segunda-feira, 5 de julho de 2010

Dois Poemas de MANUEL DE FREITAS

Grand Hotel København, 326

Onze horas: a tua mão adormecida marca
agora um conto de Karen Blixen
- veremos em breve essa casa cinzenta,
em Helsingør - enquanto eu ouço uma sonata
de Scarlatti tocada por Scott Ross
e sei que também isso ficarei a dever à Dinamarca.

Apontamentos culturais? Podem até chamar-lhes
assim, ignorando a áspera nudez da voz,
o grito comum que viemos suspender aqui.
Lá em baixo, por exemplo, os funcionários do
restaurante, terminado o serviço, abrem
a terceira garrafa de champanhe e fumam
ruidosamente, como se amanhã não existisse.

A questão, no fundo, é apenas esta: há momentos
em que a vida nos parece quase bela,
escolhos onde embatem as mais íntimas certezas.

Talvez adormeçamos lado a lado,
de costas para a morte, e haja corsários ao fundo,
um mar de gelo protegendo-nos da noite.


All you need is love 2

Mas não é bem assim, dir-se-á.
Vinte e seis séculos de lírica
deviam, pelo menos, provar o contrário
- na hipótese argilosa de esses
cadáveres afamados terem alguma coisa
a dizer-nos quanto ao melhor método
de atravessar ruas superpovoadas.

Onde eu te vi passar, meu amor,
com o lenço vermelho, os cabelos
mais curtos e as pernas que embora
tenazes herméticas te davam - por
assim dizer - um ar sofrível de corpo.

Não sei porque é que reparei nisso,
logo eu, logo hoje. Simples distracção da morte
- a reinvindicar uma anatomia, e paz.

O Homem Traça - Mothman


O HOMEM e a MORTE - EDGAR MORIN

(...)
La Rochefoucauld dizia que para o Sol e para a morte não se podia olhar de frente. Desde então, os astrónomos, com os ardis infinitos da sua ciência - de todas as ciências -, já pesaram o Sol, já lhe calcularam a idade, já lhe anunciaram o fim. Mas a ciência ficou como que intimidada e tremente perante o outro sol, a morte. Continua a ser verdadeiro o comentário de Metchnikoff: «A nossa inteligência, que se tornou tão ousada e tão activa, mal se tem dedicado à morte.»
Mal se tem dedicado porque o homem ora renuncia a olhar para a morte, a coloca entre parênteses e a esquece como acabamos por nos esquecer do sol, ora, pelo contrário, a olha com aquele olhar fixo, hipnótico, que se perde no estupor e donde nascem as miragens. O homem, que negligenciou de mais a morte, desejou também de mais olhá-la de frente, em vez de tentar enredá-la com a sua astúcia.
Ainda inocente, não soube que aquela morte à qual dirigiu tantos clamores e preces não era senão a sua própria imagem, o seu próprio mito, e que, julgando olhá-la, olhava para si próprio.
E, acima de tudo, não compreendeu que o mistério primeiro era, não a morte, mas a sua atitude para com a morte (nada se sabe da psicologia da morte, diz Flugel). Tomou essa atitude por evidente, em vez de lhe pesquisar os segredos.
Portanto, é necessário inverter a óptica, inverter as evidências, procurar a chave onde se julgava estar a fechadura, bater às portas do homem antes de bater às portas da morte. É necessário revelar as paixões profundas do homem para com a morte, considerar o mito na sua humanidade e considerar o próprio homem como guardião inconsciente do segredo. Então, e só então, poderemos interpelar a morte desnudada, lavada, desmaquilhada, desumanizada, e dissecá-la na sua pura realidade biológica.
(...)