sábado, 23 de abril de 2011













Foto de Hedi Slimane
Pouso no papel deste poema, a minha boca
na tua boca e os beijos não existem,
nem sequer ao vento uma leve cortina
que esvoace. Nada, rapace, nada sente
essa boca distante, a tua boca,
o peso de algodão da pena de uma ave,
lábios, língua, dentes, saliva.
Por quanto tempo ainda, noite em noite,
irei pela cidade sem beijar, sem
de verdade beijar em qualquer boca
essa fome que não beijei, a tua.


Joaquim Manuel Magalhães


uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990








Foto de Hedi Slimane
Enquanto dentro de mim tento confrontar-me
com a noite, qualquer coisa que podias ser tu
cerca-me na corda de enforcado de um luar
visto da janela, ilumina a rua sem ninguém.
Esta memória destruída ainda sou eu,
um limite onde respiram as raízes
e ouço a erecta doçura de canções.
Depois ficamos sós com essas garras
que vemos sós na hora que nos mata.



Joaquim Manuel Magalhães


uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990

Fotos de BERNARD FAUCON





















UMA NOITE



O quarto era ordinário, miserável,
escondido por cima da taberna dúbia,
e o beco via-se, estreito e sujo,
pelo postigo. Lá de baixo
as vozes vinham de alguns operários
jogando às cartas e bebendo.


Aí, na enxerga reles, tão usada,
tive o corpo do amor, eu tive os lábios,
os sensuais lábios tintos de um prazer
tão embriagador, que neste instante,
ao escrever aqui, depois de tantos anos,
na solitária casa, ébrio estou outra vez.


Constantino Cavafy


Tradução de Jorge de Sena, Editorial Inova, Porto












E DE SÚBITO ANOITECE




Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é fragil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem perseverar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.


JUAN LUIS PANERO


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães,Relógio D'Água, Lisboa, 2003