domingo, 29 de novembro de 2009

Poema de Rosa Alice Branco

MAPA ANATÓMICO

a Luís Miguel Nava

Para António Damásio estou debruçada à janela
do meu corpo. Posso contemplar os objectos da paisagem:
coração, pulmões, intestinos, músculos.
As vísceras são o meu cenário como um poema
de Nava e há sentimentos que me unem a cada uma
e a todas elas quando uma dor explode nas entranhas,
mas para Damásio sou apenas um espectador solidário
do outro lado do vidro. Nava sabia como um cenário
se despedaça entre as rochas, como a pele é a raíz
e a flor do sofrimento.

Desde a descoberta da perspectiva que estamos à janela
com um olho bovinamente parado. Dizem-me agora
que contemplamos um pátio interior, um rim? Não sentem
que o desespero tem uma face oculta para o sentirmos
e outra iluminada por um sol afundado no manto
dos intestinos? O cérebro de Damásio continua cativo
do teatro do seu corpo e eu devia ter metido citações.
Aprendi muito com ele, mas foi Nava quem me disse
que todos os caminhos vão dar à pele.

Soletrar o dia, obra poética, Quasi Edições, 2002

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