segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

domingo, 23 de dezembro de 2012

Escadas


O FIM DA ESCADA



A estranha sensação de ter morrido
em Viena, numa tarde de outono de 1992,
numa casa cuja escada nunca subi.
De ser desde então um intruso, um farsante,
o actor sem futuro de uma comédia má.
De que o destino. implacável e rasteiro,
se vingou na longa noite de um hospital,
nas horas vazias que tento preencher.
Inventar, não heterónimos como fez Pessoa,
mas algo mais simples, o homem que escreve agora,
a medíocre perseverança dos seus feitos,
enquanto, insistente, me tenta a ideia de voltar,
de subir de vez os degraus, de bater a uma porta.
Mas quem sabe se ainda uma história pior,
um horror mais nítido me espera ali,
no fim da escada, diante da imaginada porta?


Juan Luís Panero


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa
 


UM LONGÍNQUO ADEUS



Falamos, melancólicos, às três da madrugada,
tristes, não demasiado bêbados,
naquele ruidoso bar para noctívagos.
Curiosamente, insistimos no tema da morte
e recordou-me outras conversas, outro tempo,
embora neste momento, fosse uma morte próxima - muito pouco literária -,
sórdida e tangível como as manchas da toalha.
Na porta ao sair ficamos sérios,
sabíamos que de novo nos separávamos
e fingimos esquecê-lo com uma expressão banal.
Hoje, não sei porquê, voltam essas imagens
e gostaria de reviver aquela noite,
nem melhor nem pior, o que foi, simplesmente.
Reter por um momento, só por um momento,
a humidade dos teus olhos, o ricto do teu sorriso,
o que me chega como uma pintura desbotada,
ou como, ao despedir-nos, as gotas de chuva no vidro do carro,
a desenharem um caminho, a resvalarem, a apagarem-se.


Juan Luis Panero


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012


Ruy Belo - Sempre!



A MÃO NO ARADO


Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o  asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infãncia
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente




Ruy Belo

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


O RIO DA POSSE

 
 
Que todos somos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós.
A vida é, por isso, para os indefinidos, só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguém.
 
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age , se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no outro.
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio como escala pelos outros.
 
 
Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego"

sábado, 15 de dezembro de 2012

Graça Martins - Ainda sem Título!



Poema de João Borges




A FIGURA E O SEU DUPLO*

 
Espelho
enquanto alguns rostos
são devorados pelas trevas,
outros se mostram à luz.
Não tens esperança,
não vês a aridez?
Por que fechas os olhos?

 
Espelho
desiste-se da vida assim
sem insistir? Sem se despenhar
pelas ravinas do esquecimento?
Por que ficas quieto,
por que tens medo?

 
Espelho
por que mostras um acrobata
paralisado pela sua natureza?
Porquê essa velhice tão final,
essa inclinação para a sepultura,
se nada te pede para morrer?

 
Espelho
não são os gritos um sinal de vida?

 
Espelho
não esqueces nada, ficas à espera,
com os dias perdidos,
há quanto tempo podias ter saído,
procurar um princípio e um verbo?

 
Espelho
esquece as palavras,
respira.
 

Lisboa, 20.4.10


*título de uma pintura de Graça Martins