de verbena e laranja. Dizia-me:« A beleza não é uma questão de estética, é uma questão de metafísica» Sei que com esta frase queria, de facto, dizer-me não ser a beleza uma transformação empírica aberta a toda e qualquer possibilidade. Havia qualquer coisa que enviava para uma ideia definitiva do belo e onde, o seu caminho, o seu olhar procurava o que poderia haver de imutável no ser imutável da arte.

-«Deixe lá, importa pouco o que digo. Venha antes até esta janela para ver o movimento do porto. Mas deste lado pouco podemos aperceber. Os barcos estão acostados e envolve-os o silêncio, que é o sentimento da sua superioridade.»

E nos barcos eu apenas via de muito longe em longe passar um cão de marinheiro; fora as muitas gaivotas que quebravam, com o seu traço, o exaltado azul do céu e o reflexo verde das águas do rio. A luz do meio-dia crescia sobre os ombros, dominava desde aquela janela a solar realidade e a bem estranha criatura que eu acabara de conhecer. De conhecer?

De conhecer, como? se em todos os seus movimentos os traços se decompunham e o que mantivera, o que mantinha aquele seu corpo era a estreita fórmula da beleza. E o repouso que fôra o sustentáculo dessa mesma beleza - e ainda o era -, mostrava-se como a calma do próprio rio, um mar de sua condição. O repouso permitia a sua forma humana e o rosto exibia o espelho do seu espírito, no qual a unidade e a indiferença transpareciam o mais verdadeiro.

Posso dizer que naquela criatura dominando o rio e o porto e a cidade baixa e ribeirinha; aquela criatura que me mostrava a sua janela, inventara as suas regras e o caos do seu querer. O rosto era o repouso e a calma; mas o seu rosto também seria o espelho de contrastes violentos e de inabituais acções.

Voltou a servir-me chá. Fê-lo com a convicção de quem está na posse de uma ciência da vida: suspendeu o coador sobre a minha chávena para que nenhuma folha caísse; deixou o perfume da verbena e da laranja ganhar um reflexo poético. E nem sei porque digo «um reflexo poético» ao tentar narrar uma tão simples vista de janela, ao colocar uma chávena de chá sobre um pires marcado por um fugitivo vinco amarelo. (...)

Livros Cotovia, Lisboa, 1989

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Foto de DAVID HAMILTON


Foto de BOUDICCA

Três Poemas de GARCIA LORCA

Traduzidos por Eugénio de Andrade

GAZEL DO MENINO MORTO

Todas as tardes em Granada
todas as tardes morre um menino.
Todas as tardes a água se senta
a conversar com os seus amigos.

Os mortos levam asas de musgo.
O vento enevoado e o vento limpo
são dois faisões voando pelas torres,
e o dia , esse é um rapaz ferido.

Não ficava no ar nem fibra de calhandra
quando nos encontrámos nas grutas do vinho.
Não ficava na terra migalha de nuvens
quando tu te afogavas no rio.

Um gigante de água caiu sobre os montes
e o vale foi rodando com cães e com lírios.
Teu corpo, com a sombra violeta de meus dedos,
era, morto na margem, um arcanjo de frio.
GAZEL DO AMOR DESESPERADO

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Porém eu irei,
embora um sol de lacraus me devore a fronte.

Porém tu virás
com a lingua queimada por chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Porém eu irei,
entregando aos sapos meu cravo mordido.

Porém tu virás
pelas turvas cloacas da obscuridade.

O dia e a noite não querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
GAZEL DA LEMBRANÇA DE AMOR

Não me leves a lembrança.
Deixa-ma só no meu peito,

frágil cerejeira branca
no martírio de janeiro.

Só me separa dos mortos
um muro de pesadelos.

Dou mágoas de lírio fresco
a um coração de gesso.

Meus olhos, como dois cães,
a noite toda no horto.

A noite inteira, correndo
por uns frutos de veneno.

Algumas vezes o vento
é uma tulipa de medo,

é uma tulipa doente,
a madrugada de inverno.

Um muro de pesadelos
me separa dos defuntos.

A névoa cobre em silêncio
teu corpo, vale cinzento.

No arco do nosso encontro
a cicuta cresce agora.

Deixa-me a tua lembrança,
deixa-me só no meu peito.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O POETA RIMBAUD


Foto de Graça Martins
A Traição do Eu de ARNO GRUEN

(...)A identificação com o poder enquanto meio da nossa redenção vincula-nos à lógica dos opressores. Os nossos defeitos são exactamente os mesmos dos nossos pais e da sociedade que combatemos: negamos as verdadeiras necessidades, temos medo do nosso Eu genuíno. E assim continuamos ligados ao inimigo. Henry Miller (1956) escreveu no seu ensaio sobre a grandeza e o falhanço de Rimbaud que a liberdade a que Rimbaud aspirou passou pela afirmação desenfreada do seu Ego. Tal auto-afirmação desmedida contém em si o reflexo deformado daquilo a que uma pessoa se viu exposta quando as suas próprias aspirações à autonomia foram inviabilizadas por um poder exercido sem escrúpulos. Os direitos e a individualidade de outros seres humanos são simplesmente ignorados mas, desta feita, em nome da liberdade. Segundo Henry Miller, «Isso não é liberdade nem nunca há-de ajudar-nos a encontrar a ligação, a comunhão com a Humanidade.» E a razão dessas pessoas não a encontrarem é porque a capacidade de sentir da pessoa foi lesada. Rimbaud foi filho de uma mãe cruel e fria que não quis aceitar a sua personalidade. Ela temeu a sua vitalidade e o seu calor (enquanto foi criança); e ele, embora quisesse « ver, sentir, esgotar, descobrir e exprimir tudo», no final de contas só desejava ser reconhecido por ela. Apesar da sua rebelião acabou por render-se à frieza da mãe e ao medo que ela tinha da sua vitalidade.
Aí é que está o verdadeiro trauma da nossa geração que procura algo de melhor, mais humano, mas não sabe que a própria humanidade ferida é um obstáculo à realização de tal desígnio. Por isso, Miller prossegue:« Tudo isto, para mim, só tem uma interpretação possível - que a pessoa ainda está ligada à mãe. Toda essa rebelião foi apenas pó atirado aos olhos, representou a tentativa desesperada de ocultar tal servidão». Se nos encontrarmos divididos das nossas necessidades reais, tudo tem de transformar-se numa luta. Tememos tudo que nos possa ligar ao próximo. E assim pretendemos algo daqueles que nada nos podem dar. (...)
Arno Gruen, psicanalista alemão, A Traição do Eu, Assírio & Alvim, Lisboa

domingo, 21 de setembro de 2008




A Qualidade dos Sentimentos de WILLY PASINI

Gerações inteiras de jovens cresceram na convicção de que wilhelm Reich tinha razão: para este autor, tal como para eles, a revolução sexual tinha de ser o preâmbulo da revolução política, e a superação da normalidade sexual defendida pela classe burguesa era apenas o ponto de partida de uma nova ordem social.Os acontecimentos que se seguiram a Maio de 68 contradisseram definitivamente o mestre: à desordem sexual dos últimos vinte anos seguiu-se a ordem social, pelo menos na Europa Ocidental. Porque falta demonstrar ainda que teria acontecido do mesmo modo no Leste europeu não ainda liberto ou no Islão.(...)Em vez da revolução, a libertação sexual trouxe consigo a banalização da sexualidade. Da queda dos tabus derivou uma mudança de estado no fenómeno da transgressão: de fantasia erótica a comportamento compartilhado pela maioria da população. Ao ponto de dois estudiosos como Bruckner e Finkielkraut afirmarem que pôr em acção a perversão é a última esperança que resta para obviar a banalidade de uma sexualidade agora demasiado fácil. O fantasma erótico é deste modo substituído pela experiência, mas sem que isso o fixe no estádio de estrutura perversa. (....)


Dois fragmentos do livro o nosso reino de valter hugo mãe

era o homem mais triste do mundo, como numa lenda, diziam dele as pessoas da terra, impressionadas com a sua expressão e com o modo como partia as pedras na cabeça e abria bichos com os dentes tão caninos de fome.

era o homem mais triste do mundo, diziam , não faz mal a ninguém, mete dó, tinha olhos de precipício como se vazios para onde as pessoas e as coisas caíam em desamparo. mas era impossível não os fitarmos, fascinados por eles como ficávamos, e era com eles que iluminava o caminho à noite, garantiam alguns, quando se embrenhava pelo mato em direção à sua cabana secreta, ou cova, toca o que pudesse haver para lá do emaranhado desconhecido de onde vinha . era com os olhos, como lanternas, que competia com os bichos da noite, perplexos com tal ser.(...)

(...)desde há semanas que não me confessava ao padre, que estava absolutamennte possesso pela falta. exigi-o, se me obrigarem a confessar-me ao padre salto do rochedo e morro. salto o lado das as pedras, bato com a cabeça e morro. estive dois dias a silêncio, pão e água, por pecar o pecado da desobediência. mas não estava a brincar, era a minha força toda, não falarei com o padre filipe que me bate, é mau, precisa de ser salvo, não pode salvar. assim. passei o verão a frequentar a missa e a subir mais cedo à merciaria para o bolo de sempre, por vezes, a medo, ouvia o canto final do senhor hegarty já ao pé da porta, como o avanço de uma lebre na corrida. (...)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

MULHERES ARTISTAS NOS SÉCULOS XX E XXI

Cindy Sherman

Marlene Dumas

Isabel de Sá






Cindy Sherman

fotografia, 2006


Cindy Sherman

Cindy Sherman
fotografia, anos 90

Cindy Sherman - fotografia, anos 90

Cindy Shermam - fotografia, 1986

Cindy Sherman - fotografia, anos 90

Cindy Sherman - fotografia, anos 90

Marlene Dumas
óleo s/tela, 1988

Marlene Dumas
óleo s/tela, 1994

Marlene Dumas
óleo s/tela, 1994

Marlene Dumas - óleo s/tela, 1987

Marlene Dumas - óleo s/papel, 1997

Marlene Dumas - óleo s/tela, 1997
O UNICÓRNIO


Isabel de Sá - acrílico e colagem s/tela, 2004
FALO FERIDO


Isabel de Sá - acrílico e colagem s/tela, 2004
O ROSTO DO MUNDO


Isabel de Sá - acrílico e colagem s/tela, 2004
Tudo Começou Em 1974












Isabel de Sá - acrílico e colagem s/tela, 2003



Poema de JOÃO DAMASCENO

NOVA CARTA AOS PSIQUIATRAS

Disseram que ia ser confortável, que ia ficar tranquilo

Deram-me os vossos comprimidos:
Quero masturbar-me e não posso

Onde está a minha solidão? Quero a minha solidão
Onde está a minha angústia? Quero a minha angústia
Onde está a minha dor? Quero a minha dor

Deram-me os vossos comprimidos:

Engordei e fiquei lustroso como um gato a quem tivessem cortado os tomates


SIÃO, org. Al Berto, Paulo da Costa Domingos, Rui Baião, Lisboa, 1987
Esculturas de LOUISE BOURGEOIS



terça-feira, 16 de setembro de 2008

Poema de PAULO DA COSTA DOMINGOS

Vivo no bulício da cidade como num enclave e conjuro ao diálogo mortos notáveis, para o que, nem havendo entendimento ou apreço, escrevo. Moderado na escavação das ruínas... que quem muito viveu, gozou e depois partiu não está agora para versos e grandes conversas. Uma dobra que ficou mais vincada na folha, sombreando triângulos no papel, a dois tons, solta frases, interrompidas, e ao desdobrá-la desdobramo-las - o sério na galhofa, a mofa mitigando a dor. Que riam de nós à vontade! Se já ninguém chega à nascente que não seja pela torneira, ou à terra lavrada que não dê com insecticida, e ao grão que não venha em lata, e do leite nem se fala: só vaporizado - então entrego-me à passagem desses anjos ( os últimos), sobrevoo vigilante o covil do amor.
NAS ALTURAS, Frenesi, Lisboa 2006