Herberto Helder
COMO ESTAVA AZUL, O CÉU
Encontro. A figura refere-se aos momentos felizes que imediatamente se seguiram ao primeiro encantamento, antes de nascerem as dificuldades da relação de amor.
Embora o discurso do amor não seja senão uma poeira de figuras que se agitam segundo uma ordem imprevisível à maneira do voltear de uma mosca num quarto, posso atribuir ao amor, pelo menos retrospectivamente, imaginariamente, uma transformação organizada: é por este fantasma histórico que por vezes me preocupo: uma aventura. A evolução de amor parece então seguir três etapas ( ou três actos) : é, inicialmente, instantaneamente, a captura ( sou seduzido por uma imagem) ; sucedem-se então vários encontros ( combinações, telefonemas, cartas, pequenos passeios) durante os quais «exploro» com embriaguez a perfeição do ser amado, isto é, a inesperada adequação de um objecto ao meu desejo: é a doçura do princípio, o característico período do idílio. Este tempo feliz adquire a sua identidade ( a sua clausura) por oposição (pelo menos na recordação) à «continuação»: a «continuação» é a longa cadeia de sofrimentos, dores, angustias, depressões, ressentimentos, desesperos, embaraços e armadilhas de que sou vitima, vivendo então permanentemente sob a ameaça de uma decadência que atingiria ao mesmo tempo o outro, eu próprio e o prestigioso encontro que nos fez descobrir um ao outro.
Rolland Barthes, Fragmentos De Um Discurso Amoroso
ROLAND BARTHES
FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO
A solidão do apaixonado não é uma solidão de pessoa (o amor confia-se, fala-se, conta-se), é uma solidão de sistema (talvez porque sou incessantemente abatido pelo solipsismo do meu discurso). Difícil paradoxo: posso ser ouvido por todos (o amor vem dos livros, o seu dialecto é corrente, mas só posso ser escutado (recebido «profeticamente») pelos sujeitos que têm exactamente e presentemente a mesma linguagem que eu. Banquete de Platão -Os apaixonados, diz Alcibíades, assemelham-se aos que foram mordidos por uma víbora: «Não querem, diz-se, falar do seu acidente a ninguém, excepto àqueles que dele também já foram vítimas, por serem estes os únicos capazes de compreender e desculpar tudo o que aqueles ousaram dizer e fazer sob o efeito das dores»: miserável tropa dos «Defuntos famílicos», dos Suicidas de amor ( quantas vezes se não suicida um mesmo apaixonado?), a quem nenhuma grande linguagem ( se não for, fragmentariamente, a do Romance passado) empresta a voz.
Entrevista de Cindy Sherman
(fragmento)
Margarida de Medeiros
Fotografia e Narcisismo
O auto-retrato contemporâneo
Assírio & Alvim
Cindy Sherman - Para mim , toda a ideia de nudez em arte é muito aborrecida, porque está muito ligada à glorificação do corpo da mulher, e em certos casos ligada ao erotismo. A representação do homem nu na arte não parece estar relacionada eroticamente com as mulheres, não é a mesma forma de erotismo. Parece mais uma afirmação de grandeza e de força. Agora é diferente, mas continua a não estar relacionada com as mulheres, mas com os homens, na homossexualidade, o que é uma coisa em que estou a trabalhar mais recentemente. A ideia de incorporar a nudez no meu trabalho nunca teve a ver com a ideia de me revelar a mim mesma. Houve pessoas que me falaram disso, por que é que não aparecia a minha nudez, mas nunca achei que isso fosse uma forma de me revelar. Por isso, as próteses que surgem, as barrigas, os seios, é uma forma de falar da nudez, preservando um lado composto, artificial, sem ter de usar a minha própria nudez.(...) Mas para mim faz muito mais sentido usar próteses, até porque acho que há algo de tão artificial na representação tradicional da nudez, desde há séculos!...Ou mesmo nas revistas de nus, tudo aquilo é tão artificial, as mulheres não se parecem com aquilo.
Fragmento do livro O Prazer de Fumar Cigarros de JAMES FITZGERALD
(...)
Mais de metade da turma, mas sobretudo a maioria dos meus amigos, tinha tomado a decisão de fumar e ia para o monte. Os reis do monte ou tinham conseguido ser admitidos muito cedo ou não estavam a pensar na faculdade, personagens pretas e brancas que fumavam, todas, Camel. Eu queria entrar naquele grupo de rebeldes. Comecei a cravar cigarros e a andar com eles a cantar canções de Bob Dylan ( que tinha aparecido na capa da revista Life com uma camisa de trabalho estilo Woody Guthrie a fumar um Camel ) e a praguejar em silêncio contra aquele curioso processo por que estávamos a passar - crescer. Nessa altura, o tempo passou depressa . Ia para a faculdade. Após três dias de adaptação, assinatura de documentos e escolha do programa, (...) fui para o edifício da associação de estudantes e comprei o meu primeiro pacote de cigarros. Tinha chegado. Era oficial. Na faculdade, os cigarros adaptavam-se a qualquer situação e a qualquer pessoa com quem se estivesse. Fumava cigarros sem filtro quando tinha de ficar a pé toda a noite, cigarros com filtro na aula do professor liberal de Filosofia, que nos deixava fumar ao mesmo tempo que ele fumava e nos ensinava os meandros do pensamento Kierkegaardiano. Os de mentol eram para o dia seguinte e para gargantas inflamadas; havia Marlboro nas máquinas de cigarros dos bares (...) Todos cravávamos cigarros uns aos outros e passávamos alegremente o tempo de faculdade a fumar. (...) Tinha um isqueiro há dois anos que conseguira não perder e fixara-me numa marca específica; até era conhecido pela minha marca. A opção foi pelos Camel: era exótico, duro (adoro a cor amarela) e a minha mãe fumava-os - uma vez disse-me que eles provocavam sempre a mesma reacção: « Ah, fuma Camel?» As pessoas conheciam-me e identificavam-me com aqueles Camel, ainda que eu experimentasse outras marcas...
DOSTOIEVSKI
a voz subterrânea
(...)
Olhai bem! Hoje em dia nem sequer sabemos onde se esconde a vida, o que é, como se chama. Se nos abandonarem, se nos tirarem os livros, ficaremos imediatamente desasados, confundimos tudo, não sabemos para onde ir, como comportar-nos, o que devemos amar, o que devemos odiar, o que devemos respeitar, o que devemos desprezar. Até nos é penoso ser homens, homens possuindo corpo e sangue próprios; temos vergonha disso, consideramos isso um opróbio e sonhamos vir a ser uma espécie de seres abstractos, universais. Nós somos nados-mortos, e já há muito que não nascemos de pais vivos, o que sobretudo nos agrada; gostamos disso. Em breve encontraremos um meio de nascer directamente de uma ideia.
Mas basta! Já não quero fazer ouvir mais a minha «voz subterrânea».
(...)
Trad. Célia Henriques/Vitor Silva Tavares, edição & etc, 1989, Lisboa