segunda-feira, 19 de setembro de 2011

CARLOS QUEIROZ - FERNANDO PESSOA - O POETA E OS SEUS FANTASMAS

(...) Todos os poetas são acompanhados - às vezes, mesmo tiranicamente perseguidos - por entes invisíveis que se exprimem numa linguagem desconhecida, de natureza mais musical do que idiomática. Ouvir essas falas e, numa total concentração anímica - num estado a que ouso chamar de pura inconsciência lúcida - interpretá-las, é todo o acto de criação poética.
O exemplo de Rainer Maria Rilke, escutando, no castelo de Duino, em certa manhã tempestuosa, uma voz oculta que lhe ditou, inteiro, o verso inicial das suas famosas elegias : («Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as hierarquias dos anjos?»), transcende esse silêncio genético - só na essência rítmico - e eleva o fenómeno a uma altitude inacessível à compreensão dos mortais. Todavia, no plano em que Arthur Rimbaud afirmava a necessidade de o homem se tornar vidente para poder ser poeta, já a análise crítica pode  penetrar e, aí, - mesmo através do satanismo de quem se propusera, por esse meio, divinizar-se - descobrir uma alma inocente e ansiosa de Deus, como fez o ensaísta católico Jaques Rivière, que via no extraordinário poeta de Uma Estação no Inferno (palavras suas) « um maravilhoso introdutor no Cristianismo».
Rolland de Renéville, no seu livro de ensaios L'Expérience Poétique, diz o seguinte« Poetas e Místicos»: - «O estudo da inspiração revelou-nos que certos poetas se abandonam à corrente da sensibilidade e das paixões até ao instante em que ressoa aos seus ouvidos uma voz que parece exterior ao seu espírito, enquanto que outros, ao contrário, se esforçam por realizar, com uma atenção suspensa, a construção verbal que premeditaram. Estas opostas diligências levam-nosà obtenção duma realidade única: a Poesia. Sabemos, por outro lado, através das confidências dos místicos (continua Renéville), que o êxtase os prende, tanto no momento em que deixam agir sobre eles o que chamam a graça divina, como quando se esforçam, com voluntária meditação, por chegar à contemplação da entidade que perseguem.» Rolland de Renéville classifica de método passivo aquele que corresponde ao primeiro estado – tanto de inspiração como de êxtase místico – e de método activo o que corresponde ao segundo.
A obra poética de Fernando Pessoa e, sobretudo, as suas confidências pessoais sobre o assunto, fazem-nos crer que a sua inspiração pertencia – pela constância com que ele era acompanhado por esses entes incoercíveis a que há pouco aludi – quase exclusivamente à primeira espécie.
Mas, além dessas entidades (que nada e ninguém nos autoriza a garantir que sejam anjos ou demónios), outras, não menos abstractas e assíduas, perseguiam o seu espírito. Criadas pela imaginação necessariamente anormal, revelavam-se-lhe, talvez por isso mesmo, com mais sensível consistência, quase corpóreas, quase humanas. Não eram, somente, suas criaturas, mas seus desdobramentos anímicos, não eram somente os «eus parciais» a que Freud se referiu – comandados e passivos – mas eus parciais autónomos e criadores.
É a isto que eu chamo os fantasmas de Fernando Pessoa, num sentido diverso do que o mestre da psicanálise atribuiu à mesma palavra no seu ensaio: A criação literária e o sonho acordado». Para ele, Freud, fantasmas são as fantasias originárias de desejos insatisfeitos que os homens acalentam dissimuladas, como prolongamentos do mundo infantil dos jogos solitários; são os substitutos da realidade apetecida e nunca alcançada: são, numa palavra (que é, aliás, um sinónimo seu); os castelos em Espanha dos adultos.
Ao que eu designo por fantasmas, chamou-lhes F.P. sub-personalidades ou heterónimos cujo significado exprimiu assim:- «A obra pseudónima é do autor em sua pessoa; é de uma individualidade completa fabricada por ele, como o seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu.»
Fabricada por ele, disse Fernando Pessoa. Sinceramente? Fingindo?Ou fingindo que fingia?Isto foi escrito em 1928. (…)





Organização, introdução, leitura e notas de Maria Bochicchio, edição ÁTICA/ Babel, Lisboa, 2011