sábado, 31 de julho de 2010

GINKGO BILOBA




Poema de GOETHE

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), escreveu em 1815 um poema sobre a Ginkgo biloba que dedicou a uma sua antiga amante. As folhas da árvore, com dois lobos, simbolizam o tema "uno e duplo" desenvolvido pelo poeta. O poema foi publicado em 1819 no livro West-östlichen Divan.


tradução de Paulo Quintela, antologia poética de Goethe publicada pela Universidade de Coimbra em 1958.



Ginkgo biloba

A folha desta árvore que de Leste
Ao meu jardim se veio afeiçoar,
Dá-nos um gosto de um sentido oculto
Capaz de um sábio edificar.
Será um ser vivo apenas
Em si mesmo em dois partido?
Serão dois que se elegeram
E nós julgamos num unidos?
P'ra responder às perguntas
Tenho o sentido real:
Não vês por meus cantos como
Sou uno e duplo, afinal?

GOETHE - Poema manuscrito


quarta-feira, 28 de julho de 2010

Amoras




Poema de Luiza Neto Jorge

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos


Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.

Foto de David Hamilton


Poema de Rosa Lobato Faria

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar ardente do joelho
E o ventre mais à frente na maré.


É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
Mas o beijo é carícia, de tão leve.


O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente
Ímpeto que não ache um abandono.


Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama.


Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.



Rosa Lobato Faria
INSIDE . OUTSIDE . INSIGHT


Poema de Adília Lopes

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
Rosas e mais rosas


Três Poemas de Fernanda de Castro

Três Poemas da Solidão

I

Nem aqui nem ali: em parte alguma.
Não é este ou aquele o meu lugar.
Desço à praia, mergulho as mãos no mar,
mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma.


Meu jardim, minha cerca, meu pomar.
Perpassa a Ideia e mói, como verruma.
Falar mas para quê? Só por falar?
Já nada quer dizer coisa nenhuma.


Os instintos à solta, como feras,
e eu a pensar em velhas primaveras,
no antigo sortilégio das palavras.


Agora é tudo igual, prazer e dor,
e a tua sementeira não dá flor,
ó triste solidão que as almas lavras.


II


Tão só! Cada vez são mais longos os caminhos
que me levam à gente.
(E os pensamentos fechados em gaiolas,
as ideias em jaulas.)


Ah, não fujam de mim!
Não mordo, não arranho.
Direi:
«Pois não! Ora essa! Tem razão».


Entanto, na gaiola,
cantarão em silêncio
os sonhos, as ideias,
como pássaros mudos.


III


Solidão.
A multidão em volta
e o pensamento à solta
como alado corcel.
E as ideias dispersas, em tropel,
como folhas ao vento
pétalas do Pensamento.


Solidão.
A angústia da Cidade,
a impossível procura da Unidade,
o clamor
do silêncio interior,
mais pungente, estridente,
que os bárbaros ruídos
que ferem, dilaceram
os nervos e os sentidos.


Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

Poema de Fernanda de Castro

Já não Vivo, Só Penso


Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.


Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.


Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,


ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.


Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

Fernanda de Castro


A Poesia de Fernanda de Castro

29 DE JULHO - 21.30h - CAFÉ PROGRESSO
Para Pascoaes os versos de Fernanda de Castro continham "o que de mais eterno há na poesia".
E Pessoa, José Gomes Ferreira, Ary dos Santos, Natália Correia, Cecília Meireles, Drummond de Andrade, Pirandello ou Mircea Eliade foram algumas das figuras que conviveram com esta poetisa, romancista, dramaturga, "a primeira neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema...", - nas palavras de David Mourão-Ferreira.
Fernanda de Castro encarnou na poesia a grandeza de "um doloroso, humano coração", glorificando a vida em todas as suas facetas: o sol, o amor, a alegria dos dias felizes, a dor amarga, a ânsia de voar para um longínquo lugar de luz e paz nos dias de infinita solidão.
Não é de perder esta rara oportunidade de assistirmos a uma sessão de poesia sobre Fernanda de Castro no próximo dia 29 no Café Progresso pelas 21,30 com leitura de poemas

segunda-feira, 26 de julho de 2010

quinta-feira, 22 de julho de 2010

MARÉS VIVAS - 15, 16 E 17 DE JULHO - GOLDFRAPP, PLACEBO e EDITORS - OS MELHORES NO LUGAR ERRADO







A Cultura dos Concertos/Festivais, a Crise e a Juventude Amolecida

Pela primeira vez, assisti ao Festival Marés Vivas, na Afurada, Gaia.
Não queria acreditar. Foram três dias de S. João no Porto. Espirito de Festival nem vê-lo. O chamado povo e muitos pré-adolescentes só tinham como objectivo formar filas nas barracas da Super Bock e do Licor Beirão. As ofertas de brindes aos consumidores eram aliciantes. Chapéus de palha, lenços para o pescoço e sei lá que mais. Só faltavam os martelinhos. Como observadora que sou reparei que, da parte do público, o maior entusiasmo era atingido com as palmas finais e assobios, numa espécie de histeria colectiva. Porque durante as actuações de GOLDFRAPP, PLACEBO ou EDITORS, o público encontrava-se distraido a clicar nos telemóveis, a transportar copos de cerveja, três e quatro por pessoa e a brincar com os chapéus-brinde. Uma barbárie digna do norte. Há uma diferença abismal de comportamentos entre festivais do Sul e do Norte. O som era desastroso, ao ponto de no segundo dia a banda EDITORS abandonar o palco por 20 minutos, porque estavam a receber choques dos instrumentos musicais. Incomprensão geral do público, pensava que era uma atitude de birra da parte dos Editors. Enfim, foi uma experiência na "máquina do tempo" de regresso à idade média. NUNCA MAIS.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Trabalho plástico de Isabel de Sá

«A MINHA INFÂNCIA NUNCA PERDEU A SUA MAGIA. NUNCA PERDEU O SEU MISTÉRIO. NUNCA PERDEU O SEU DRAMA. »

Louise Bourgeois

Trabalho plástico de Isabel de Sá

«A PERFEIÇÃO DA CARNE CONTRARIA O TERROR DA MORTE.»

Joaquim Manuel Magalhães






















Palavras de Manuel António Pina

As palavras são seres intranquilos. Mesmo as mais conformadas e mais comuns, dessas que servem, não para dizer, mas para comunicar, têm sobressaltos e caprichos de sentido que nos deixam de repente ainda mais desamparados diante do ameaçador mundo de todos os dias. E palavras desmesuradas e antigas, pelas quais pensámos um dia ser capazes de morrer e envelheceram connosco ou julgávamos mortas, assomam-nos ainda às vezes aos lábios vindas do fundo da memória ( ou, quem sabe?, do fundo do coração) como se nos dissessem: «Sou eu, não me ouves chamar?»
Quando era jovem, gostava da palavra «todavia». Parecia-me haver nela algo alado, simultaneamente som e sentido, que dava alturas poéticas à prosa mais banal e rasteira.
E da palavra «fidelidade», que encontrei intacta num livro de Jorge de Sena emprestado por uma biblioteca itinerante da Gulbenkian. Nas intermináveis noites da adolescência, acreditava então que havia palavras secretas que podiam proteger-me da solidão e da incoincidência, e enchia de versos folhas e folhas à sua procura ou inventava línguas desconhecidas para elas ( ainda hoje, tantos anos depois, escrevo por vezes nessas línguas). Noutras alturas deixava que as minhas palavras falassem sózinhas, repetindo-as alto até perderem sentido ou até se desmoronarem para dentro de si mesmas em novas palavras, (...)
As palavras, porém, gastam-se, como disse Eugénio. E compram-se e vendem-se, mesmo aquelas de que somos mais intimamente feitos. (...)
Temos cada vez menos palavras a cuja sombra nos acolher ou capazes, não só de nos nomear, mas de nos convocar. (...)
Notícias Magazine, 04.JUL.2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Fotos de Paulo Nozolino







PAULO NOZOLINO


Devolução do Prémio AICA/MC por PAULO NOZOLINO

Recuso na sua totalidade o Prémio AICA/MC 2009 em repúdio pelo comportamento obsceno e de má fé que caracteriza a actuação do Estado português na efectiva atribuição do valor monetário do mesmo. O Estado, representado na figura do Ministério da Cultura (DGARTES), em vez de premiar um artista reconhecido por um júri idóneo pune-o! Ao abrigo de “um parecer” obscuro do Ministério das Finanças, todos os prémios de teor literário, artístico e científico não sujeitos a concurso são taxados em 10% em sede de IRS, ao contrário do que acontece com todos os prémios do mesmo cariz abertos a candidaturas.
A saber: Quem concorre para ganhar um prémio está isento de impostos pelo Código de IRS. Quem, sem pedir, é premiado tem que dividir o seu valor com o Estado!
Na cerimónia de atribuição do Prémio foi-me entregue um envelope não com o esperado cheque de dez mil euros, como anunciado publicamente, mas sim com uma promessa de transferência bancária dessa mesma soma, assinada por Jorge Barreto Xavier, Director Geral das Artes. No dia seguinte, depois do espectáculo, das luzes e do social, recebo um e-mail exigindo-me que fornecesse, para que essa transferência fosse efectuada, certidões actualizadas da minha situação contributiva e tributária, bem como o preenchimento de uma nota de honorários, onde me aplicam a mencionada taxa de 10%, cuja existência é justificada pelo Director Geral das Artes como decorrendo de um pedido efectuado por aquela entidade à Direcção-Geral dos Impostos para emitir “um parecer no sentido de que, regra geral, o valor destes prémios fosse sujeito a IRS”.
Tomo o pedido de apresentação das certidões como uma acusação da parte do Estado de que não tenho a minha situação fiscal em dia e considero esse pedido uma atitude de má fé. A nota de honorários implica que prestei serviços à DGARTES. Não é verdade. Nunca poderia assinar tal documento.
Se tivesse sido informado do presente envenenado em que tudo isto consiste não teria aceite passar por esta charada.
Nunca, em todos os prémios que recebi, privados ou públicos, no país ou no estrangeiro, senti esta desconfiança e mesquinhez. É a primeira vez que sinto a burocracia e a avidez da parte de quem pretende premiar Arte. Não vou permitir ser aproveitado por um Ministério da Cultura ao qual nunca pedi nada. Recuso a penhora do meu nome e obra com estas perversas condições. Devolvo o diploma à AICA, rejeito o dinheiro do Estado e exijo não constar do historial deste prémio.Paulo Nozolino1 de Julho de 2010


Postagem de Rui Almeida no seu blog
http://ruialme.blogspot.com/

PUZZLE DA VIDA

Acredito que envelhecemos sempre que perdemos alguém, como se fossemos um puzzle e cada peça perdida fosse uma pessoa que amamos e um ano menos da nossa vida.
Uma perda será menos uma arfada de ar que respiramos, menos um latido de um coração ou um êmbolo numa qualquer artéria que outrora havia de alimentar o nosso corpo, e que agora deixa secar, pouco a pouco. Deste modo, devimos pele e osso. Depois osso. E pó. Terra.
Postagem do blog de Eduardo Pires

MATILDE ROSA ARAÚJO

MATILDE ROSA ARAÚJO / SEBASTIÃO DA GAMA
[...]
Eras tu, Sebastião; tu glorioso, apesar do teu corpo mudo de menino de tua mãe. Tu que me disseste: «E quando a morte vier diz-lhe que não; diz-lhe que és moça e não cumpriste ainda. Vês, querida amiga, é por causa de momentos assim, em que te resignas a ela, que é preciso a gente escrever, mesmo com certa casca literária, uma «largada». Porque mocidade é insurreição, protesto contra o que não está direito, vontade de erguer monumentos, desassombro para contrariar a morte. Negas a tua mocidade — não a mereces, quando, em momentos que eu muito bem compreendo, aceitas a morte como uma boa irmã. E sabes tu por que motivo a morte, surda ao teu abandono, às boas vindas que lhe cicias, se vai para outros caminhos? É porque ainda a não mereces. Nós não merecemos a morte ainda, Matilde. Que é que nós fizemos? Que lágrimas enxugámos? A que bocas demos pão? Que remédios trouxemos para curar o «mal profundo da alma»? Claro, minha filha, que alguma coisa fizemos. A nossa torre de marfim é bem rasgada de janelas. Mas o «alguma coisa» que fizemos é tão débil, tão mínimo... Ver Nápoles e morrer — dizem. Fazer alguma coisa e morrer — devemos dizer nós, gente nova. Tu perguntaste-me, quando te disse o «Convite a ser-se moço»: «Porque rimaste no fim?» Achei fora de propósito a pergunta... Mas, se meditasse um minuto, talvez respondesse que para fixar melhor aqueles últimos versos.
É preciso merecer a mocidade, é preciso merecer a mocidade, é preciso merecer a mocidade. E o processo não é dizer que sim à morte.
Quantas vezes me insurjo contra mim, Matilde, porque me não sinto verdadeiramente moço; é que a minha vida tem mais horas de sangue morno do que sangue latejante... E eu queria ser era forte, era moço, era construtivo. Não para que dissessem, num elogio: Aquele é forte, é moço, é construtivo. Antes para sentir que era útil. Tanta vez tenho vergonha de mim, me sinto mesquinho!» E conta. E continua : «...agora não quero mais senão fixar uma coisa: é que podem todos gritar, como têm gritado, que sou um indiferente, um desinteressado dos... que me cercam — que eu sinto tranquila a minha consciência. E para tal me basta que saiba, de ciência certa, que não sou indiferente, que me não desinteresso. Valem, para mim, muito mais as acções do que as palavras. E tenho e certeza de que sou humano e do meu tempo nas minhas relações com os outros. Para muitos desses outros não basta — queriam qualquer ismo para designar a minha maneira de ser; qualquer ismo moderno. Mas paciência. E sobretudo é cedo demais para julgar quem é mais interessado.
E também já estou a escrever demais e sério demais. A isto me levou o nevoeiro que amanheceu na Arrábida. Desculpa. Eu preferiria, de facto, contar-te uma história de crianças. Olha, esta, a que a Joaninha assistiu: «Eu gostava de ser flor. E tu?» Bem é verdade: «O melhor de tudo são as crianças».As crianças. Era isso, Sebastião. Era tudo isto: o sol alado, glorioso, que morreu ontem. Era esta tua força perante a vida, este teu merecer a morte, gloriosa e final como mereceste. É isto que nos afasta. Tu mereceste-la inteira [...]
(in Távola Redonda - folhas de poesia, fascículos 16 e 17 [edição de homenagem a Sebastião da Gama], 30 de Abril de 1953 - da edição fac-similada: Contexto editora, 1989)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dois Poemas de MANUEL DE FREITAS

Grand Hotel København, 326

Onze horas: a tua mão adormecida marca
agora um conto de Karen Blixen
- veremos em breve essa casa cinzenta,
em Helsingør - enquanto eu ouço uma sonata
de Scarlatti tocada por Scott Ross
e sei que também isso ficarei a dever à Dinamarca.

Apontamentos culturais? Podem até chamar-lhes
assim, ignorando a áspera nudez da voz,
o grito comum que viemos suspender aqui.
Lá em baixo, por exemplo, os funcionários do
restaurante, terminado o serviço, abrem
a terceira garrafa de champanhe e fumam
ruidosamente, como se amanhã não existisse.

A questão, no fundo, é apenas esta: há momentos
em que a vida nos parece quase bela,
escolhos onde embatem as mais íntimas certezas.

Talvez adormeçamos lado a lado,
de costas para a morte, e haja corsários ao fundo,
um mar de gelo protegendo-nos da noite.


All you need is love 2

Mas não é bem assim, dir-se-á.
Vinte e seis séculos de lírica
deviam, pelo menos, provar o contrário
- na hipótese argilosa de esses
cadáveres afamados terem alguma coisa
a dizer-nos quanto ao melhor método
de atravessar ruas superpovoadas.

Onde eu te vi passar, meu amor,
com o lenço vermelho, os cabelos
mais curtos e as pernas que embora
tenazes herméticas te davam - por
assim dizer - um ar sofrível de corpo.

Não sei porque é que reparei nisso,
logo eu, logo hoje. Simples distracção da morte
- a reinvindicar uma anatomia, e paz.

O Homem Traça - Mothman


O HOMEM e a MORTE - EDGAR MORIN

(...)
La Rochefoucauld dizia que para o Sol e para a morte não se podia olhar de frente. Desde então, os astrónomos, com os ardis infinitos da sua ciência - de todas as ciências -, já pesaram o Sol, já lhe calcularam a idade, já lhe anunciaram o fim. Mas a ciência ficou como que intimidada e tremente perante o outro sol, a morte. Continua a ser verdadeiro o comentário de Metchnikoff: «A nossa inteligência, que se tornou tão ousada e tão activa, mal se tem dedicado à morte.»
Mal se tem dedicado porque o homem ora renuncia a olhar para a morte, a coloca entre parênteses e a esquece como acabamos por nos esquecer do sol, ora, pelo contrário, a olha com aquele olhar fixo, hipnótico, que se perde no estupor e donde nascem as miragens. O homem, que negligenciou de mais a morte, desejou também de mais olhá-la de frente, em vez de tentar enredá-la com a sua astúcia.
Ainda inocente, não soube que aquela morte à qual dirigiu tantos clamores e preces não era senão a sua própria imagem, o seu próprio mito, e que, julgando olhá-la, olhava para si próprio.
E, acima de tudo, não compreendeu que o mistério primeiro era, não a morte, mas a sua atitude para com a morte (nada se sabe da psicologia da morte, diz Flugel). Tomou essa atitude por evidente, em vez de lhe pesquisar os segredos.
Portanto, é necessário inverter a óptica, inverter as evidências, procurar a chave onde se julgava estar a fechadura, bater às portas do homem antes de bater às portas da morte. É necessário revelar as paixões profundas do homem para com a morte, considerar o mito na sua humanidade e considerar o próprio homem como guardião inconsciente do segredo. Então, e só então, poderemos interpelar a morte desnudada, lavada, desmaquilhada, desumanizada, e dissecá-la na sua pura realidade biológica.
(...)

domingo, 4 de julho de 2010

O AR DA MANHÃ


Fragmento de ASAS DE VIDRO de JOÃO BORGES

(...)

Uma canção:"A Thousand Beautiful Things" de Annie Lennox

Gostava
pensou ele, Ricardo, na manhã do último dia da última vez que visitara Luisa e Sofia, no Porto, de ficar sempre aqui.
Aqui
não era no Porto,
era naquele momento.

Naquele momento que ele recorda como se o visse, dentro de si, em filme.

Não dormi nessa noite. Entretive-me a fazer uns desenhos e quando dei conta, já o céu estava daquele azul premonitório. Consultei o relógio. Seis e um quarto da manhã. Abri a porta da varanda coberta do atelier da Luisa, onde eu ficava a dormir, puxei de um dos cadeirões e fiquei a olhar. A vida das traseiras do apartamento da Luisa e da Sofia é brutal. Lembro-me de elas contarem que uma amiga delas, a Inês, quando vira a vista dissera - A sala é muito boa, mas a "vista" não é famosa"...
quando fui a casa delas, pela primeira vez, pensei da vista exactamente o contrário. Na altura, estava a escrever "As Asas de Vidro" e creio que por lá existe alguma referência à paisagem visível da sala e das varandas do segundo andar, o dos ateliers.
Se
pensou ainda Ricardo
ainda estivesse a escrever "As Asas de Vidro", gostaria de falar desta paisagem ao amanhecer. Como não estava, fixei-a apenas, tentei que cada detalhe se colocasse no seu lugar, para me lembrar sempre.
À esquerda mais longínqua é Gaia, um aglomerado de prédios. Um se destaca, consideravelmente mais alto.
Tudo o resto é tapado pelas traseiras das casas da Rua da Firmeza. Casas com rebocos enegrecidos de tempo, um negro aziago a descer das vidraças. Algumas varandas com roupa estendida.
Nas traseiras em frente, as de Anselmo Braancamp, uma é mais moderna, com granitos lisos, janelas limpas, pequenos arbustos crescendo civilizados em vasos na varanda. As outras são mais antigas. Duas têm escadas em caracol que ligam os vários andares. Alguns jardins selvagens, crescendo ao longo do exterior das paredes.
Pausa: som de sinos. Não me lembro qual a igreja mais próxima. Santo Ildefonso, talvez.
Prosseguindo: claraboias, na sua fascinante geometria, belas, quatro, uma delas serve de pouso a uma gaivota que não se demora muito. Três das casas daqui visíveis têm escamas de xisto. Tal beleza dói. Como pode a arquitectura não ser a mais emocionante das artes?
Ao fundo, quase a perder de vista, três janelas com o cimo em arco quebrado. Ao lado outras três. Todas entre escamas de xisto. As segundas não têm vidros. Só os caixilhos. Heras trepam pelas paredes. A última das janelas quase não é visível.
À frente das traseiras de Anselmo Brancamp, veêm-se principalmente telhados. Excepto uma das casas, que já não o tem.
A luz. A luz que começara por ser branca vai-se dourando à medida que as horas passam. Sete e dez, agora. No grande prédio ao cimo da Avenida D. João IV, é já visível o sol dourado. Noutras casas em frente, mais longínquas, também.
Da Torre, a Torre dos Clérigos, vê-se apenas a última das cúpulas escultóricas. Telhados e mais telhados se interpõem. Um pouco ao lado, visto daqui, é alto também o silo de estacionamento do Via Catarina.
Pausa: o som de um avião a passar.
Prosseguindo: o ar da manhã é frio ao entrar nas narinas, mas dá uma sensação de felicidade. É uma benção o ar da manhã.
Pausa: ouve-se o primeiro carro. De estranhar, tão tarde, já passa das sete. Deverá ter passado algures em Santos Pousada, e ouviu-se aqui. Na varanda. No cimo.
Tudo isto Ricardo via ouvia sentia. Por momentos pensou de novo no seu quase romance "As Asas de Vidro". Um amanhecer no Porto poderia estar lá. Acrescentaria um capítulo? Era livre de o fazer.
(...)