domingo, 29 de novembro de 2009

A nostalgia de uma partida...















Julião Sarmento

Gare do Oriente - Lisboa - Construida em 1998 pelo arquitecto espanhol Santiago Calatrava

















Poema de João Borges

HÁ UM LUGAR CHAMADO MEDO

UM

Há um lugar chamado medo

A cidade, ao longe o ruído.
Ficámos sózinhos, peças de xadrez
na mancha escura do silêncio,
de um lado para o outro,
à espera.

Não me disseram que o tempo passaria
e tu também. A morte repetida
como se fosse a primeira vez.
No longo e doloroso abraço,
o sabor amargo da vida
tornou-se lei

DOIS

O sangue risca as páginas,
dizes que não queres nada.

As tuas mãos, na pressa
de quem não tem tempo a perder,
tomaram-me conta do corpo.

Depois, atiraste as cinzas
para a rua. Perderam-se na chuva.

TRÊS

À hora em que a chuva
faz das estradas espelho
e a cidade se duplica,
dentro de ti encontro
o calor que me salva da morte
e me prende outra vez ao teu corpo.

QUATRO

Por vezes não sei dizer-te
que sou o ar e as paredes
da casa onde te refugias.

Arremessei a minha vida
num abraço queimado pelo medo.
Procuro um lugar onde o tempo
perdoe a solidão.

Esperei pela noite na alameda,
a tua casa atrás de mim,
sombra a crescer de rua em rua.
a sublimar o medo.

CINCO

Em vão procurei o sabor da terra
para não morrer.
O teu amor é ácido.

Destroçado, assim me deito
na madrugada cheia de luz.

Não te lembras do café quase vazio
e nós, no lado escuro da vida?

SEIS

Na memória apaga-se o teu rosto
e o coração engole o fogo
que me consome.

Se eu corresse pela praia
e a terra se movesse
e eu fosse sugado
para o interior da vida
no seu furioso silêncio,
finalmente só e íntegro,
encontrar-me-ia.


cràse, revista de literatura emergente, nº0
Novembro de 2009, Lisboa

Poema de Rosa Alice Branco

MAPA ANATÓMICO

a Luís Miguel Nava

Para António Damásio estou debruçada à janela
do meu corpo. Posso contemplar os objectos da paisagem:
coração, pulmões, intestinos, músculos.
As vísceras são o meu cenário como um poema
de Nava e há sentimentos que me unem a cada uma
e a todas elas quando uma dor explode nas entranhas,
mas para Damásio sou apenas um espectador solidário
do outro lado do vidro. Nava sabia como um cenário
se despedaça entre as rochas, como a pele é a raíz
e a flor do sofrimento.

Desde a descoberta da perspectiva que estamos à janela
com um olho bovinamente parado. Dizem-me agora
que contemplamos um pátio interior, um rim? Não sentem
que o desespero tem uma face oculta para o sentirmos
e outra iluminada por um sol afundado no manto
dos intestinos? O cérebro de Damásio continua cativo
do teatro do seu corpo e eu devia ter metido citações.
Aprendi muito com ele, mas foi Nava quem me disse
que todos os caminhos vão dar à pele.

Soletrar o dia, obra poética, Quasi Edições, 2002