sábado, 11 de outubro de 2008

Cindy Sherman

Historical Portraits



Entrevista de Cindy Sherman

(fragmento)

Margarida de Medeiros

Fotografia e Narcisismo

O auto-retrato contemporâneo

Assírio & Alvim

Cindy Sherman - Para mim , toda a ideia de nudez em arte é muito aborrecida, porque está muito ligada à glorificação do corpo da mulher, e em certos casos ligada ao erotismo. A representação do homem nu na arte não parece estar relacionada eroticamente com as mulheres, não é a mesma forma de erotismo. Parece mais uma afirmação de grandeza e de força. Agora é diferente, mas continua a não estar relacionada com as mulheres, mas com os homens, na homossexualidade, o que é uma coisa em que estou a trabalhar mais recentemente. A ideia de incorporar a nudez no meu trabalho nunca teve a ver com a ideia de me revelar a mim mesma. Houve pessoas que me falaram disso, por que é que não aparecia a minha nudez, mas nunca achei que isso fosse uma forma de me revelar. Por isso, as próteses que surgem, as barrigas, os seios, é uma forma de falar da nudez, preservando um lado composto, artificial, sem ter de usar a minha própria nudez.(...) Mas para mim faz muito mais sentido usar próteses, até porque acho que há algo de tão artificial na representação tradicional da nudez, desde há séculos!...Ou mesmo nas revistas de nus, tudo aquilo é tão artificial, as mulheres não se parecem com aquilo.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Imagem do filme Henry and June


AMORES
A relação amorosa de Anäis Nin com Henry Miller e a sua mulher June expôs-se ao mundo rasgando os limites que protegem a vida da literatura. Mas outras trindades de paixão vieram à luz, dos finais do século XIX aos anos loucos de entre as duas guerras. São histórias virtiginosas de entrega, prazer e dilaceração.
Santíssimas Trindades

Quiseram amar à maneira dos deuses, fugir do egoismo simples da exclusividade e atingir o céu de todas as entregas. Derraparam às vezes nas humanas fragilidades. Sofreram de ciúmes em estereofonia. Sentiram a solidão maior do prazer absoluto. Arriscaram os pudores da pele. Renderam-se aos sentidos com a vertiginosa seriedade das crianças. Viveram em triângulos expostos, crucificaram-se em êxtases que ainda hoje escandalizam um mundo pouco sensível à religião da intimidade. Anäis Nin, Henry Miller e June repousam agora num paraíso circular de sedução ao lado de Frida Kahlo, Diego Rivera e Léon Trotski. E de Lou Salomé, Friedrich Nietzche e Paul Rée. Um paraíso onde Alma Mahler, que aparentemente gastou no nome a sua capacidade de essência, arrastará uma pomposa cauda de talentos: Gustav Mahler, Walter Gropiu, Oskar Kokoschka e Franz Werfel. (...)
Estes seres tinham em comum o desprezo pela felicidade, incapaz de suportar a febre e a alegria negra da dilaceração. Viviam de resurreição em resurreição: eram budistas tântricos sem método: libertavam energias que não sabiam controlar, queimavam-se no seu fogo purificador.
(...)
Inês Pedrosa

domingo, 5 de outubro de 2008

Um dos lugares da ESCRITA








Fotos de Graça Martins

Poema de LUÍS MIGUEL NAVA

Paisagens

São outras as paisagens quando alguém
as vê pelas janelas do seu próprio coração ou quando
com esse coração
a própria estrada está comprometida.

Rebentação, & etc, Lisboa, 1984
DUAS FOTOS DE ISABEL DE SÁ









Foto de Graça Martins, 1977

Foto de Graça Martins, publicada no Jornal Expresso/ 17 de Setembro de 2005
integrada no texto de António Guerreiro "O rosto e as máscaras", a propósito
do livro Repetir o Poema.
Poema de ISABEL DE SÁ

publicado na revista RELÂMPAGO nº18, Abril de 2006

A VERDADEIRA BIOGRAFIA

A minha biografia
é evidentemente excepcional.
Tive um Pai uma Mãe
nasci numa Casa
fui à Escola da vila
depois do concelho.
Mudei de distrito para
continuar
e o caminho da instrução
concretizou-se na Faculdade
de Belas Artes.

Da infância passada em plena
Natureza lembro
a beleza das estações do ano
os rituais católicos
uma criada preferida
o instante em que aprendi a ler.
Chegou a adolescência
e com ela a certeza
Quero ser professora de Desenho.
Suponho que a Biblioteca
me salvou do desastre
interior.
Tinha dezassete anos
e requisitei "Uma Época
No Inferno" de um rapazito
chamado Jean-Arthur Rimbaud.

Na Biblioteca o empregado
olhava-me sempre com reserva.
Eu estudava o quê?
Um dia livros de medicina
outro dia de poesia.
Então a ciência é poética?

A entrada na vida adulta
aliada à independência
e ao amor: O meu país
sofreu uma revolução. A democracia
não honrou ainda a sua palavra.
Cumpro deveres e não posso
usufruir de direitos proporcionais.
Eu e alguns milhares
neste sentimental canto
europeu sob um regime
semiditatorial
contribuo
para a sopa e os vícios
de alguns milhares de parasitas.

Mudando de assunto a pátria
é grande e a família também.
Para mim já passou
o meio século. Já foi o Pai
a Mãe e o Irmão mais velho.
Estou por cá à espera
certamente.

Não é provável que me entregue.
Conheci o galinheiro do confessionário
ajoelhei-me diante do altar
da virgem. Apaixonei-me.

Também recebi um terço de prata
no dia da comunhão solene.
E na hora exacta o óleo
perfumado do crisma.

Sempre que vou a uma missa
de corpo presente lá está o mesmo altar
com a deslumbrante
virgem. Entretenho-me
a recordar que já tive
quinze anos e também
adorei.

Depois a Páscoa a soturna
via sacra onde sofria
pela minha dor
e as beatas exibiam lágrimas
como dádiva pelo calvário
a que Jesus foi sacrificado.

Jesus era belo na sua passividade.
Os longos cabelos
o olhar suplicante
as pernas
o tronco liso
o ventre. Por fim
a entrega. Braços abertos
para o bem e para o mal.

Agora neste dois mil e seis
trata-se de insistir. Já é tarde
para quase tudo.
Os meus contemporâneos alimentam
uma curiosidade fétida.
A obra é minha. Faço
o que quero. Escondo
rasgo
mostro
transformo
entrego ao crematório
deixo aos herdeiros
ao vaticano
não deixo.

Nunca esmolei. Não fui pobre.
Mas os sinais da exclusão
o ódio é tão luminoso
que seria patético
psicotisante até
não articular sequer
estes versos
antes da eutanásia.
Página da HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, 2002
ANOS 70 e 80 - POESIA por
FERNANDO PINTO DO AMARAL


sábado, 4 de outubro de 2008

«Importa-se que não fume?»

Groucho Marx
Post dedicado ao blog CAMEL & COCA COLA

CIGARROS CAMEL

Fragmento do livro O Prazer de Fumar Cigarros de JAMES FITZGERALD

(...)

Mais de metade da turma, mas sobretudo a maioria dos meus amigos, tinha tomado a decisão de fumar e ia para o monte. Os reis do monte ou tinham conseguido ser admitidos muito cedo ou não estavam a pensar na faculdade, personagens pretas e brancas que fumavam, todas, Camel. Eu queria entrar naquele grupo de rebeldes. Comecei a cravar cigarros e a andar com eles a cantar canções de Bob Dylan ( que tinha aparecido na capa da revista Life com uma camisa de trabalho estilo Woody Guthrie a fumar um Camel ) e a praguejar em silêncio contra aquele curioso processo por que estávamos a passar - crescer. Nessa altura, o tempo passou depressa . Ia para a faculdade. Após três dias de adaptação, assinatura de documentos e escolha do programa, (...) fui para o edifício da associação de estudantes e comprei o meu primeiro pacote de cigarros. Tinha chegado. Era oficial. Na faculdade, os cigarros adaptavam-se a qualquer situação e a qualquer pessoa com quem se estivesse. Fumava cigarros sem filtro quando tinha de ficar a pé toda a noite, cigarros com filtro na aula do professor liberal de Filosofia, que nos deixava fumar ao mesmo tempo que ele fumava e nos ensinava os meandros do pensamento Kierkegaardiano. Os de mentol eram para o dia seguinte e para gargantas inflamadas; havia Marlboro nas máquinas de cigarros dos bares (...) Todos cravávamos cigarros uns aos outros e passávamos alegremente o tempo de faculdade a fumar. (...) Tinha um isqueiro há dois anos que conseguira não perder e fixara-me numa marca específica; até era conhecido pela minha marca. A opção foi pelos Camel: era exótico, duro (adoro a cor amarela) e a minha mãe fumava-os - uma vez disse-me que eles provocavam sempre a mesma reacção: « Ah, fuma Camel?» As pessoas conheciam-me e identificavam-me com aqueles Camel, ainda que eu experimentasse outras marcas...


SABIA?

Um anúncio na revista Life, em 1915, oferecia o serviço personalizado de marcar cada cigarro com o monograma da pessoa se se encomeendassem quinhentos cigarros ou mais.

«CAFÉ E FUMAR SÃO OS ÚLTIMOS GRANDES VÍCIOS»

Lara Flynn Boyle

E AGORA O OUTRO LADO DO TABACO

«Acreditar que fazemos alguma coisa quando não fazemos nada é a primeira ilusão do tabaco.»
Ralph Waldo Emerson
«Não me importava de ver morrer a ópera. Desde rapaz que considerava a ópera um pesado anacronismo, quase o equivalente a fumar.»
Frank Lloyd Wright
«É fácil deixar de fumar. Já o fiz centenas de vezes.»
Mark Twain


















ANDY WAHROL ???
JOE CAMEL


Os cigarros CAMEL são uma marca associada ao masculino.
Homem galã, elegante, sedutor e aventureiro .
O jovem Joe Camel representa a atitude da aventura . Marca fundada em 1913 e que ainda hoje assume o ícone de um estilo.

CAMEL


quinta-feira, 2 de outubro de 2008

TRAGICOMÉDIA a LÍDIA JORGE de INÊS LEITÃO

Foi no Marquês que Lídia passou por mim: a sua pele hidratada, os seus cabelos cor de trigo espetados no pescoço à laia de espadachins de ferro; o seu casaco, o seu corpo de costas. Lídia trazia o DN na mão direita. Lídia Jorge não me disse adeus e seguia tranquila como se a avenida da Liberdade fosse sua, como se o passeio fosse a imensa continuação das suas magras pernas brancas. Lídia trazia um casaco branco sintético e os meus dedos quiseram tocar-lhe as pontas dos espadachins da cara. No momento em que me viu, Lídia Jorge disse:
- conheço-a?

E uma mulher pequena deixou cair a carteira.

Eu queria tanto tocá-la, Lídia. A sua pele branca a cheirar a jasmim, o seu casaco branco até aos joelhos à laia de dama vicentina que se protege dos outros, o rigor das suas calças pretas, os seus olhos pequenos escondidos atrás dos óculos escuros(os seus olhos do outro lado da pele) as minhas mãos a quererem tocar a ponta dos seus olhos cor de lama, Lídia
-eu?

Eu a querer convidá-la para um chá: falaríamos de nós, dos nossos livros, daquilo que pensamos à noite quando nenhum homem entra Lídia, quando nenhum homem nos toca na nossa cama e ficamos só nós: nós como só nós sabemos ser- Helena de Tróia, Lídia, eu conheço Helena de Tróia
Eu vi-a, eu disse-lhe olá e a Lídia não me reconheceu- O Forza Leal, Lídia, Moçambique nos anos 60 não pode ser diferente de Moçambique de 2005: a mesma Avenida Lenine no filme da Margarida, Lídia

a Margarida Cardoso a tocar-lhe os ombros na televisão com um casaco que pediu emprestado para a conhecer: eu sozinha no sofá com um vestido preto de seda à espera que a Lídia saísse do ecrã e me abraçasse. A Lídia a dizer
- sim?

E eu a vê-la ir, Lídia, a vê-la ir sem que a Lídia me colocasse a mão na testa, eu sem sentir o seu abraço que cheira a jasmim(a Lídia não precisa de se aproximar para eu saber àquilo que cheira)
- a senhora não me conhece, desculpe
Eu a pedir desculpa pelo encontrão, Lídia, a Lídia a abraçar-me, a insistir para pagar o chá, as torradas, os brioches. Nós íntimas, Lídia, a Lídia a falar-me das personagens do seu novo livro, a Lídia a dizer-me que gosta de Redfish e eu a jurar-lhe que tem de vir cá a casa conhecer a minha mãe e o peixe que coze no nosso forno aos sábados( o tomate a descansar em cima do redfish com as cebolas e os pimentos, como se todos eles naquele forno fossem uma grande família Victoriana que se reencontra aos sábados)
a Lídia a jurar-me que a minha imaginação é desleal com a realidade, e nós sentadas num afamado hotel da capital a beber chá de maçã vermelha, com toda a gente a ver.
Lídia Jorge atravessou Lisboa a pé, de óculos escuros, como quem sabe para onde ir.
Noites de POESIA na maria vai com as outras.
Todos os meses na primeira sexta-feira do Mês.
Foto de Lucy and Bart


CAUSA AMANTE
de MARIA GABRIELA LLANSOL
(...)
Desdobro a carta de Luís M., não é uma carta , pois é um manuscrito fechado, mas sem endereço; é o que for, e eu lerei alto, a mim e a elas:
o que me atrai em ti é que te abras. Que te abras ao se. Que eu possa ir até todos os teus íntimos, como se fosses uma grinalda de flores secas, um velho pano de seda, um corpo de lembranças sensíveis, de homens desejados e perdidos, de visões sem lógica, de força de vontade, de pedaços de melodias simples trauteadas.
Cada vez que fui até a um teu segredo, a minha energia foi e, depois da retenção, eu ta dei.
foi na busca da mulher que principiou o meu caminho, é nele que encontrei o livro. Peguei no livro como se desfolhasse uma mulher muito desejada e adquiri uma forma fundamental de querer. Ensinou-me o livro a penetrar a mulher e estou com ela, como se a mulher seguisse os meandros do enredo.
o que me atrai no livro é que se abra. Que eu possa ir a todos os seus recantos, como se ele fosse um labirinto de acções, um guia em mundos que desconheço, uma sequência de imagens exactas, uma paisagem com força de existir, um velho manuscrito que fale verdade, e responda.
Cada vez que fui até ao fim do enredo, a minha energia foi e, depois de captada, se entregou.
a forma de te procurar e a forma do que procurei encontram-se quando, contigo, pude escrever o livro.
(...)

terça-feira, 30 de setembro de 2008


Graça Martins
Blood Roses, acrílico e colagem s/tela, 2001











Graça Martins
Bruscamente no Verão Passado, acrílico s/tela, 1999

Qualquer representação gráfica da realidade, precisa nos seus pormenores, proporcionada e particularizada em cada uma das suas partes, é sempre uma interpretação pessoal, uma forma de explicar essa realidade

domingo, 28 de setembro de 2008


Foto de Lucy and Bart

DOSTOIEVSKI

a voz subterrânea

(...)

Olhai bem! Hoje em dia nem sequer sabemos onde se esconde a vida, o que é, como se chama. Se nos abandonarem, se nos tirarem os livros, ficaremos imediatamente desasados, confundimos tudo, não sabemos para onde ir, como comportar-nos, o que devemos amar, o que devemos odiar, o que devemos respeitar, o que devemos desprezar. Até nos é penoso ser homens, homens possuindo corpo e sangue próprios; temos vergonha disso, consideramos isso um opróbio e sonhamos vir a ser uma espécie de seres abstractos, universais. Nós somos nados-mortos, e já há muito que não nascemos de pais vivos, o que sobretudo nos agrada; gostamos disso. Em breve encontraremos um meio de nascer directamente de uma ideia.

Mas basta! Já não quero fazer ouvir mais a minha «voz subterrânea».

(...)

Trad. Célia Henriques/Vitor Silva Tavares, edição & etc, 1989, Lisboa

sábado, 27 de setembro de 2008

« A serenidade não é feita nem de troça nem de narcisismo, é conhecimento supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à borda dos grandes fundos e de todos os abismos.»

Hermann Hesse

COLECÇÃO BOUDICCA 2008















Fragmento de Uma paixão inocente de

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

Servia-me chá de verbena e laranja. Dizia-me:« A beleza não é uma questão de estética, é uma questão de metafísica» Sei que com esta frase queria, de facto, dizer-me não ser a beleza uma transformação empírica aberta a toda e qualquer possibilidade. Havia qualquer coisa que enviava para uma ideia definitiva do belo e onde, o seu caminho, o seu olhar procurava o que poderia haver de imutável no ser imutável da arte.

-«Deixe lá, importa pouco o que digo. Venha antes até esta janela para ver o movimento do porto. Mas deste lado pouco podemos aperceber. Os barcos estão acostados e envolve-os o silêncio, que é o sentimento da sua superioridade.»

E nos barcos eu apenas via de muito longe em longe passar um cão de marinheiro; fora as muitas gaivotas que quebravam, com o seu traço, o exaltado azul do céu e o reflexo verde das águas do rio. A luz do meio-dia crescia sobre os ombros, dominava desde aquela janela a solar realidade e a bem estranha criatura que eu acabara de conhecer. De conhecer?

De conhecer, como? se em todos os seus movimentos os traços se decompunham e o que mantivera, o que mantinha aquele seu corpo era a estreita fórmula da beleza. E o repouso que fôra o sustentáculo dessa mesma beleza - e ainda o era -, mostrava-se como a calma do próprio rio, um mar de sua condição. O repouso permitia a sua forma humana e o rosto exibia o espelho do seu espírito, no qual a unidade e a indiferença transpareciam o mais verdadeiro.

Posso dizer que naquela criatura dominando o rio e o porto e a cidade baixa e ribeirinha; aquela criatura que me mostrava a sua janela, inventara as suas regras e o caos do seu querer. O rosto era o repouso e a calma; mas o seu rosto também seria o espelho de contrastes violentos e de inabituais acções.

Voltou a servir-me chá. Fê-lo com a convicção de quem está na posse de uma ciência da vida: suspendeu o coador sobre a minha chávena para que nenhuma folha caísse; deixou o perfume da verbena e da laranja ganhar um reflexo poético. E nem sei porque digo «um reflexo poético» ao tentar narrar uma tão simples vista de janela, ao colocar uma chávena de chá sobre um pires marcado por um fugitivo vinco amarelo. (...)

Livros Cotovia, Lisboa, 1989

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Foto de DAVID HAMILTON


Foto de BOUDICCA

Três Poemas de GARCIA LORCA

Traduzidos por Eugénio de Andrade

GAZEL DO MENINO MORTO

Todas as tardes em Granada
todas as tardes morre um menino.
Todas as tardes a água se senta
a conversar com os seus amigos.

Os mortos levam asas de musgo.
O vento enevoado e o vento limpo
são dois faisões voando pelas torres,
e o dia , esse é um rapaz ferido.

Não ficava no ar nem fibra de calhandra
quando nos encontrámos nas grutas do vinho.
Não ficava na terra migalha de nuvens
quando tu te afogavas no rio.

Um gigante de água caiu sobre os montes
e o vale foi rodando com cães e com lírios.
Teu corpo, com a sombra violeta de meus dedos,
era, morto na margem, um arcanjo de frio.
GAZEL DO AMOR DESESPERADO

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Porém eu irei,
embora um sol de lacraus me devore a fronte.

Porém tu virás
com a lingua queimada por chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Porém eu irei,
entregando aos sapos meu cravo mordido.

Porém tu virás
pelas turvas cloacas da obscuridade.

O dia e a noite não querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
GAZEL DA LEMBRANÇA DE AMOR

Não me leves a lembrança.
Deixa-ma só no meu peito,

frágil cerejeira branca
no martírio de janeiro.

Só me separa dos mortos
um muro de pesadelos.

Dou mágoas de lírio fresco
a um coração de gesso.

Meus olhos, como dois cães,
a noite toda no horto.

A noite inteira, correndo
por uns frutos de veneno.

Algumas vezes o vento
é uma tulipa de medo,

é uma tulipa doente,
a madrugada de inverno.

Um muro de pesadelos
me separa dos defuntos.

A névoa cobre em silêncio
teu corpo, vale cinzento.

No arco do nosso encontro
a cicuta cresce agora.

Deixa-me a tua lembrança,
deixa-me só no meu peito.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O POETA RIMBAUD


Foto de Graça Martins
A Traição do Eu de ARNO GRUEN

(...)A identificação com o poder enquanto meio da nossa redenção vincula-nos à lógica dos opressores. Os nossos defeitos são exactamente os mesmos dos nossos pais e da sociedade que combatemos: negamos as verdadeiras necessidades, temos medo do nosso Eu genuíno. E assim continuamos ligados ao inimigo. Henry Miller (1956) escreveu no seu ensaio sobre a grandeza e o falhanço de Rimbaud que a liberdade a que Rimbaud aspirou passou pela afirmação desenfreada do seu Ego. Tal auto-afirmação desmedida contém em si o reflexo deformado daquilo a que uma pessoa se viu exposta quando as suas próprias aspirações à autonomia foram inviabilizadas por um poder exercido sem escrúpulos. Os direitos e a individualidade de outros seres humanos são simplesmente ignorados mas, desta feita, em nome da liberdade. Segundo Henry Miller, «Isso não é liberdade nem nunca há-de ajudar-nos a encontrar a ligação, a comunhão com a Humanidade.» E a razão dessas pessoas não a encontrarem é porque a capacidade de sentir da pessoa foi lesada. Rimbaud foi filho de uma mãe cruel e fria que não quis aceitar a sua personalidade. Ela temeu a sua vitalidade e o seu calor (enquanto foi criança); e ele, embora quisesse « ver, sentir, esgotar, descobrir e exprimir tudo», no final de contas só desejava ser reconhecido por ela. Apesar da sua rebelião acabou por render-se à frieza da mãe e ao medo que ela tinha da sua vitalidade.
Aí é que está o verdadeiro trauma da nossa geração que procura algo de melhor, mais humano, mas não sabe que a própria humanidade ferida é um obstáculo à realização de tal desígnio. Por isso, Miller prossegue:« Tudo isto, para mim, só tem uma interpretação possível - que a pessoa ainda está ligada à mãe. Toda essa rebelião foi apenas pó atirado aos olhos, representou a tentativa desesperada de ocultar tal servidão». Se nos encontrarmos divididos das nossas necessidades reais, tudo tem de transformar-se numa luta. Tememos tudo que nos possa ligar ao próximo. E assim pretendemos algo daqueles que nada nos podem dar. (...)
Arno Gruen, psicanalista alemão, A Traição do Eu, Assírio & Alvim, Lisboa

domingo, 21 de setembro de 2008




A Qualidade dos Sentimentos de WILLY PASINI

Gerações inteiras de jovens cresceram na convicção de que wilhelm Reich tinha razão: para este autor, tal como para eles, a revolução sexual tinha de ser o preâmbulo da revolução política, e a superação da normalidade sexual defendida pela classe burguesa era apenas o ponto de partida de uma nova ordem social.Os acontecimentos que se seguiram a Maio de 68 contradisseram definitivamente o mestre: à desordem sexual dos últimos vinte anos seguiu-se a ordem social, pelo menos na Europa Ocidental. Porque falta demonstrar ainda que teria acontecido do mesmo modo no Leste europeu não ainda liberto ou no Islão.(...)Em vez da revolução, a libertação sexual trouxe consigo a banalização da sexualidade. Da queda dos tabus derivou uma mudança de estado no fenómeno da transgressão: de fantasia erótica a comportamento compartilhado pela maioria da população. Ao ponto de dois estudiosos como Bruckner e Finkielkraut afirmarem que pôr em acção a perversão é a última esperança que resta para obviar a banalidade de uma sexualidade agora demasiado fácil. O fantasma erótico é deste modo substituído pela experiência, mas sem que isso o fixe no estádio de estrutura perversa. (....)


Dois fragmentos do livro o nosso reino de valter hugo mãe

era o homem mais triste do mundo, como numa lenda, diziam dele as pessoas da terra, impressionadas com a sua expressão e com o modo como partia as pedras na cabeça e abria bichos com os dentes tão caninos de fome.

era o homem mais triste do mundo, diziam , não faz mal a ninguém, mete dó, tinha olhos de precipício como se vazios para onde as pessoas e as coisas caíam em desamparo. mas era impossível não os fitarmos, fascinados por eles como ficávamos, e era com eles que iluminava o caminho à noite, garantiam alguns, quando se embrenhava pelo mato em direção à sua cabana secreta, ou cova, toca o que pudesse haver para lá do emaranhado desconhecido de onde vinha . era com os olhos, como lanternas, que competia com os bichos da noite, perplexos com tal ser.(...)

(...)desde há semanas que não me confessava ao padre, que estava absolutamennte possesso pela falta. exigi-o, se me obrigarem a confessar-me ao padre salto do rochedo e morro. salto o lado das as pedras, bato com a cabeça e morro. estive dois dias a silêncio, pão e água, por pecar o pecado da desobediência. mas não estava a brincar, era a minha força toda, não falarei com o padre filipe que me bate, é mau, precisa de ser salvo, não pode salvar. assim. passei o verão a frequentar a missa e a subir mais cedo à merciaria para o bolo de sempre, por vezes, a medo, ouvia o canto final do senhor hegarty já ao pé da porta, como o avanço de uma lebre na corrida. (...)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008