domingo, 4 de julho de 2010

O AR DA MANHÃ


Fragmento de ASAS DE VIDRO de JOÃO BORGES

(...)

Uma canção:"A Thousand Beautiful Things" de Annie Lennox

Gostava
pensou ele, Ricardo, na manhã do último dia da última vez que visitara Luisa e Sofia, no Porto, de ficar sempre aqui.
Aqui
não era no Porto,
era naquele momento.

Naquele momento que ele recorda como se o visse, dentro de si, em filme.

Não dormi nessa noite. Entretive-me a fazer uns desenhos e quando dei conta, já o céu estava daquele azul premonitório. Consultei o relógio. Seis e um quarto da manhã. Abri a porta da varanda coberta do atelier da Luisa, onde eu ficava a dormir, puxei de um dos cadeirões e fiquei a olhar. A vida das traseiras do apartamento da Luisa e da Sofia é brutal. Lembro-me de elas contarem que uma amiga delas, a Inês, quando vira a vista dissera - A sala é muito boa, mas a "vista" não é famosa"...
quando fui a casa delas, pela primeira vez, pensei da vista exactamente o contrário. Na altura, estava a escrever "As Asas de Vidro" e creio que por lá existe alguma referência à paisagem visível da sala e das varandas do segundo andar, o dos ateliers.
Se
pensou ainda Ricardo
ainda estivesse a escrever "As Asas de Vidro", gostaria de falar desta paisagem ao amanhecer. Como não estava, fixei-a apenas, tentei que cada detalhe se colocasse no seu lugar, para me lembrar sempre.
À esquerda mais longínqua é Gaia, um aglomerado de prédios. Um se destaca, consideravelmente mais alto.
Tudo o resto é tapado pelas traseiras das casas da Rua da Firmeza. Casas com rebocos enegrecidos de tempo, um negro aziago a descer das vidraças. Algumas varandas com roupa estendida.
Nas traseiras em frente, as de Anselmo Braancamp, uma é mais moderna, com granitos lisos, janelas limpas, pequenos arbustos crescendo civilizados em vasos na varanda. As outras são mais antigas. Duas têm escadas em caracol que ligam os vários andares. Alguns jardins selvagens, crescendo ao longo do exterior das paredes.
Pausa: som de sinos. Não me lembro qual a igreja mais próxima. Santo Ildefonso, talvez.
Prosseguindo: claraboias, na sua fascinante geometria, belas, quatro, uma delas serve de pouso a uma gaivota que não se demora muito. Três das casas daqui visíveis têm escamas de xisto. Tal beleza dói. Como pode a arquitectura não ser a mais emocionante das artes?
Ao fundo, quase a perder de vista, três janelas com o cimo em arco quebrado. Ao lado outras três. Todas entre escamas de xisto. As segundas não têm vidros. Só os caixilhos. Heras trepam pelas paredes. A última das janelas quase não é visível.
À frente das traseiras de Anselmo Brancamp, veêm-se principalmente telhados. Excepto uma das casas, que já não o tem.
A luz. A luz que começara por ser branca vai-se dourando à medida que as horas passam. Sete e dez, agora. No grande prédio ao cimo da Avenida D. João IV, é já visível o sol dourado. Noutras casas em frente, mais longínquas, também.
Da Torre, a Torre dos Clérigos, vê-se apenas a última das cúpulas escultóricas. Telhados e mais telhados se interpõem. Um pouco ao lado, visto daqui, é alto também o silo de estacionamento do Via Catarina.
Pausa: o som de um avião a passar.
Prosseguindo: o ar da manhã é frio ao entrar nas narinas, mas dá uma sensação de felicidade. É uma benção o ar da manhã.
Pausa: ouve-se o primeiro carro. De estranhar, tão tarde, já passa das sete. Deverá ter passado algures em Santos Pousada, e ouviu-se aqui. Na varanda. No cimo.
Tudo isto Ricardo via ouvia sentia. Por momentos pensou de novo no seu quase romance "As Asas de Vidro". Um amanhecer no Porto poderia estar lá. Acrescentaria um capítulo? Era livre de o fazer.
(...)