domingo, 20 de junho de 2010

Fragmento do discurso da Ministra da Cultura GABRIELA CANAVILHAS durante a cerimónia fúnebre de JOSÉ SARAMAGO

Era uma vez um rei que fez promessas de levantar um convento em Mafra, um soldado maneta, uma mulher que tinha poderes, e um padre que queria voar numa Passarola e que morreu doido;

Era uma vez Jesus, que disse a Maria Magdalena - “quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”;

Era uma vez um cão que lambeu as lágrimas a uma mulher desesperada num mundo de cegos, desejando também cegar para ser poupada aos horrores que a vista lhe trazia;

Era uma vez a morte, que tinha um plano e que o cumpriu – abraçou-se ao homem sem que ele compreendesse o que lhe estava a suceder, e ela, a morte, que nunca dormia, deixou descair suavemente as pálpebras enquanto adormecia; no dia seguinte, ninguém morreu;

Era uma vez um homem, que quando morreu, partiram 2 pessoas: saiu ele, de mão dada com a criança que foi – tal como o próprio José Saramago previu, nas suas próprias palavras.

Era uma vez e tantas outras vezes, o respeito à terra e aos homens, a luta contra as injustiças, a defesa dos direitos humanos, a denúncia contra a guerra do Iraque ou contra a ocupação palestiniana, as causas dos Sem Terra, do movimento anti-globalizante, da preservação do ambiente, ou do anti-clericalismo desassombrado.

Estas e tantas outras, foram as histórias com que o ateu místico, religioso laico, interrogador de Deus e dos homens, José Saramago, “comunista hormonal” nas suas palavras, questionou Portugal e o mundo incessantemente, directa ou metaforicamente.
A liberdade do pensamento define o criador: Saramago foi voz lúcida, inconformada, firme, insubmissa na luta contra a desigualdade entre os homens – esta sim “a verdadeira miséria”, dizia.

Parte da imensa receptividade que as suas obras têm merecido em todo o mundo, e que a atribuição do Nobel cimentou e glorificou, deve-se a esse carácter humanista, à esperança que a sua obra impõe ao Homem.

Recebeu o Prémio Nobel da Literatura «... pela sua capacidade de tornar compreensível uma realidade fugidia, com parábolas sustentadas pela imaginação, pela compaixão e pela ironia», segundo a Academia Sueca.

Fiel ao seu compromisso com a consciência, usou a escrita para uma reflexão sobre as grandes causas da humanidade, edificando uma obra coerente, ousada, sólida, moldada pela ética, visando, sempre, a dignificação do Homem.

E fê-lo por vezes subvertendo normas - quer de narrativa (o seu estilo é inconfundível, nas suas frases longas e de pontuação singular), quer enfrentando dogmas - não tinha fé em Deus (mas certamente Deus teve fé nele).

Para ele a escrita, enquanto forma de expressão do pensamento e de intervenção intelectual, foi instrumento, foi arma, foi agente provocador e plataforma de interrogação permanente do indivíduo e da sociedade.

Com a sua actividade cívica aliada à criação literária, cumpriu aquilo que é mais caro aos criadores e aos artistas – conseguiu com a sua obra fazer pensar os destinatários, perturbar os conformados, incomodar as consciências e aguçar a lucidez.
(...)
Como escreveu ontem um amigo a Pilar, - Não há palavras. Saramago levou-as todas…

Obrigado José Saramago.

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