terça-feira, 18 de outubro de 2011

Pintura de Luís Melo

A propósito da relação de Fernando Pessoa com Ofélia

«Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo.
Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já justificação do amor, nem de uma parte nem de outra.»

Ter Ofélia enquanto mulher, com corpo, desejo e sexo, implicaria outro nível de intimidade, que Pessoa parecia temer, como referido. Aliás, a infantilidade que caracteriza a vida amorosa do poeta só poderia ser preservada mantendo Ofélia como um «bebé» - banindo o erotismo (evitamento que poderia durar mais quanto tempo?) - e prosseguindo o amor que os unia como maternal. Assim, nessa mesma carta de despedida, Pessoa sugere:

«Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco como meninos, e (...) conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.»

Foi assim que o Super-Camões viu - ou pretendeu ver - o seu relacionamento com Ofélia. Como um «amor de meninos». « Inútil». Sem sexo. Inconsequente e desresponsabilizante, já que o amor adulto pressupõe reciprocidade.

Maníacos de Qualidade, Joana Amaral Dias, editora A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010

Pintura de Luís Melo

Fragmento do romance A MORTE EM VENEZA de THOMAS MANN

(...) Não existe nada de mais estranho e espinhoso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista - que diáriamente, mesmo hora a hora, se encontram, se observam e que têm assim de manter, sem cumprimentos e sem palavras, a aparência de desconhecimento indiferente, devido ao rigor dos costumes ou a caprichos pessoais. Entre elas existe inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria da necessidade insatisfeita, anormalmente recalcada, de conhecimento e comunicação e sobretudo também uma forma de consideração tensa. Pois o ser humano ama e respeita o outro ser humano enquanto não está em posição de o julgar e o desejo é produto de um conhecimento insuficiente.
Necessariamente. (...)
Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. Mas diz-me agora, meu querido amigo, acreditas que se pode atingir alguma vez a sabedoria e verdadeiro valor viril quando se caminha para o espiritual por via dos sentidos? Ou acreditas antes (e és livre de o decidir) que esse caminho é cheio de atraentes perigos, na realidade um caminho de desacerto e pecado, que conduz necessariamente ao erro? Pois tens de saber que nós, poetas, não podemos embarcar no caminho da beleza sem que Eros nos acompanhe e se arvore em líder; podemos bem ser herois à nossa maneira e guerreiros disciplinados, mas não deixamos de ser como as mulheres, pois a paixão é para nós sublimação e o nosso desejo deve permanecer amor - é esse o nosso prazer, é essa a nossa vergonha. Vês agora que nós, os poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade, uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interdizer. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo?