terça-feira, 28 de outubro de 2008

HÁ POR TODO O LADO MÁQUINAS PRODUTORAS OU DESEJANTES, MÁQUINAS ESQUIZOFRÉNICAS
máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões.


GILLES DELEUZE
FÉLIX GUATTARI

O anti-édipo
CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA

AS MÁQUINAS DESEJANTES
Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto (*). O que há por toda a parte são mas é máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-orgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina de produzir leite e a boca uma máquina que se liga com ela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (ataque de asma). é assim que todos somos «bricoleurs» (**), cada um com as suas pequenas máquinas. Uma máquina-orgão para uma máquina-energia, e sempre fluxos e cortes. O presidente Schreber tem raios de sol no cu. Ânus solar. E podem ter a certeza que isto funciona. O presidente Schreber sente qualquer coisa, produz alguma coisa, e é capaz de o teorizar. Algo se produz: efeitos de máquinas e não metáforas.
O passeio do esquizofrénico: é um modelo muito melhor que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o exterior. Por exemplo, o passeio de Lenz reconstituído por Büchner. É algo de muito diferente dos momentos em que Lenz (1) está em casa do seu bom pastor que o obriga a tomar uma posição social em relação ao Deus da religião, em relação ao pai e à mãe. Nas montanhas, pelo contrário, sob a neve, ele está com outros deuses ou sem deus nenhum, sem família, sem pai nem mãe, com a natureza. «Que quer o meu pai? É impossível que ele me possa dar algo melhor. Deixem-me em paz». Tudo é máquina. Máquinas celestes, as estrelas ou o arco-íris, máquinas alpestres que se ligam com as do corpo. Barulho ininterrupto de máquinas. «Pensava que devia ser um sentimento de uma infinita beatitude o ser tocado pela vida profunda de qualquer forma, ter uma alma para as pedras, os metais, a água e as plantas, acolher em si todos os objectos da natureza, sonhadoramente, como as flores absorvem o ar com o crescimento e o minguar da lua».(...) Não vive a natureza como natureza, mas como processo de produção. Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro, e liga as máquinas. Há por todo o lado máquinas produtoras ou desejantes, máquinas esquizofrénicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, já nada querem dizer.
Continuação do passeio do esquizofrénico, quando as personagens de Beckett decidem sair. é preciso ver, em primeiro lugar, como o seu percurso variado é já uma máquina minuciosa. E depois, a bicicleta: que relação há entre a máquina bicicleta-buzina e a máquina mãe-ânus?«Que descanso falar de bicicletas e de buzinas. Infelizmente não é disto que se trata mas daquela que me deu à luz, pelo buraco do cu, se não me engano»(...)
(*) Ça no original. Em francês é possível fazer um jogo polissémico entre o Ça (isto) e o Ça freudiano (id), jogo que é impossível manter em português.
(**)Bricolage, é uma palavra intraduzível em português que designa o aproveitamento de coisas usadas, partidas, ou cuja utilização se modifica adoptando-as a outras funções.
(1) Conforme o texto de Büchner, Lenz, tradução francesa Ed. Fontaine
Gilles Deleuze - Filósofo
Félix Guattari - Psicanalista
O anti-édipo, Capitalismo e Esquizofrenia, edições Assírio & Alvim, 1972, Lisboa
Tradução de : Joana Morais Varela e de: Manuel Maria Carrilho


A Livraria Poetria realiza uma sessão de poesia intitulada "A Arte de Jorge de Sena" no próximo dia 30 pelas 21,30, no Café Progresso, Porto.
Jorge de Sena, figura maior da literatura portuguesa, será revisitado através da sua imensa obra. Mas o Porto, as suas ruas e os seus plátanos também serão aqui convocados e uma vez mais tocados pela graça e a primordial voz da poesia.
Participação e testemunho de António Rebordão Navarro e Sérgio Lopes, sobrinho do poeta.