domingo, 25 de novembro de 2012

Anselm Kiefer


Ruy Belo - fragmento de poema



Deixará o poeta anónimas algumas
das palavras que deus lhe pôs na boca
ou esses longos versos onde cabe a emoção?
Quantas vezes nesse obscuro instinto de escrever
o poema terá sido para ele
mais que o lugar onde ia ver-se livre
das palavras que o sobrecarregavam?
Estará ele disposto a abandonar o requintado gosto
que têm as leituras junto ao vão da janela?

Senhores dos planos de urbanização
responsáveis pela paisagem
cuidado com o poeta na cidade
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra poeta

Palavras de Gastão Cruz sobre RUY BELO

 
«um dos mais grandiosos e complexos monumentos da poesia portuguesa, um monumento barroco, em que alguns dos mais relevantes caminhos e experiências da poesia portuguesa confluem numa síntese poderosa, que congrega características aparentemente tão demarcadas e raramente conciliadas, como um discurso torrencial, por vezes próximo da prosa, e uma imaginação verbal inesgotável, por um lado, e, (...) por outro, como uma permanente dissecação da vida e da realidade quotidianas, em contraponto com uma antevisão, ora irónica, da morte própria e uma inquietação perante a morte alheia não menos constantes». Em seguida, o crítico reconhece estar diante do «autor dos poemas mais rigorosamente analíticos da realidade portuguesa, diria mesmo: é o mais fascinadamente realista dos poetas portugueses do século XX».
 
 
 
COLÓQUIO Letras, nº178, Dezembro 2011.

domingo, 4 de novembro de 2012

«Como um grito a noite acende o lado sonolento do coração.» Al Berto



Al Berto


A propósito da publicação DIÁRIOS de Al Berto pela Assírio & Alvim, Outubro de 2012



«Caminhos nocturnos, incertas travessias»
 
 
Há um tempo angustiado e silencioso na escrita de Al Berto, um tempo inexplicável que precede o desenrolar dos sentidos, tumultuado por «inscrições premonitórias», e marcado por afinidades com o Chronos.
é o tempo em que «chegara o momento de começar a escrever», de distinguir os jogos literários das velhas cicatrizes pintadas», de «saltar as grades das palavras», levantar «os pés do chão» e vogar «pela ânsia do primeiros livro».
É um tempo de «escrita frenética», de esvaziamento desamparado na noite sem fundo. Um tempo feito de um conglomerado de matérias em estado larvar, um tempo em que os homens são animais, em que o próprio escritor meio anfíbio fala com duas barbatanas a saírem-lhe da boca:(...) lentamente movo a cabeça de peixe fluorescente que me habita, é esta a cabeça do escritor, duas barbatanas a saírem-lhe da boca e um vómito no olhar»1
Os indícios desse conglomerado de tempo emergem como «pulsações bruscas, fragmentadas» (M,p.64) usam nomes despertados pelo desejo, são corpos nascidos duma mancha de tinta» (M,p.41), são pedaços do mundo em movimento que «atingem a velocidade da emergência», imagens-pulsão que ressoam o «som alucinante do alarme e da cesariana» (M,p.64). (...)
É o tempo dos diários - uma imagem «primitiva», «embrionária», uma imagem -pulsão, que dá a ver um mundo originário, que advém nesse estado complicado do tempo que cabe desenrolar: « Um projecto assalta-me: Escrever incessantemente para poder deixar de escrever.» (D1982, 27 de Maio); «É noite, eu sei, (...) Não deveria preocupar-me com mais nada que não fosse escrever. Viver plenamente as alegrias e frustações da minha vida de "homem que escreve", com toda a humildade que essa vida tem para mim. Como um grito a noite acende o lado sonolento do coração.» (D1982, 28 de Maio).
(...) O que importa é fazer da vida uma obra de arte, como se literatura e existência estivessem ligadas, unidas no mesmo andamento -«Pessoalmente, não consigo separar a vida da literatura e vice-versa. Está tudo profundamente ligado. Para mim, é assim: tem de haver uma grande coerência na maneira como se escreve, como se vive, como se está no mundo, senão nem a vida nem a poesia fazem qualquer sentido. (...)»2 ou ainda: «Escrever, pelo menos no que me diz respeito, é um projecto que assenta em grande parte, na maneira como estou na vida, na maneira como me vou dimensionando com o que me rodeia.» (D1984, 5 de Fevereiro). (...)


Golgona Anghel



1 Cf. Al Berto, O Medo (M), Lisboa, Assírio&Alvim, 2005, p.28.
2Cf.Jornal de Letras, 23 de Abril 1997, Al Berto: O poeta como viajante» entrevistado por Maria João Martins com Ricardo Araújo Pereira.

sábado, 3 de novembro de 2012

Luiza Neto Jorge à varanda da sua casa na Rua do Mundo (actualmente Rua da Misericórdia), anos 50. Lisboa.


Poema de Luiza Neto Jorge

Desinferno II



Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amor

O livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria


 


Luiza Neto Jorge, in “Poesia”