domingo, 9 de setembro de 2012

Maria Zambrano


A Filósofa de escrita "inspirada"

Maria Zambrano nasceu em 1904 em Veléz-Málaga. Estudou Filosofia na Universidade de Madrid, onde foi assistente de Ortega y Gasset. A guerra civil de Espanha, em que participou na defesa da República, levou-a ao exílio em 1939. Foi professora em universidades do México, de Cuba e de Porto Rico, até voltar para a Europa em 1953; mas só regressou a Espanha em 1984, falecendo em Madrid em 1991; em 1988 obteve o Prémio Cervantes, o maior galardão literário do mundo de língua espanhola.
A partir de 1930 publicou obras fundamentais do pensamento espanhol contemporâneo.
Com uma cultura invulgar e uma capacidade de escrita que dir-se-ia inspirada, onde o rigor inclui a densidade e a sedução poéticas, Maria Zambrano é um dos maiores escritores espanhois deste século, um espírito que tem de ser considerado para se compreender, desde a sua origem e até hoje, o que é a Espanha.

MARIA ZAMBRANO - O Vazio e a Beleza


A beleza faz o vazio - cria-o -, tal como se essa face que tudo adquire quando está banhado por ela viesse de um longínquo nada e a ele tivesse de voltar, deixando a cinza do seu rosto à condição terrestre, a esse ser que da beleza participa. E que lhe pede sempre um corpo, o seu traslado, do qual por uma espécie de misericórdia lhe deixa às vezes o rasto: pó ou cinza. E em vez do nada, um vazio qualitativo, fechado e puro ao mesmo tempo, sombra da face da beleza quando parte. Mas a beleza que cria esse seu vazio, fá-lo seu depois, porque lhe pertence, é a sua auréola, o seu espaço sacro onde fica intangível. Um espaço onde ao ser terrestre não é possível instalar-se, mas que o convida a sair de si, que leva a sair de si o ser escondido, alma acompanhada pelos sentidos; que arrasta consigo o existir corporal e o envolve, unifica-o. E no próprio limiar do vazio que cria a beleza, o ser terrestre, corporal e existente, rende-se; rende a sua pretensão de ser separadamente, e até a de ser ele, ele próprio; entrega os seus sentidos que se tornam unos com a alma. Um acontecimento a que se chamou contemplação e esquecimento de todo o cuidado.

O Abismar-se da Beleza

A beleza tende para a esfericidade. O olhar que a recolhe quer abrangê-la toda ao mesmo tempo, porque é una, manifestação sensível da unidade, suposto da inteligência do que tão fácilmente ao ficar preso de "isto" ou "aquilo" e da sua relação, sobretudo da sua relação, se desprende. Já que isto ou aquilo considerado desinteressadamente mostra a sua unidade, não sua talvez, mas unidade ao fim e ao cabo.
E a beleza na qual depois distingue a inteligência, elementos e relações até com os seus números, oferece-se ao aparecer como unidade sensível. E a mente de quem a contempla tende a assimilar-se a ela, e o coração a bebê-la, num só hausto, como seu cálice ansiado, o seu feitiço.
Porque a beleza ao mesmo tempo que manifesta a unidade, a unidade que não pode proceder senão do uno, abre-se. Não se apresenta ao modo do ser de Parménides, ou daquele que crê que é esse ser. Abre-se como uma flor, que deixa ver o seu cálice, o seu centro iluminado que logo acaba por ser o centro que comunica com o abismo. O abismo que se abre na flor, nessa única flor que se ergue no prado, que se ergue mal acaba de abrir inteiramente. Logo que aberta, como distância que convida a ser olhada, a que se debrucem sobre o seu cálice violáceo, por vezes branco. E quem se debruça sobre cálice desta flor una, a única flor, arrisca-se a ser raptado. Risco que se cumpre na Perséfone dos sacros mistérios. A rapariga, a inocente que olha o cálice da flor que mal se ergue, junto ao abismo e que é o seu chamamento, a sua abertura. E não seria necessário - dizendo-o com perdão do sagrado mito de Elêusis - que aparecesse o carro do deus dos ínferos. O único abismo que no centro da beleza, unidade que procede do uno, se abre, bastaria para se abismar. E assim a esperança diz: até que o abismo do uno se erga todo; até que Deméter Alma não volte a ter que se pôr de luto.

O Centro - a Angústia

A angústia vem quando se perde o centro. Ser e vida separam-se. A vida é privada do ser e o ser, imobilizado, jaz sem vida e sem por isso morrer nem estar morrendo. Dado que para morrer é preciso estar vivo e, para o trânsito, vivente.
("Que eu, Sancho , nasci para viver morrendo" é uma confissão de um ser, além de vivo, vivente.)
O ser sem referência alguma ao seu centro jaz, absoluto enquanto apartado; separado, solitário. Sem nome. Ignorante, inacessível. Pior que um algo, despojo de um alguém. Some-se sem por isso descer nem mover-se, nem sofrer alteração alguma, resiste à desagregação ameaçadora. É tudo.
E a vida derrama-se do ser tirado do seu centro simplesmente. Não encontra lugar que a albergue, entregue à sua solitária vitalidade. Angústia do jovem, do adolescente e até da criança que divaga e tem tempo, todo o tempo, um tempo inabitável, inconsumível; situação derivada de não estar submetida a um ser e ao que o fixa, a um centro. Tende a voltar à condição primária, à avidez colonizadora; dissipa-se e até se afoga em si mesma, água sem margens, até que encontra, se felizmente encontrar, a pedra.
Reagir na angústia ou perante ela - Kierkegaard alcança neste ponto uma autoridade de mártir e de mestre - é o inferno. A quietude sob ela é indispensável. A quietude que não consiste em retirar-se mas em não sair do simples aguentar que é padecer. Neste padecer o ser acorda, vai acordando necessitado da vida e chama-a. Chama-a se resistiu à tentação inerte de continuar a vida no seu derramar-se. E quando a vida torna a recolher-sete é o momento em que o alguém, o habitante do ser - se não é o próprio ser - estabelece distância, uma diferença de nível para não ficar submerso pelo impulso da vida. E passa assim de estar sem lugar a ser o seu dono, enquanto é simplesmente erguido de um modo embriagador. Passa de ficar sem vida a ficar sozinho com essa vida parcial que volta pela sua docilidade de serva.
Pois a vida é como uma serva dócil à invocação e à chamada de quem aparece como dono.. Precisa do seu dono, de ser de alguém para ser de algum modo e alcançar de alguma maneira a a realidade que lhe falta.diante de si, sozinho nesta conjunção do ser com a vida, nesta mistura não estável, como se sabe. E assim antes de se separar na situação terrestre - a que conhecemos e suportamos - tem de fixar-se uma estranha realidade, a do próprio sujeito, a do ser que adquiriu pela vida, e graças a ela, a realidade própria. E a vida, serva fiel, poderá então retirar-se tendo cumprido a sua finalidade saciada por fim, sem avidez excessiva. E fá-lo-á deixando sempre algo da sua essência germinante, nada ideal nem que possa por isso ser captado; algo que pode somente reconhecer-se enquanto se sente, nessa espécie, a mais rara do sentir iluminante, do sentir que é directamente, imediatamente conhecimento sem nenhuma mediação. O conhecimento puro, que nasce na intimidade do ser, e que o abre e o transcende, "o diálogo silencioso da alma consigo mesma" que busca ainda ser palavra, a palavra única, a palavra indizível; a palavra liberta da linguagem.
E a realidade surge, a do próprio ser humano e que ele precisa de ter diante de si, sózinho nesta conjunção do ser com a vida, nesta mistura não estável, como se sabe. E assim antes de se separar na situação terrestre - a que conhecemos e suportamos - tem de fixar-se uma estranha realidade, a do próprio sujeito, a do ser que adquiriu pela vida, e graças a ela, a realidade própria. E a vida, serva fiel, poderá então retirar-se tendo cumprido a sua finalidade saciada por fim, sem avidez excessiva. E fá-lo-á deixando sempre algo da sua essência germinante, nada ideal nem que possa por isso ser captado; algo que pode somente reconhecer-se enquanto se sente, nessa espécie, a mais rara do sentir iluminante, do sentir que é directamente, imediatamente conhecimento sem nenhuma mediação. O conhecimento puro, que nasce na intimidade do ser, e que o abre e o transcende, "o diálogo silencioso da alma consigo mesma" que busca ainda ser palavra, a palavra única, a palavra indizível; a palavra liberta da linguagem.



3 Fragmentos do livro Clareiras do Bosque de Maria Zambrano, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1995