domingo, 19 de julho de 2009







ARNO GRUEN - A TRAIÇÃO DO EU - O Medo da Autonomia no Homem e na Mulher

(...)George Orwell descreveu, num dos seus ensaios, o cerne daquela experiência que dá origem à sensação de desamparo e desespero numa criança. Numa passagem autobiográfica, o reitor do seu colégio interno acaba de bater no jovem Orwell.
«Nem mesmo agora estava eu a chorar por causa da dor. A segunda carga, então,já nem tinha doído muito. O medo e a vergonha pareciam ter-me anestesiado. Chorei, em parte porque senti que tal era esperado, em parte por arrependimento sincero, mas em parte, também, por uma melancolia mais profunda que é própria da infância e não é fácil de transmitir: Uma sensação de solidão sem consolo e impotência, de estar aprisionado não só num mundo adverso mas num mundo do bem e do mal e onde as regras estavam feitas de uma maneira que, na prática, me fosse impossível cumpri-las.» (Such, such were the joys, 1968).
Este tipo de desespero leva a que o nosso interior se nos torne estranho, independentemente da nossa personalidade se desenvolver no sentido da rebelião ou no da adaptação às «normas». A partir daí seremos fieis a formas exteriores, quer estas correspondam à ideologia oficial da sociedade ou a outra que se lhe oponha. É por sermos alienados do nosso mundo interior - o que faz que este nos pareça disforme, anárquico e, por conseguinte, ameaçador - que, literalmente, nos agarramos às formas exteriores na tentativa de conservarmos algum sentido de identidade.
Franz Kafka descreve este fútil acto do agarrar-se a exterioridades com muita sensibilidade. No seu romance O Processo, por exemplo, José K. esforça-se por provar quem ele é - mediante a sua licença de bicicleta! Os personagens de Kafka sofrem por terem em vão acreditado numa inadequada identidade exterior. Esperam encontrar a sua unidade pela adesão à lei «paterna» para, assim, se salvaguardarem da desintegração decorrente da sua aparente disformidade; mas também esse esforço é em vão. O contrário já acontece com os personagens dos romances de B. Traven, como por exemplo Koslowski na Nau dos Mortos, que luta até ao fim contra qualquer tentativa de lhe imporem uma determinada identidade.
No entanto, a diferença entre a rebelião e o conformismo é fundamental. Só a rebelião torna a autenticidade possível, mas ela tem de conduzir para um sentido de comunhão com os nossos semelhantes. Se ela se dirigir apenas contra algo, a rebelião torna-se um fim em si e conduz ao culto da própria importância. Neste caso, a procura de um Eu autêntico é rejeitada, sendo o resultado final de tal desenvolvimento um Eu sem coração. O perigo aqui, já não vem do exterior. Antes consiste no medo da eventualidade aterradora da solidão, assim como o do caos e da loucura.
Se a rebelião dirigida contra o mundo exterior não for acompanhada de uma transformação interior, o desenvolvimento acaba por ser idêntico ao do conformista. Já que Henry Miller, ele próprio um grande rebelde, nos informa sobre isto tão concludentemente, no seu referido ensaio sobre o falhanço de Rimbaud enquanto rebelde (1956), gostaria «, aqui, de voltar a ele.
A vida de Rimbaud, curta mas fervorosa - acabou a sua maior obra, Une saison en Enfer, aos dezoito anos - é a história de um homem que se revoltou contra o conformismo e o imobilismo e que «após conseguir, à custa de muito esforço, ampliar a sua liberdade e a sua consciência, arrepiou caminho em prol da segurança monetária.» Partindo de uma tentativa pouco habitual de examinar as «maravilhas da terra», este homem separou-se em jovem de amigos e familiares para experimentar a vida em toda a sua plenitude. Mas ele, que já enquanto jovem considerara «a desordem da sua mente sagrada», de repente renunciou completamente ao desafio único que a sua vida tinha sido. A sua procura de autenticidade encalhou, ele vacilou e, a partir daí, prosseguiu na direcção oposta. Transformou-se no inimigo que odiara.
Segundo Miller, Rimbaud, em jovem , fugiu do ambiente insuportavelmente provinciano da casa dos pais. Mais tarde, quando, por horror ou por medo da loucura, se colocou nas mãos que governam o mundo, ele pôs-se a negociar com ouro, espingardas e escravos. Segundo Miller, «desembaraçou-se do seu tesouro como se fosse esse o lastro
«Na Noite no Inferno», quando compreende que é escravo do seu baptismo, ele exclama: "Ó pais que causastes a minha infelicidade e a vossa própria." Renuncia a tudo que o ligue à época ou ao país em que nasceu. "Estou preparado para a perfeição," diz ele. E esteve, de uma certa forma. Tinha preparado a própria iniciação, tinha sobrevivido à terrível provação para depois voltar a perder-se na noite de que nascera. Tinha percebido que havia um degrau para além da arte e tinha transposto o seu limiar para, a seguir, retirar-se em pânico ou com medo da loucura. [...]Temos de chegar aos limites das nossas forças, aprender que somos escravos - de uma forma ou de outra -, para desejarmos a libertação. A vontade perversa, negativa, fomentada pelos nossos pais, tem de ser ultrapassada para poder tornar-se positiva e integrada com o coração e a mente. O pai (em todos os sentidos) tem de ser destronado para que o filho possa reinar [...] Ele é o preceptor severo, a letra morta da lei, o sinal Proibido. Fazemos trinta por uma linha, entramos em amok, cheios de uma falsa sensação de poder e de um orgulho idiota. Depois vamo-nos abaixo e o Eu que não é Eu desiste. Mas Rimbaud não se foi abaixo. Não destrona o pai, mas identifica-se com ele. [...] Altera a sua identidade tão profundamente que não se reconheceria se se encontrasse na rua. Talvez seja esse o último esforço desesperado para darmos a volta à loucura - tornamo-nos tão eximiamente saudáveis que nem nós saberemos que somos loucos.»
No fim da sua vida, «quando, na quinta da sua mãe avarenta, se arrastava dolorosamente para o seu fim», ralhou com alguém que tentou colocar-lhe algumas perguntas sobre a poesia da sua juventude:«Por favor, deixe-me em paz com isso! Toda essa merda acabou.» (Rimbaud, 1979)
Foi como se tentasse apagar os odiados contornos sobre a loucura da saúde mental - a qual se torna o refúgio do mais profundo ódio à vida - descreve a essência do que se passa num Eu sem autonomia. Independentemente de termos sido rebeldes ou conformistas, o que está em jogo, desde o princípio, é o ódio de si próprio que caracteriza todo o indivíduo que abandonou o seu Eu. (...)
Arno Gruen, A Traição do Eu, Assírio&Alvim, 1996, Lisboa

A vida não é lógica nem ordenada. O que tem vida é caótico

ARNO GRUEN