quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

POEMA DE MANUEL DE FREITAS

DEVE SER A MORTE

Finalement, finalement
Il nous fallut bien du talent
Pour être vieux sans être adultes
JACQUES BREL


O desespero - percebes finalmente -
era uma energia, uma espécie de caminho
para quem não tinha passos. Os amigos
(se assim lhes podias chamar) encontravam-se
à volta de uma garrafa e injuriavam toda a noite
o amor de que em breve se fariam escravos.


Falavam de quase nada, os olhos parados
na música, o corpo disponível
para charros, risos e derrotas. Essas ruas,
sabes, nunca mais foram assim
o rastilho da descrença e o motim da desrazão.
Coisas de facto imberbes - navalhas
que fingiam a dolorosa perfeição da indiferença.
Pouco importa. Outros sinais cresceram,
fazendo desses rostos uma porta
fechada onde nem pela memória
esperas o milagre de encontrar alguém.
Deve ser a morte, o fim, isso mesmo
que julgavas esconjurar quando punhas flores
no gargalo verde e vigiado das garrafas.

A luz dos últimos bares tomba agora
sobre um corpo esquivo, mais sozinho,
que nem sequer nestas palavras acredita.


[SIC],Poesia inédita portuguesa. Assírio & Alvim