HÁ UM LUGAR CHAMADO MEDOUMHá um lugar chamado medoA cidade, ao longe o ruído.Ficámos sózinhos, peças de xadrezna mancha escura do silêncio,de um lado para o outro, à espera.Não me disseram que o tempo passariae tu também. A morte repetidacomo se fosse a primeira vez.No longo e doloroso abraço,o sabor amargo da vidatornou-se leiDOISO sangue risca as páginas,dizes que não queres nada.As tuas mãos, na pressade quem não tem tempo a perder,tomaram-me conta do corpo.Depois, atiraste as cinzas para a rua. Perderam-se na chuva.TRÊSÀ hora em que a chuvafaz das estradas espelhoe a cidade se duplica,dentro de ti encontroo calor que me salva da mortee me prende outra vez ao teu corpo.QUATROPor vezes não sei dizer-teque sou o ar e as paredesda casa onde te refugias.Arremessei a minha vidanum abraço queimado pelo medo.Procuro um lugar onde o tempoperdoe a solidão.Esperei pela noite na alameda,a tua casa atrás de mim,sombra a crescer de rua em rua.a sublimar o medo.CINCO
Em vão procurei o sabor da terra
para não morrer.
O teu amor é ácido.
Destroçado, assim me deito
na madrugada cheia de luz.
Não te lembras do café quase vazio
e nós, no lado escuro da vida?
SEIS
Na memória apaga-se o teu rosto
e o coração engole o fogo
que me consome.
Se eu corresse pela praia
e a terra se movesse
e eu fosse sugado
para o interior da vida
no seu furioso silêncio,
finalmente só e íntegro,
encontrar-me-ia.
cràse, revista de literatura emergente, nº0Novembro de 2009, Lisboa
MAPA ANATÓMICO
a Luís Miguel Nava
Para António Damásio estou debruçada à janela
do meu corpo. Posso contemplar os objectos da paisagem:
coração, pulmões, intestinos, músculos.
As vísceras são o meu cenário como um poema
de Nava e há sentimentos que me unem a cada uma
e a todas elas quando uma dor explode nas entranhas,
mas para Damásio sou apenas um espectador solidário
do outro lado do vidro. Nava sabia como um cenário
se despedaça entre as rochas, como a pele é a raíz
e a flor do sofrimento.
Desde a descoberta da perspectiva que estamos à janela
com um olho bovinamente parado. Dizem-me agora
que contemplamos um pátio interior, um rim? Não sentem
que o desespero tem uma face oculta para o sentirmos
e outra iluminada por um sol afundado no manto
dos intestinos? O cérebro de Damásio continua cativo
do teatro do seu corpo e eu devia ter metido citações.
Aprendi muito com ele, mas foi Nava quem me disse
que todos os caminhos vão dar à pele.
Soletrar o dia, obra poética, Quasi Edições, 2002