quarta-feira, 23 de outubro de 2013

HEART


Clarice Lispector

"Mesmo os que gostavam muito de Clarice a achavam cansativa. Ela evocava nos outros uma sensação de protecção, uma ânsia de a ajudar no seu grande sofrimento, embora os amigos deixassem bem claro que ela não lhes pedia nada. "era mais um sentimento que ela despertava na gente", disse Rosa Cass. E a carência de Clarice era extenuante. Tati de Moraes, a primeira das nove mulheres de Vinícius de Mora...es, perguntou uma vez a Rosa: "Há quanto tempo você é amiga de Clarice? Porque ninguém aguenta isso muito tempo."
A nível artístico e intelectual, Clarice era absolutamente independente, mas a nível emocional era tão dependente como uma criança. Nos seus livros de apontamentos pessoais, ela falava da dificuldade de se relacionar com as outras pessoas:
"Me perguntei se eu não evito aproximação com as pessoas por medo de vir a odiá-las. Com todo o mundo me dou mal. Eu não tenho tolerância. Ela me disse (...) que sou uma pessoa difícil de dar carinho. Respondi: bem, não sou o tipo que inspira carinho. Ela: você quase que empurra a mão que lhe dão para ajudar. Às vezes você precisa de ajuda, mas não pede."
Clarice não diz o nome da mulher com quem estava a ter esta conversa, mas o tom sugere uma terapeuta, Inês Besouchet, ou a mulher que ela começou a consultar no início de 1968, Anna Kattrin Kemper, conhecida por Catarina. Kemper era uma amiga alemã de Inês Besouchet e de Hélio Pellegrino, e tinha vindo para o Rio de Janeiro depois da guerra.
Clarice tinha vergonha ou sentia-se inquieta, pelo facto de fazer psicanálise, e não queria que essa informação se tornasse pública."

CLARICE LISPECTOR, Uma Vida, Benjamin Moser, Civilização Editora, 2009.

domingo, 20 de outubro de 2013

A POESIA VAI ACABAR


A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: " Que fez algum
poeta por este senhor?" E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? -


Manuel António Pina

Algo parecido com isto, da mesma substância, Afrontamento, 1992.

O Corpo Desenhado



Talvez a linha se acenda e continue
ondeando a página e sendo nós só a margem
de um domínio onde fulge a inocência,
talvez se revele a transparência inicial
em que a luz de estar a ver seja a palavra mesma.

Vêm figuras que se espraiam e crescem
até serem apenas ondulada memória.
Adensam-se outros corpos e enterram-se no fogo.
As linhas enovelam-se num delírio exacto.
A alegria ilumina penumbras de volumes.

Em tensos membros lúcidos e redondos
move-se o desenhado corpo ligeiro
e lento. Aumenta a densidade até ao centro
de um deus que diz o esplendor silencioso.
Ou só o ar ondeia num planalto de vento.


António Ramos Rosa

Volante Verde, Moraes Editores, Lisboa, 1986.