domingo, 12 de outubro de 2008
na morte de Mário Cesariny
corpos visíveis,
nobilíssimos,
inseparável luz que move as coisas,
ter um inferno à mão seja qual for a língua,
toda a água é inocente e escoa-se entre as unhas,
à porta do forno crematório alguém lhe toca,
vai lá, vai que te acolham, brilha, brilha muito, brilha tanto
/quanto não possas,
brilha acima,
faz brilhar a mão que melhor redemoinha,
a mão mais inundada,
e ele entra sem esperança nenhuma,
só na última linha quando o coração rebenta,
reconhece quem o olha
Herberto Helder , A Faca Não Corta o Fogo
(súmula & inédita)", 2008, Assírio & Alvim
sábado, 11 de outubro de 2008
SOBRE MIM A TUA BOCA
Do lodaçal deserto onde
a luz se confunde com o breu,
caminhei à procura do dia.
Cada segundo, uma facada
no coração. O sono fugia
e eu queria matar
o lodo entranhado na minha vida.
Agora, o calor e a luz
secam as lágrimas. Passam
os carros, inteiros são os dias.
A tua boca perfeita
sobre mim
parece a eternidade.
Historical Portraits

Entrevista de Cindy Sherman
(fragmento)
Margarida de Medeiros
Fotografia e Narcisismo
O auto-retrato contemporâneo
Assírio & Alvim
Cindy Sherman - Para mim , toda a ideia de nudez em arte é muito aborrecida, porque está muito ligada à glorificação do corpo da mulher, e em certos casos ligada ao erotismo. A representação do homem nu na arte não parece estar relacionada eroticamente com as mulheres, não é a mesma forma de erotismo. Parece mais uma afirmação de grandeza e de força. Agora é diferente, mas continua a não estar relacionada com as mulheres, mas com os homens, na homossexualidade, o que é uma coisa em que estou a trabalhar mais recentemente. A ideia de incorporar a nudez no meu trabalho nunca teve a ver com a ideia de me revelar a mim mesma. Houve pessoas que me falaram disso, por que é que não aparecia a minha nudez, mas nunca achei que isso fosse uma forma de me revelar. Por isso, as próteses que surgem, as barrigas, os seios, é uma forma de falar da nudez, preservando um lado composto, artificial, sem ter de usar a minha própria nudez.(...) Mas para mim faz muito mais sentido usar próteses, até porque acho que há algo de tão artificial na representação tradicional da nudez, desde há séculos!...Ou mesmo nas revistas de nus, tudo aquilo é tão artificial, as mulheres não se parecem com aquilo.
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
domingo, 5 de outubro de 2008
publicado na revista RELÂMPAGO nº18, Abril de 2006
A VERDADEIRA BIOGRAFIA
A minha biografia
é evidentemente excepcional.
Tive um Pai uma Mãe
nasci numa Casa
fui à Escola da vila
depois do concelho.
Mudei de distrito para
continuar
e o caminho da instrução
concretizou-se na Faculdade
de Belas Artes.
Da infância passada em plena
Natureza lembro
a beleza das estações do ano
os rituais católicos
uma criada preferida
o instante em que aprendi a ler.
Chegou a adolescência
e com ela a certeza
Quero ser professora de Desenho.
Suponho que a Biblioteca
me salvou do desastre
interior.
Tinha dezassete anos
e requisitei "Uma Época
No Inferno" de um rapazito
chamado Jean-Arthur Rimbaud.
Na Biblioteca o empregado
olhava-me sempre com reserva.
Eu estudava o quê?
Um dia livros de medicina
outro dia de poesia.
Então a ciência é poética?
A entrada na vida adulta
aliada à independência
e ao amor: O meu país
sofreu uma revolução. A democracia
não honrou ainda a sua palavra.
Cumpro deveres e não posso
usufruir de direitos proporcionais.
Eu e alguns milhares
neste sentimental canto
europeu sob um regime
semiditatorial
contribuo
para a sopa e os vícios
de alguns milhares de parasitas.
Mudando de assunto a pátria
é grande e a família também.
Para mim já passou
o meio século. Já foi o Pai
a Mãe e o Irmão mais velho.
Estou por cá à espera
certamente.
Não é provável que me entregue.
Conheci o galinheiro do confessionário
ajoelhei-me diante do altar
da virgem. Apaixonei-me.
Também recebi um terço de prata
no dia da comunhão solene.
E na hora exacta o óleo
perfumado do crisma.
Sempre que vou a uma missa
de corpo presente lá está o mesmo altar
com a deslumbrante
virgem. Entretenho-me
a recordar que já tive
quinze anos e também
adorei.
Depois a Páscoa a soturna
via sacra onde sofria
pela minha dor
e as beatas exibiam lágrimas
como dádiva pelo calvário
a que Jesus foi sacrificado.
Jesus era belo na sua passividade.
Os longos cabelos
o olhar suplicante
as pernas
o tronco liso
o ventre. Por fim
a entrega. Braços abertos
para o bem e para o mal.
Agora neste dois mil e seis
trata-se de insistir. Já é tarde
para quase tudo.
Os meus contemporâneos alimentam
uma curiosidade fétida.
A obra é minha. Faço
o que quero. Escondo
rasgo
mostro
transformo
entrego ao crematório
deixo aos herdeiros
ao vaticano
não deixo.
Nunca esmolei. Não fui pobre.
Mas os sinais da exclusão
o ódio é tão luminoso
que seria patético
psicotisante até
não articular sequer
estes versos
antes da eutanásia.
sábado, 4 de outubro de 2008
Fragmento do livro O Prazer de Fumar Cigarros de JAMES FITZGERALD
(...)
Mais de metade da turma, mas sobretudo a maioria dos meus amigos, tinha tomado a decisão de fumar e ia para o monte. Os reis do monte ou tinham conseguido ser admitidos muito cedo ou não estavam a pensar na faculdade, personagens pretas e brancas que fumavam, todas, Camel. Eu queria entrar naquele grupo de rebeldes. Comecei a cravar cigarros e a andar com eles a cantar canções de Bob Dylan ( que tinha aparecido na capa da revista Life com uma camisa de trabalho estilo Woody Guthrie a fumar um Camel ) e a praguejar em silêncio contra aquele curioso processo por que estávamos a passar - crescer. Nessa altura, o tempo passou depressa . Ia para a faculdade. Após três dias de adaptação, assinatura de documentos e escolha do programa, (...) fui para o edifício da associação de estudantes e comprei o meu primeiro pacote de cigarros. Tinha chegado. Era oficial. Na faculdade, os cigarros adaptavam-se a qualquer situação e a qualquer pessoa com quem se estivesse. Fumava cigarros sem filtro quando tinha de ficar a pé toda a noite, cigarros com filtro na aula do professor liberal de Filosofia, que nos deixava fumar ao mesmo tempo que ele fumava e nos ensinava os meandros do pensamento Kierkegaardiano. Os de mentol eram para o dia seguinte e para gargantas inflamadas; havia Marlboro nas máquinas de cigarros dos bares (...) Todos cravávamos cigarros uns aos outros e passávamos alegremente o tempo de faculdade a fumar. (...) Tinha um isqueiro há dois anos que conseguira não perder e fixara-me numa marca específica; até era conhecido pela minha marca. A opção foi pelos Camel: era exótico, duro (adoro a cor amarela) e a minha mãe fumava-os - uma vez disse-me que eles provocavam sempre a mesma reacção: « Ah, fuma Camel?» As pessoas conheciam-me e identificavam-me com aqueles Camel, ainda que eu experimentasse outras marcas...
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Foi no Marquês que Lídia passou por mim: a sua pele hidratada, os seus cabelos cor de trigo espetados no pescoço à laia de espadachins de ferro; o seu casaco, o seu corpo de costas. Lídia trazia o DN na mão direita. Lídia Jorge não me disse adeus e seguia tranquila como se a avenida da Liberdade fosse sua, como se o passeio fosse a imensa continuação das suas magras pernas brancas. Lídia trazia um casaco branco sintético e os meus dedos quiseram tocar-lhe as pontas dos espadachins da cara. No momento em que me viu, Lídia Jorge disse:
E uma mulher pequena deixou cair a carteira.
terça-feira, 30 de setembro de 2008
domingo, 28 de setembro de 2008
DOSTOIEVSKI
a voz subterrânea
(...)
Olhai bem! Hoje em dia nem sequer sabemos onde se esconde a vida, o que é, como se chama. Se nos abandonarem, se nos tirarem os livros, ficaremos imediatamente desasados, confundimos tudo, não sabemos para onde ir, como comportar-nos, o que devemos amar, o que devemos odiar, o que devemos respeitar, o que devemos desprezar. Até nos é penoso ser homens, homens possuindo corpo e sangue próprios; temos vergonha disso, consideramos isso um opróbio e sonhamos vir a ser uma espécie de seres abstractos, universais. Nós somos nados-mortos, e já há muito que não nascemos de pais vivos, o que sobretudo nos agrada; gostamos disso. Em breve encontraremos um meio de nascer directamente de uma ideia.
Mas basta! Já não quero fazer ouvir mais a minha «voz subterrânea».
(...)
Trad. Célia Henriques/Vitor Silva Tavares, edição & etc, 1989, Lisboa
sábado, 27 de setembro de 2008
Fragmento de Uma paixão inocente de
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
Servia-me chá de verbena e laranja. Dizia-me:« A beleza não é uma questão de estética, é uma questão de metafísica» Sei que com esta frase queria, de facto, dizer-me não ser a beleza uma transformação empírica aberta a toda e qualquer possibilidade. Havia qualquer coisa que enviava para uma ideia definitiva do belo e onde, o seu caminho, o seu olhar procurava o que poderia haver de imutável no ser imutável da arte.
-«Deixe lá, importa pouco o que digo. Venha antes até esta janela para ver o movimento do porto. Mas deste lado pouco podemos aperceber. Os barcos estão acostados e envolve-os o silêncio, que é o sentimento da sua superioridade.»
E nos barcos eu apenas via de muito longe em longe passar um cão de marinheiro; fora as muitas gaivotas que quebravam, com o seu traço, o exaltado azul do céu e o reflexo verde das águas do rio. A luz do meio-dia crescia sobre os ombros, dominava desde aquela janela a solar realidade e a bem estranha criatura que eu acabara de conhecer. De conhecer?
De conhecer, como? se em todos os seus movimentos os traços se decompunham e o que mantivera, o que mantinha aquele seu corpo era a estreita fórmula da beleza. E o repouso que fôra o sustentáculo dessa mesma beleza - e ainda o era -, mostrava-se como a calma do próprio rio, um mar de sua condição. O repouso permitia a sua forma humana e o rosto exibia o espelho do seu espírito, no qual a unidade e a indiferença transpareciam o mais verdadeiro.
Posso dizer que naquela criatura dominando o rio e o porto e a cidade baixa e ribeirinha; aquela criatura que me mostrava a sua janela, inventara as suas regras e o caos do seu querer. O rosto era o repouso e a calma; mas o seu rosto também seria o espelho de contrastes violentos e de inabituais acções.
Voltou a servir-me chá. Fê-lo com a convicção de quem está na posse de uma ciência da vida: suspendeu o coador sobre a minha chávena para que nenhuma folha caísse; deixou o perfume da verbena e da laranja ganhar um reflexo poético. E nem sei porque digo «um reflexo poético» ao tentar narrar uma tão simples vista de janela, ao colocar uma chávena de chá sobre um pires marcado por um fugitivo vinco amarelo. (...)
Livros Cotovia, Lisboa, 1989
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Traduzidos por Eugénio de Andrade
GAZEL DO MENINO MORTO
Todas as tardes em Granada
todas as tardes morre um menino.
Todas as tardes a água se senta
a conversar com os seus amigos.
Os mortos levam asas de musgo.
O vento enevoado e o vento limpo
são dois faisões voando pelas torres,
e o dia , esse é um rapaz ferido.
Não ficava no ar nem fibra de calhandra
quando nos encontrámos nas grutas do vinho.
Não ficava na terra migalha de nuvens
quando tu te afogavas no rio.
Um gigante de água caiu sobre os montes
e o vale foi rodando com cães e com lírios.
Teu corpo, com a sombra violeta de meus dedos,
era, morto na margem, um arcanjo de frio.
A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Porém eu irei,
embora um sol de lacraus me devore a fronte.
Porém tu virás
com a lingua queimada por chuva de sal.
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Porém eu irei,
entregando aos sapos meu cravo mordido.
Porém tu virás
pelas turvas cloacas da obscuridade.
O dia e a noite não querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
Não me leves a lembrança.
Deixa-ma só no meu peito,
frágil cerejeira branca
no martírio de janeiro.
Só me separa dos mortos
um muro de pesadelos.
Dou mágoas de lírio fresco
a um coração de gesso.
Meus olhos, como dois cães,
a noite toda no horto.
A noite inteira, correndo
por uns frutos de veneno.
Algumas vezes o vento
é uma tulipa de medo,
é uma tulipa doente,
a madrugada de inverno.
Um muro de pesadelos
me separa dos defuntos.
A névoa cobre em silêncio
teu corpo, vale cinzento.
No arco do nosso encontro
a cicuta cresce agora.
Deixa-me a tua lembrança,
deixa-me só no meu peito.