CICUTA


Debruça-te amor
e colhe-me a manhã

bebe-me o hálito
morde-me os gemidos

eu sou o copo
de cicuta

           (o vinho)

com o qual envenenas
os sentidos


Maria Teresa Horta
MÃE


mãe
terminou o tempo
de sorrir
desculpa-me a morte
das plantas

tatuei a tua antiga
imagem loura
em todos os pulsos
que anjos inclinam
de existires

perdi-me noite na planície
branca
sobrevivente das madrugadas
da memória

trocaram-me os dias
e as ruas de ancas
verticais
e nas minhas mãos incompletas
trouxe-te
um naufrágio
de flores cansadas
e o único jardim de amor
que cultivei
de navios ancorados
ao espaço


Maria Teresa Horta
TU


Com esse teu ar
de arcanjo negro

pálido e magro
triste e alheado

ficas por vezes quase etéreo
calado
enquanto eu te olho docemente

Num espanto condenado
quase místico
debruço-me secreta à tua beira

e numa espécie de prece
porque existes

alheado - magro
belo e triste

estou de joelhos
meu amor
e beijo-te


Maria Teresa Horta

O Silêncio dos Poetas - Alberto Pimenta

(...)

A palavra como barreira

Isto explica muitas coisas: explica antes do mais o motivo porque um dos temas mais insistentes da poesia moderna é o da limitação proveniente do facto de ter que exprimir-se e da concessão implícita nesse acto. Fernando Pessoa formulou-o de modo bem claro:

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flôres
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flôres e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque sou só essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

Não será este igualmente o significado do poema Kubla Khan  de S.T. Coleridge, aparentemente tão enigmático no seu conjunto de circunstâncias biográficas e instrumentais? O poema existia acabado e real no espírito do autor, mas perdeu-se no momento em que estava a ser escrito: perdeu-se por conseguinte no momento em que deveria estabelecer-se o compromisso com a expressão, o compromisso da experiência com a memória  (linguística) dessa experiência. Sartre, sempre generoso com os poetas, diz também:

«O poeta está fora da língua, vê as palavras ao contrário, como se não pertencesse à condição humana e, chegando junto dos homens, começasse por encontrar a palavra como uma barreira».

Esteticidade e comunicação

Quem com efeito busca conhecimento concreto, quem não se contenta com ver a «realidade» apenas reflectida no espelho dos símbolos (no espelho do eu?), forçosamente considera que o espelho é um obstáculo e dificilmente um caminho. Sendo assim, o grau de esteticidade de uma obra  literária está também na proporção inversa do seu compromisso com os símbolos apriorísticos, isto é, na proporção inversa da sua  aceitação da «realidade» presente (reflectida) nos ditos símbolos.
Resulta daqui que quanto maior é a esteticidade, tanto menor é o grau de comunicação «objectiva» desta arte e, por conseguinte, tanto menor é a sua aceitação por parte do público,  o qual não costuma dispor-se facilmente a abandonar a harmonia simbólica pré-estabelecida do seu conhecimento. Sucede então o que Bourdieu define assim:

«É por isso que os observadores menos cultos das nossas sociedades têm tanto a tendência de exigir uma 'representação realista'; como não dispõem  das categorias específicas de apreensão, aplicam às obras de arte conhecidas a mesma chave que lhes serve para atribuir um sentido aos objectos da vida cotidiana».


Ensaios, A Regra do Jogo, 1978, Lisboa.