MOSTRAI-ME ALGUÉM PARA DESEJAR
INDUÇÃO. O ser amado é desejado porque alguém lhe mostrou que ele é desejável: por muito especial que seja, o desejo de amor descobre-se por indução.
Roland Barthes, Fragmentos De Um Discurso Amoroso, edições 70
Entrevista de Cindy Sherman
(fragmento)
Margarida de Medeiros
Fotografia e Narcisismo
O auto-retrato contemporâneo
Assírio & Alvim
Cindy Sherman - Para mim , toda a ideia de nudez em arte é muito aborrecida, porque está muito ligada à glorificação do corpo da mulher, e em certos casos ligada ao erotismo. A representação do homem nu na arte não parece estar relacionada eroticamente com as mulheres, não é a mesma forma de erotismo. Parece mais uma afirmação de grandeza e de força. Agora é diferente, mas continua a não estar relacionada com as mulheres, mas com os homens, na homossexualidade, o que é uma coisa em que estou a trabalhar mais recentemente. A ideia de incorporar a nudez no meu trabalho nunca teve a ver com a ideia de me revelar a mim mesma. Houve pessoas que me falaram disso, por que é que não aparecia a minha nudez, mas nunca achei que isso fosse uma forma de me revelar. Por isso, as próteses que surgem, as barrigas, os seios, é uma forma de falar da nudez, preservando um lado composto, artificial, sem ter de usar a minha própria nudez.(...) Mas para mim faz muito mais sentido usar próteses, até porque acho que há algo de tão artificial na representação tradicional da nudez, desde há séculos!...Ou mesmo nas revistas de nus, tudo aquilo é tão artificial, as mulheres não se parecem com aquilo.
Fragmento do livro O Prazer de Fumar Cigarros de JAMES FITZGERALD
(...)
Mais de metade da turma, mas sobretudo a maioria dos meus amigos, tinha tomado a decisão de fumar e ia para o monte. Os reis do monte ou tinham conseguido ser admitidos muito cedo ou não estavam a pensar na faculdade, personagens pretas e brancas que fumavam, todas, Camel. Eu queria entrar naquele grupo de rebeldes. Comecei a cravar cigarros e a andar com eles a cantar canções de Bob Dylan ( que tinha aparecido na capa da revista Life com uma camisa de trabalho estilo Woody Guthrie a fumar um Camel ) e a praguejar em silêncio contra aquele curioso processo por que estávamos a passar - crescer. Nessa altura, o tempo passou depressa . Ia para a faculdade. Após três dias de adaptação, assinatura de documentos e escolha do programa, (...) fui para o edifício da associação de estudantes e comprei o meu primeiro pacote de cigarros. Tinha chegado. Era oficial. Na faculdade, os cigarros adaptavam-se a qualquer situação e a qualquer pessoa com quem se estivesse. Fumava cigarros sem filtro quando tinha de ficar a pé toda a noite, cigarros com filtro na aula do professor liberal de Filosofia, que nos deixava fumar ao mesmo tempo que ele fumava e nos ensinava os meandros do pensamento Kierkegaardiano. Os de mentol eram para o dia seguinte e para gargantas inflamadas; havia Marlboro nas máquinas de cigarros dos bares (...) Todos cravávamos cigarros uns aos outros e passávamos alegremente o tempo de faculdade a fumar. (...) Tinha um isqueiro há dois anos que conseguira não perder e fixara-me numa marca específica; até era conhecido pela minha marca. A opção foi pelos Camel: era exótico, duro (adoro a cor amarela) e a minha mãe fumava-os - uma vez disse-me que eles provocavam sempre a mesma reacção: « Ah, fuma Camel?» As pessoas conheciam-me e identificavam-me com aqueles Camel, ainda que eu experimentasse outras marcas...
DOSTOIEVSKI
a voz subterrânea
(...)
Olhai bem! Hoje em dia nem sequer sabemos onde se esconde a vida, o que é, como se chama. Se nos abandonarem, se nos tirarem os livros, ficaremos imediatamente desasados, confundimos tudo, não sabemos para onde ir, como comportar-nos, o que devemos amar, o que devemos odiar, o que devemos respeitar, o que devemos desprezar. Até nos é penoso ser homens, homens possuindo corpo e sangue próprios; temos vergonha disso, consideramos isso um opróbio e sonhamos vir a ser uma espécie de seres abstractos, universais. Nós somos nados-mortos, e já há muito que não nascemos de pais vivos, o que sobretudo nos agrada; gostamos disso. Em breve encontraremos um meio de nascer directamente de uma ideia.
Mas basta! Já não quero fazer ouvir mais a minha «voz subterrânea».
(...)
Trad. Célia Henriques/Vitor Silva Tavares, edição & etc, 1989, Lisboa
Fragmento de Uma paixão inocente de
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
Servia-me chá de verbena e laranja. Dizia-me:« A beleza não é uma questão de estética, é uma questão de metafísica» Sei que com esta frase queria, de facto, dizer-me não ser a beleza uma transformação empírica aberta a toda e qualquer possibilidade. Havia qualquer coisa que enviava para uma ideia definitiva do belo e onde, o seu caminho, o seu olhar procurava o que poderia haver de imutável no ser imutável da arte.
-«Deixe lá, importa pouco o que digo. Venha antes até esta janela para ver o movimento do porto. Mas deste lado pouco podemos aperceber. Os barcos estão acostados e envolve-os o silêncio, que é o sentimento da sua superioridade.»
E nos barcos eu apenas via de muito longe em longe passar um cão de marinheiro; fora as muitas gaivotas que quebravam, com o seu traço, o exaltado azul do céu e o reflexo verde das águas do rio. A luz do meio-dia crescia sobre os ombros, dominava desde aquela janela a solar realidade e a bem estranha criatura que eu acabara de conhecer. De conhecer?
De conhecer, como? se em todos os seus movimentos os traços se decompunham e o que mantivera, o que mantinha aquele seu corpo era a estreita fórmula da beleza. E o repouso que fôra o sustentáculo dessa mesma beleza - e ainda o era -, mostrava-se como a calma do próprio rio, um mar de sua condição. O repouso permitia a sua forma humana e o rosto exibia o espelho do seu espírito, no qual a unidade e a indiferença transpareciam o mais verdadeiro.
Posso dizer que naquela criatura dominando o rio e o porto e a cidade baixa e ribeirinha; aquela criatura que me mostrava a sua janela, inventara as suas regras e o caos do seu querer. O rosto era o repouso e a calma; mas o seu rosto também seria o espelho de contrastes violentos e de inabituais acções.
Voltou a servir-me chá. Fê-lo com a convicção de quem está na posse de uma ciência da vida: suspendeu o coador sobre a minha chávena para que nenhuma folha caísse; deixou o perfume da verbena e da laranja ganhar um reflexo poético. E nem sei porque digo «um reflexo poético» ao tentar narrar uma tão simples vista de janela, ao colocar uma chávena de chá sobre um pires marcado por um fugitivo vinco amarelo. (...)
Livros Cotovia, Lisboa, 1989