domingo, 10 de junho de 2012

Poema de João Borges

Canção diante de uma porta fechada*

I


O começo do inverno trocou em chuva todas as coisas que ainda não disse. Tenho um projecto interminável para me convencer de que vale a pena este quarto vazio, este silêncio.


Diante de uma porta fechada, estou sentado e canto. Para a chuva, para o que está do outro lado.


Voltei para casa, seja isso onde for. Os fantasmas assombram os mesmos cantos do quarto, e a paisagem através da janela não se moveu ainda.


Este segredo



está tudo calmo agora que anoiteceu. Sozinho, converso com a Irene Lisboa
neste livro, mas sei que não posso perpetuar a conversa, porque me canso de ouvir só a minha voz.



Se fosse há dois anos, estaria a comer cereais sem leite com a Nita ou a fumar um charro com o Alex. Tudo isso está arrumado num qualquer canto da cabeça. É o vazio. É ainda diante desta porta fechada que a minha canção alterna entre a euforia do momento e a tristeza de já ter passado. É ainda atrás da porta fechada que está um motivo para cantar ainda.



Estendo as mãos à chuva torrencial e ao movimento dos dias.
Para continuar.



II


Quando era puto, corria muito. Nunca fui ágil, caía muitas vezes. É estranho imaginar-me pequeno, de cabelo curtinho e a correr. No verão andava de calções e esfolava quase sempre os joelhos. E lembro-me da minha mãe me desinfectar as feridas com álcool e betadine. Lembro-me do betadine a deslizar inesperadamente frio pela minha pele. Tinha a cor do sangue. E ardia.
Para mim, só dessa maneira fazia sentido ter feridas, dizer que me magoara, porque antes nem havia sangue suficiente para assim escorrer em abundância.
Não sabia,não podia saber, que a verdadeira dor e as feridas irreversíveis são limpas, sem sangue a escorrer nem pele esfolada para desinfectar com~álcool e betadine.
Agora sei.



6.10.09



*título de um livro de Agustina Bessa-Luís

in Brilho no Escuro nº3, edições Anjo da Guarda, Porto, 2009

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