domingo, 9 de setembro de 2012

O Centro - a Angústia

A angústia vem quando se perde o centro. Ser e vida separam-se. A vida é privada do ser e o ser, imobilizado, jaz sem vida e sem por isso morrer nem estar morrendo. Dado que para morrer é preciso estar vivo e, para o trânsito, vivente.
("Que eu, Sancho , nasci para viver morrendo" é uma confissão de um ser, além de vivo, vivente.)
O ser sem referência alguma ao seu centro jaz, absoluto enquanto apartado; separado, solitário. Sem nome. Ignorante, inacessível. Pior que um algo, despojo de um alguém. Some-se sem por isso descer nem mover-se, nem sofrer alteração alguma, resiste à desagregação ameaçadora. É tudo.
E a vida derrama-se do ser tirado do seu centro simplesmente. Não encontra lugar que a albergue, entregue à sua solitária vitalidade. Angústia do jovem, do adolescente e até da criança que divaga e tem tempo, todo o tempo, um tempo inabitável, inconsumível; situação derivada de não estar submetida a um ser e ao que o fixa, a um centro. Tende a voltar à condição primária, à avidez colonizadora; dissipa-se e até se afoga em si mesma, água sem margens, até que encontra, se felizmente encontrar, a pedra.
Reagir na angústia ou perante ela - Kierkegaard alcança neste ponto uma autoridade de mártir e de mestre - é o inferno. A quietude sob ela é indispensável. A quietude que não consiste em retirar-se mas em não sair do simples aguentar que é padecer. Neste padecer o ser acorda, vai acordando necessitado da vida e chama-a. Chama-a se resistiu à tentação inerte de continuar a vida no seu derramar-se. E quando a vida torna a recolher-sete é o momento em que o alguém, o habitante do ser - se não é o próprio ser - estabelece distância, uma diferença de nível para não ficar submerso pelo impulso da vida. E passa assim de estar sem lugar a ser o seu dono, enquanto é simplesmente erguido de um modo embriagador. Passa de ficar sem vida a ficar sozinho com essa vida parcial que volta pela sua docilidade de serva.
Pois a vida é como uma serva dócil à invocação e à chamada de quem aparece como dono.. Precisa do seu dono, de ser de alguém para ser de algum modo e alcançar de alguma maneira a a realidade que lhe falta.diante de si, sozinho nesta conjunção do ser com a vida, nesta mistura não estável, como se sabe. E assim antes de se separar na situação terrestre - a que conhecemos e suportamos - tem de fixar-se uma estranha realidade, a do próprio sujeito, a do ser que adquiriu pela vida, e graças a ela, a realidade própria. E a vida, serva fiel, poderá então retirar-se tendo cumprido a sua finalidade saciada por fim, sem avidez excessiva. E fá-lo-á deixando sempre algo da sua essência germinante, nada ideal nem que possa por isso ser captado; algo que pode somente reconhecer-se enquanto se sente, nessa espécie, a mais rara do sentir iluminante, do sentir que é directamente, imediatamente conhecimento sem nenhuma mediação. O conhecimento puro, que nasce na intimidade do ser, e que o abre e o transcende, "o diálogo silencioso da alma consigo mesma" que busca ainda ser palavra, a palavra única, a palavra indizível; a palavra liberta da linguagem.
E a realidade surge, a do próprio ser humano e que ele precisa de ter diante de si, sózinho nesta conjunção do ser com a vida, nesta mistura não estável, como se sabe. E assim antes de se separar na situação terrestre - a que conhecemos e suportamos - tem de fixar-se uma estranha realidade, a do próprio sujeito, a do ser que adquiriu pela vida, e graças a ela, a realidade própria. E a vida, serva fiel, poderá então retirar-se tendo cumprido a sua finalidade saciada por fim, sem avidez excessiva. E fá-lo-á deixando sempre algo da sua essência germinante, nada ideal nem que possa por isso ser captado; algo que pode somente reconhecer-se enquanto se sente, nessa espécie, a mais rara do sentir iluminante, do sentir que é directamente, imediatamente conhecimento sem nenhuma mediação. O conhecimento puro, que nasce na intimidade do ser, e que o abre e o transcende, "o diálogo silencioso da alma consigo mesma" que busca ainda ser palavra, a palavra única, a palavra indizível; a palavra liberta da linguagem.



3 Fragmentos do livro Clareiras do Bosque de Maria Zambrano, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1995

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