quarta-feira, 28 de julho de 2010

Amoras




Poema de Luiza Neto Jorge

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos


Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.

Foto de David Hamilton


Poema de Rosa Lobato Faria

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar ardente do joelho
E o ventre mais à frente na maré.


É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
Mas o beijo é carícia, de tão leve.


O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente
Ímpeto que não ache um abandono.


Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama.


Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.



Rosa Lobato Faria
INSIDE . OUTSIDE . INSIGHT


Poema de Adília Lopes

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
Rosas e mais rosas


Três Poemas de Fernanda de Castro

Três Poemas da Solidão

I

Nem aqui nem ali: em parte alguma.
Não é este ou aquele o meu lugar.
Desço à praia, mergulho as mãos no mar,
mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma.


Meu jardim, minha cerca, meu pomar.
Perpassa a Ideia e mói, como verruma.
Falar mas para quê? Só por falar?
Já nada quer dizer coisa nenhuma.


Os instintos à solta, como feras,
e eu a pensar em velhas primaveras,
no antigo sortilégio das palavras.


Agora é tudo igual, prazer e dor,
e a tua sementeira não dá flor,
ó triste solidão que as almas lavras.


II


Tão só! Cada vez são mais longos os caminhos
que me levam à gente.
(E os pensamentos fechados em gaiolas,
as ideias em jaulas.)


Ah, não fujam de mim!
Não mordo, não arranho.
Direi:
«Pois não! Ora essa! Tem razão».


Entanto, na gaiola,
cantarão em silêncio
os sonhos, as ideias,
como pássaros mudos.


III


Solidão.
A multidão em volta
e o pensamento à solta
como alado corcel.
E as ideias dispersas, em tropel,
como folhas ao vento
pétalas do Pensamento.


Solidão.
A angústia da Cidade,
a impossível procura da Unidade,
o clamor
do silêncio interior,
mais pungente, estridente,
que os bárbaros ruídos
que ferem, dilaceram
os nervos e os sentidos.


Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

Poema de Fernanda de Castro

Já não Vivo, Só Penso


Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.


Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.


Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,


ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.


Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

Fernanda de Castro


A Poesia de Fernanda de Castro

29 DE JULHO - 21.30h - CAFÉ PROGRESSO
Para Pascoaes os versos de Fernanda de Castro continham "o que de mais eterno há na poesia".
E Pessoa, José Gomes Ferreira, Ary dos Santos, Natália Correia, Cecília Meireles, Drummond de Andrade, Pirandello ou Mircea Eliade foram algumas das figuras que conviveram com esta poetisa, romancista, dramaturga, "a primeira neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema...", - nas palavras de David Mourão-Ferreira.
Fernanda de Castro encarnou na poesia a grandeza de "um doloroso, humano coração", glorificando a vida em todas as suas facetas: o sol, o amor, a alegria dos dias felizes, a dor amarga, a ânsia de voar para um longínquo lugar de luz e paz nos dias de infinita solidão.
Não é de perder esta rara oportunidade de assistirmos a uma sessão de poesia sobre Fernanda de Castro no próximo dia 29 no Café Progresso pelas 21,30 com leitura de poemas