quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Poema de Isabel de Sá

Fui à rua buscar a morte que andava desaustinada pelas paredes como um cão raivoso. Ofereci-lhe o braço, trouxe-a comigo, fi-la minha amante. Num leito de linho nos deitámos e em segredo me falou dias seguidos sobre a sua infância, a solidão debaixo da terra, o amor pela natureza. Explicou-me como acariciava os bichos comedores de cadáveres e dessa alegria maliciosa.
A morte passou a ter para mim muita importância. Comecei a vesti-la de alvas roupas, coser-lhe flores ao crânio, amando-lhe a face lívida, iniciando-a numa sensualidade sem fim.
Então, numa manhã a Morte sorriu mostrando nos seus lábios o seu carácter perfeito, isento de mesquinhez; beijou-me a boca, as pernas, o coração. Perturbou-me.
No meu interior países fervilharam, milhões de rostos se viraram à luz:
Tudo era claro como nunca sucedera.
Começara outra vida: dera-se a iluminação.

In Esquizo Frenia, &etc, Lisboa, 1979.

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