domingo, 5 de setembro de 2010







PARA SEMPRE (UM ANAGRAMA)

Faço da morte um silêncio longo, de
imagens que perpassam entre a música,
lentamente perco a lucidez, não sei onde estou,
incide em mim a pálida luz da loucura e
perco-me a querer dizer-te o nome
entre todas as palavras vãs que fazem o dia.

Procuro entre as vozes um momento
em que regresses, e desta vez me toques,
rasando o que em mim é
desejo e paixão e devaneio, no
interior da tristeza,
do cessar fogo, do
olho do relógio que vê além da meia-noite.

Perco a vida
ao dar-me assim, sem contrapartidas,
rente à morte que
antevejo quando te olho nos olhos.

Silêncio e dor, uma casa vazia
em que a única luz é ainda a
memória de te encontrar,
penetrando as trevas a que me
rendi e saindo triunfante e
eternamente sem mim.


Lisboa, 15.3.10

JOÃO BORGES

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A infância é um susto. Sofre as metamorfoses do medo. A infância está calada, move-se como coluna de mármore, como réptil que cresce por detrás do mar.
A infância traz a bandeira da morte. Branca. Tão branca como o sexo dos anjos.
Na infância criam-se ocupações abstractas que mover-nos-ão enquanto vivos. São incompreensão, vazio, sono, doença.
ISABEL DE SÁ
O Festim das Serpentes Novas, Brasília Editora, Porto, 1982

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

GOTTFRIED HELNWEIN






















Gottfried Helnwein


POMPE INUTILI

para a Silvina Rodrigues Lopes


Ninguém nasce; seria descabido
chamar alguém aos resíduos
de placenta que envolvem
um conjunto de orgãos
a tudo ou quase tudo predispostos.

Só os mortos, verdadeiramente,
existem. Escreveram ou não
escreveram livros, cartas de amor,
diários. Não importa: cruzaram-se
connosco, sentaram-se por vezes
à mesma mesa, acreditaram até
no terno suplício do amor.
E tinham mãos reais, ao tocarem
o rosto imberbe de que se despediam.
Um beijo, sobre rugas apenas,
conseguia tornar menos frias as manhãs.

Despedem-se muito mal, os mortos.
Embora, por uma vez, sejam
exactos e sinceros - no momento
em que descem à terra e nos impedem
de partilhar com eles um cigarro,
o último copo, uma espécie de destino.
São terrivelmente reais, os mortos.
A vida inteira não chega
para que possamos matá-los a todos,
um a um, como decerto aconselharia
a mais elementar higiene metafísica.
Dão-nos, contudo, a força necessária
para morrer cada vez mais, tolerando
dias de aluguer, casas ligeiramente
inabitáveis. Porque os outros, na
verdade, não passam de mortos imperfeitos.
Estão, como nós,um pouco demasiado vivos.

Talvez um dia, porém, venham a
assinar um poema assim (e pode até não ser
um poema, muito menos assim), em que se note,
além das influências óbvias, uma certa
- digamos - especialização no horror.
Pois é disso apenas que se trata.

Os mortos sabem-no.
A sabedoria é inútil.
A poesia também.


MANUEL DE FREITAS

A Última Porta, selecção e posfácio de José Miguel Silva, Assírio & Alvim, 2010

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

GRAÇA MARTINS - SWEET DREAMS ARE MADE OF THIS...

Para que haja amor, é preciso que o amante faça germinar possibilidades lactentes ou oprimidas do nosso ser.

Para dar lugar ao novo, o sujeito tem antes de destruir activamente tudo o que existe. E o que foi criado pelo amor só pode ser destruído por uma paixão igualmente violenta, o ódio. O ódio como libertação, o ódio como destruição, o ódio que separa, quebra e aniquila.
Vingar-se significa remeter para o futuro um acto de destruição que devíamos ter realizado logo, mas que não pudemos fazer. A vingança mantém vivo o passado, mas mantém-no vivo sob a forma de dever de destruição. A VINGANÇA DÁ UM GRANDE PRAZER, PORQUE NOS PERMITE IMAGINAR FAZER MAL AO OUTRO INÚMERAS VEZES. (…)
Francesco Alberoni

As palavras de Alberoni dão corpo à realização do meu trabalho intitulado SWEET DREAMS ARE MADE OF THIS…
Numa almofada igual a dezenas de almofadas, encontra-se o momento do pensamento invasivo que habita a insónia. Os momentos doces, que se revelaram em traição, rejeição e dão lugar à angústia.
A incompreensão das palavras, das cartas. Os lamentos. O desejo de reparação, de vingança.
O coração ferido ou ambos os corações feridos. A crueldade das palavras.
Os corações estão presos, atados ainda a pensamentos que os atingiram como facas.
As rosas oferecidas transportam um veneno mortífero. O veneno da ilusão, do equívoco.
A ilusão do amor, da paixão…

SWEET DREAMS ARE MADE OF THIS...




CEM LAMENTOS - 8 DE SETEMBRO - FÁBRICA SOCIAL/ ESCULTOR JOSÉ RODRIGUES - PORTO


CONVITE

O COLECTIVO TENDA DE SAIAS CONVIDOU 3 ARTISTAS PLÁSTICAS

A PARTICIPAR NA PEÇA CEM LAMENTOS

ANA PEREIRA
GRAÇA MARTINS
MARIANA BACELAR


http://cemlamentos.blogspot.com

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Acreditar nos homens é um esforço horrível, não conheço outro tão desgastante. A dúvida é um espinho envenenado que entra na carne e nunca sai completamente.
Agustina Bessa -Luís

Quem não admita plenamente, uma vez por outra, ... o horror da vida, nunca tomará posse da abundância e da força inexprimíveis da nossa existência: não poderá senão mover-se na sua orla, e um dia, no momento da verdade, nunca terá estado vivo nem morto.
Rainer Maria Rilke

Can you feel me?

«Pinto para dar uma face ao medo»

Paula Rego

















fragmento de quadro de Graça Martins, 2010
E há muita coisa acontecendo.
Mas está calmo debaixo das ondas,
debaixo das ondas,
no azul do meu esquecimento.

Fiona Apple

FIONA APPLE - Sullen Girl

segunda-feira, 16 de agosto de 2010


Poderia gastar muita tinta a escrever sobre um corpo ou vários. Porém apenas o instante do encontro é precioso. Viver a cena sem palavras, o ritual.Na penumbra os corpos tocam-se antes da sílaba inaugural. Começar é sempre um escândalo, é desviar a instituição da sua verdadeira finalidade e da sua inocência.

Isabel de Sá

do livro Em Nome do Corpo, edições Rolim. Lisboa, 1986

LOBO DA ESTEPE - Filme de FRED HAINES com Max Von Sidow e Pierre Clementi -1974

STEPPENWOLF - LOBO DA ESTEPE - de HERMANN HESSE - PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA

A BÍBLIA DOS ANOS 60 E 70 - LOBO DA ESTEPE - de HERMANN HESSE
O Lobo da Estepe não é um romance fácil. Ainda mais num mercado que é avesso aos valores que o livro propõe - um mundo em que a ideia de auto conhecimento é valorizada, e se colocam questões sobre os lugares comuns de uma sociedade formatada e repleta de estratégias de marketing e vendas a que chamamos Cultura. O outro "lado", do espírito, da alma, o nosso mundo interior, a nossa "ilha", no conceito de Rousseau, não interessa a ninguém, a não ser a meia duzia de "loucos como nós?", pergunta a dado momento Harry Haller, o protagonista do Lobo da Estepe, um outsider, um misantropo de cinquenta anos, alcoólico e intelectual, invadido pela angústia e que não vê saída para a sua tormentosa condição. Todo o problema do personagem do livro de Hermann Hesse é um permanente mal-estar cuja fonte é a inadequação do seu espírito à sociedade, à "Cultura de Massas" e à vulgarização burguesa da vida e dos valores. É por isso que ele se define como "lobo da estepe". A obra apresenta inspiração surrealista pela valorização do sonho e da fantasia, influências herdadas da psicanálise de Carl Jung e Freud, influências da filosofia oriental e autobiográfico sem sombra de dúvida. Crítico do militarismo alemão, do nacional-socialismo e da guerra, Herman Hesse preocupa-se também com as grandes questões sociais e políticas do seu tempo. Nos seus livros está sempre presente o sonho da conjugação entre a tradição da Ásia e da Europa e a síntese entre o apolíneo e o dionisíaco, profetizada por Nietzsche. Deste pensador o autor herda a ideia de que a vontade de poder, expressa na luta entre valores antagonicos, é que torna a realidade social, política e economica compreensível. É desta noção que surgem as histórias de ambivalência e de tensão humanas que marcam a sua obra. A mensagem que fica deste grandioso romance são as indagações espirituais, comportamentais e de análise da sociedade de Harry Haller, que se configuram como um dos mais completos tratados sobre o ser humano. O personagem principal – que pode ser visto como um alter-ego do autor – dividido entre o seu lado “homem” e o seu lado “lobo”, confrontado por não se encaixar na sociedade mas mesmo assim, a ter que viver nela, a odiar a burguesia sem negar o seu conforto, encontra-se entregue aos seus próprios rumos, trilhando o seu próprio caminho, fazendo novas descobertas, repensando os seus valores e alcançando a felicidade em coisas tidas como impensáveis, anteriormente. Sofrimento, dúvida, perda, desagregação; tudo elevado ao extremo que um ser humano pode suportar, o que faz de o Lobo da Estepe um livro difícil de ser lido não só pela complexidade mas sobretudo pelo profundo questionamento que nos leva a interrogar-nos permanentemente. Haller redescobre-se a si mesmo, depara-se com novos mundos, novos amigos, outras atmosferas, encontra dolorosamente o seu interior para finalmente ser integrado. “Só para Loucos” avisa Hermann Hesse no início do romance. Um conselho que não pode ser desprezado. Enredo original, trama fantástica e envolvente. Clássico indispensável da literatura alemã e mundial, é um livro para quem quer sair do egocentrismo e alcançar o desenvolvimento de forma plena . Neste romance também se compreende que o ser humano é multifacetado, tem muitas vozes dentro de si, divide-se em comportamentos variados e opostos. Um bom romance para férias.

STEPPENWOLF - Born To Be Wild - EASY RIDER


Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O melhor está nas entrelinhas.
Clarice Lispector

sábado, 14 de agosto de 2010

sexta-feira, 13 de agosto de 2010


Agosto

1.
A tua pele fulminava
o que subsistia de claridade
e de vida.

Tornei-me exterior a tudo.
Os meus amigos reconhecem
mudanças subtis
e quando alguém
me olha, desvio-me.
Os canteiros secos, nas praças
exibem a proximidade da morte
como um aviso.

Temo a agressão silenciosa.
Estar contigo
foi perceber que a dor é definitiva.

Não sei se rejeito totalmente o mundo,
mas relaciono-me com ele
estranhamente.
Agora sei que a morte
pode vir de qualquer parte
em todos os segundos.

Vila Real. 28.8.09

João Borges

Uma ferida na existência

Deixa o dia cerrar fileiras
depois do cansaço reúne
em teu redor o seu fulgor
derradeiro.
Uma camisa aqui, a escova de dentes,
livros, no chão a alma
suficiente para novos lábios
desfazerem o ferido afecto.

A tua vida espalha-se como o mercúrio
solto há-de voltar a juntar-se
por virtude tua ou coragem

porque mesmo derrotado
o sonho é um abrigo iluminado pela inquietude,
uma ferida na existência.

Fernando Luís Sampaio

de Escadas de Incêndio

I - Credo quia absurdum

Creio na vastidão ilimitada dos amores humanos
esses amores que se fundem com os domínios
inelutáveis da dor: o amor, essa claridade
que não alcançou em nossos dias
a recôndita certeza dos deuses

Amores
frágeis sob o voo irisado das aves, amores
de uma noite profunda ou de uma tarde amena
entre o regaço de outras mãos. Amores
de um país onde tudo se esquece entre
uma aurora e outra.


Paulo Teixeira

de As Imaginações da Verdade

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

RECIPROCIDADE DESALMADA - Performance com Joana Lleys e o seu grupo, em actuação na Rua do Almada, Porto







Junho

O rapaz dos amores
amansa o coração.

As mãos, já tão próximas,
desfazem-se na penumbra.

Por que roubas destes lábios
punhados de luz para queimar?

O eclipse acerca-se e afunda
o esmalte dos meus olhos.

E deixo-te, varado e áspero,
de arpão em punho, até ao fim.


Fernando Luís Sampaio

Desfocados Pelo Vento, A poesia dos Anos 80 Agora, Antologia. Selecção e organização de valter hugo mãe, edicões Quasi, 2004

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Julião Sarmento


RETRATO ARDENTE

Entre os teus lábios
é que a loucura acode
desce à garganta,
invade a água.


No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.


Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.


Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.


Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


Eugénio de Andrade

AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.



Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.



Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.



Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?



Eugénio de Andrade

domingo, 8 de agosto de 2010

Eros


LOVESONG

Ele amava-a e ela amava-o
Os beijos dele sorviam todo o passado e futuro dela ou pelo menos tentavam
Não havia nele outro apetite
Ela mordia-o roía-o sorvia
Queria-o inteiro dentro dela
Salvo e Seguro para sempre e sempre

...

Os sorrisos dele eram as mansardas de um palácio de fadas
Onde o mundo real nunca chegaria
Os sorrisos dela eram mordeduras de aranha
Por isso ele ficaria deitado e quieto enquanto ela tivesse fome
As palavras dele eram exércitos ocupantes
Os risos dela eram tentativas de homicídio
Os olhares dele eram balas punhais de vingança
Os relances dela eram fantasmas à esquina com segredos horríveis
Os suspiros dele eram chicotes e botas que calcavam
Os beijos dela eram homens de lei que escreviam sem parar
...

Os votos dela punham os olhos dele em formol
No fundo falso da gaveta secreta
Os uivos dos dois cravavam-se na parede
As suas cabeças separavam-se no sono como as duas metades
De um melão cortado, mas é difícil parar o amor

No seu sono entrelaçado trocavam braços e pernas
Nos seus sonhos os cérebros dos dois faziam do outro seu refém

De manhã vestiam o rosto um do outro

*Ted Hughes

* marido de Sylvia Plath



A imaginação é necessária para pensarmos sobre as coisas quando elas não estão presentes e ao nosso pensamento sobre as coisas quando o estão.

*Mary Warnock

*filósofa

You Don't know Love


LUZ

Como se enreda na luz o coração
à sombra dos seus mitos e de corpos
tão jovens que já de apercebidos
se movem para longe do nosso olhar
guardando a tábua rasa da ausência.
Como se enreda o coração no corpo
e sem palavras te abandona este poema
e sem razões te alucina e te aprisiona.
Como nos perdemos todos nesta luz
que os corpos trazem como coisa sua
e que só às vezes pousa no poema
e te deixa perdido e só à beira do lume.

Luís Filipe Castro Mendes

de A Ilha dos Mortos, Poesia Reunida (1985-1999)

sábado, 7 de agosto de 2010

Foto de Lucien Freud


VERDADE

Onde há a palavra, há a verdade. A palavra é usada para conversar e sem verdade não há conversa. Usa-se a palavra para conversar sobre afectos, realidades, crenças, pensamentos, medos, desejos,memórias, futuros e tudo o mais. Sem a verdade, a conversa seria uma mera manifestação de subjectividades solipsistas e imunes ao erro, discursos paralelos sem triangulação possível entre si e a realidade. (...)
A verdade pode fazer-nos infelizes, mas nem por isso desprezar a verdade é o caminho para a felicidade. Quem desprezar a verdade na sua vida emocional e afectiva fica reduzido a viver uma mentira. Se António amar verdadeiramente Cleópatra, não poderá considerar irrelevante a questão de saber se Cleópatra também o ama ou se está apenas a manipulá-lo para obter os seus fins políticos. Desprezar a verdade é perder a conexão com a realidade, concebendo-se a felicidade como um estado meramente subjectivo e solipsista. Deste ponto de vista, é irrelevante para António que Cleópatra o atraiçoe, desde que ele nunca venha a descobrir. Esta noção solipsista de felicidade é ilusória. A felicidade não é um estado mental autónomo e meramente subjectivo, indiferente à realidade, porque é um produto da própria actividade que nos conecta com a realidade: o pensamento sofisticado e complexo. Perder a conexão da felicidade com a realidade é fazer da felicidade uma ilusão.
O egocentrismo é talvez a mentira mais comum da humanidade, e seguramente a mais tentadora. O egocentrismo é a prática - mais do que a ideia - de encarar o eu como o ponto centrípeto em torno do qual todo o universo revolve. A incapacidade para nos vermos exactamente como somos - um entre outros - é uma incapacidade para ver a verdade. Ironicamente, a felicidade torna-se impossível quando o egocentrismo se instala. Porque é realmente falso que cada um de nós é o ponto centrípeto em torno do qual todo o universo revolve - este pensamento é uma contradição lógica -, o egocentrismo implica uma luta perdida à partida contra a realidade e a verdade. É assim que a figura do génio romântico, atormentado e egocêntrico, é simultaneamente a figura de alguém que é infeliz porque se recusa a ver-se como verdadeiramente é e a querer-se como verdadeiramente pode ser. (...)
Desidério Murcho
a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico, 2007

PERSONA


Feridas de Infância

Há feridas que, desde o nascimento, nos vão fazendo acumular medos. E máscaras com que os disfarçamos. Identificar essas feridas é uma forma de nos conhecermos melhor.
HÁ CINCO FERIDAS QUE NOS IMPEDEM DE SERMOS NÓS MESMOS : A ferida da rejeição, a do abandono. A da humilhação, a da traição e a da injustiça – palavras da terapeuta canadiana Lise Bourbeau.
A cada ferida corresponde uma máscara.
A ferida mais antiga é a da rejeição, aquela que mais cedo nos faz sofrer. A forma como evitamos que isso aconteça é fugindo, não enfrentando o que nos magoa. A seguir, vem a ferida do abandono. Quem a tem como ferida principal tende a ter um comportamento dependente. Segue-se a ferida da humilhação, a que corresponde a máscara do masoquista. Quem, desde criança, sofreu sobretudo de traição, disfarça a dor que continua a sentir sempre que essa ferida é activada, controlando tudo e todos. E a máscara criada por quem desde cedo sofreu de injustiça é a da rigidez.
Cada ferida resulta de uma longa acumulação de experiencias.
Todos nós temos maneiras de pensar ou crenças que nos impedem de ser aquilo que, no fundo, ambicionamos ser. E quanto mais essas máscaras nos magoam, mais tentámos escondê-las. Quanto mais uma determinada situação ou pessoa nos faz sofrer, mais o problema vem de longe. Criamos máscaras porque queremos esconder, de nós próprios ou dos outros, algo que ainda não quisemos enfrentar.
Essas máscaras são fortes na proporção da gravidade e profundidade da ferida. E a frequência com que as usamos depende da frequência com que a ferida é activada e do grau de sofrimento consequente. Só as usamos, no entanto, quando nos queremos proteger de alguém ou de alguma situação que, ainda hoje, nos faz sofrer.
Só através de uma atitude interior que não seja de revolta face aos acontecimentos da vida é que podemos ir discernindo aquilo que, no fundo nos é favorável ou não.
Ter essa atitude implica reconhecer que são as experiências de vida que nos permitem ir descobrindo quem verdadeiramente somos.
Lise Bourbeau

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

«Desprevenido, não sabia que os versos são mais perigosos do que o amor e a morte, porque são o abraço de sangue do amor e da morte.»

Pedro Sena-Lino

eternidade

Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se

o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não demais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,

diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.


Maria do Rosário Pedreira

a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico, Lisboa, 2007

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

sábado, 31 de julho de 2010

GINKGO BILOBA




Poema de GOETHE

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), escreveu em 1815 um poema sobre a Ginkgo biloba que dedicou a uma sua antiga amante. As folhas da árvore, com dois lobos, simbolizam o tema "uno e duplo" desenvolvido pelo poeta. O poema foi publicado em 1819 no livro West-östlichen Divan.


tradução de Paulo Quintela, antologia poética de Goethe publicada pela Universidade de Coimbra em 1958.



Ginkgo biloba

A folha desta árvore que de Leste
Ao meu jardim se veio afeiçoar,
Dá-nos um gosto de um sentido oculto
Capaz de um sábio edificar.
Será um ser vivo apenas
Em si mesmo em dois partido?
Serão dois que se elegeram
E nós julgamos num unidos?
P'ra responder às perguntas
Tenho o sentido real:
Não vês por meus cantos como
Sou uno e duplo, afinal?

GOETHE - Poema manuscrito


quarta-feira, 28 de julho de 2010

Amoras




Poema de Luiza Neto Jorge

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos


Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.

Foto de David Hamilton


Poema de Rosa Lobato Faria

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.
Logo o roçar ardente do joelho
E o ventre mais à frente na maré.


É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
Mas o beijo é carícia, de tão leve.


O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente
Ímpeto que não ache um abandono.


Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama.


Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.



Rosa Lobato Faria
INSIDE . OUTSIDE . INSIGHT


Poema de Adília Lopes

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
Rosas e mais rosas


Três Poemas de Fernanda de Castro

Três Poemas da Solidão

I

Nem aqui nem ali: em parte alguma.
Não é este ou aquele o meu lugar.
Desço à praia, mergulho as mãos no mar,
mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma.


Meu jardim, minha cerca, meu pomar.
Perpassa a Ideia e mói, como verruma.
Falar mas para quê? Só por falar?
Já nada quer dizer coisa nenhuma.


Os instintos à solta, como feras,
e eu a pensar em velhas primaveras,
no antigo sortilégio das palavras.


Agora é tudo igual, prazer e dor,
e a tua sementeira não dá flor,
ó triste solidão que as almas lavras.


II


Tão só! Cada vez são mais longos os caminhos
que me levam à gente.
(E os pensamentos fechados em gaiolas,
as ideias em jaulas.)


Ah, não fujam de mim!
Não mordo, não arranho.
Direi:
«Pois não! Ora essa! Tem razão».


Entanto, na gaiola,
cantarão em silêncio
os sonhos, as ideias,
como pássaros mudos.


III


Solidão.
A multidão em volta
e o pensamento à solta
como alado corcel.
E as ideias dispersas, em tropel,
como folhas ao vento
pétalas do Pensamento.


Solidão.
A angústia da Cidade,
a impossível procura da Unidade,
o clamor
do silêncio interior,
mais pungente, estridente,
que os bárbaros ruídos
que ferem, dilaceram
os nervos e os sentidos.


Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

Poema de Fernanda de Castro

Já não Vivo, Só Penso


Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.


Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.


Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,


ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.


Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

Fernanda de Castro


A Poesia de Fernanda de Castro

29 DE JULHO - 21.30h - CAFÉ PROGRESSO
Para Pascoaes os versos de Fernanda de Castro continham "o que de mais eterno há na poesia".
E Pessoa, José Gomes Ferreira, Ary dos Santos, Natália Correia, Cecília Meireles, Drummond de Andrade, Pirandello ou Mircea Eliade foram algumas das figuras que conviveram com esta poetisa, romancista, dramaturga, "a primeira neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema...", - nas palavras de David Mourão-Ferreira.
Fernanda de Castro encarnou na poesia a grandeza de "um doloroso, humano coração", glorificando a vida em todas as suas facetas: o sol, o amor, a alegria dos dias felizes, a dor amarga, a ânsia de voar para um longínquo lugar de luz e paz nos dias de infinita solidão.
Não é de perder esta rara oportunidade de assistirmos a uma sessão de poesia sobre Fernanda de Castro no próximo dia 29 no Café Progresso pelas 21,30 com leitura de poemas

segunda-feira, 26 de julho de 2010

quinta-feira, 22 de julho de 2010

MARÉS VIVAS - 15, 16 E 17 DE JULHO - GOLDFRAPP, PLACEBO e EDITORS - OS MELHORES NO LUGAR ERRADO







A Cultura dos Concertos/Festivais, a Crise e a Juventude Amolecida

Pela primeira vez, assisti ao Festival Marés Vivas, na Afurada, Gaia.
Não queria acreditar. Foram três dias de S. João no Porto. Espirito de Festival nem vê-lo. O chamado povo e muitos pré-adolescentes só tinham como objectivo formar filas nas barracas da Super Bock e do Licor Beirão. As ofertas de brindes aos consumidores eram aliciantes. Chapéus de palha, lenços para o pescoço e sei lá que mais. Só faltavam os martelinhos. Como observadora que sou reparei que, da parte do público, o maior entusiasmo era atingido com as palmas finais e assobios, numa espécie de histeria colectiva. Porque durante as actuações de GOLDFRAPP, PLACEBO ou EDITORS, o público encontrava-se distraido a clicar nos telemóveis, a transportar copos de cerveja, três e quatro por pessoa e a brincar com os chapéus-brinde. Uma barbárie digna do norte. Há uma diferença abismal de comportamentos entre festivais do Sul e do Norte. O som era desastroso, ao ponto de no segundo dia a banda EDITORS abandonar o palco por 20 minutos, porque estavam a receber choques dos instrumentos musicais. Incomprensão geral do público, pensava que era uma atitude de birra da parte dos Editors. Enfim, foi uma experiência na "máquina do tempo" de regresso à idade média. NUNCA MAIS.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Trabalho plástico de Isabel de Sá

«A MINHA INFÂNCIA NUNCA PERDEU A SUA MAGIA. NUNCA PERDEU O SEU MISTÉRIO. NUNCA PERDEU O SEU DRAMA. »

Louise Bourgeois

Trabalho plástico de Isabel de Sá

«A PERFEIÇÃO DA CARNE CONTRARIA O TERROR DA MORTE.»

Joaquim Manuel Magalhães






















Palavras de Manuel António Pina

As palavras são seres intranquilos. Mesmo as mais conformadas e mais comuns, dessas que servem, não para dizer, mas para comunicar, têm sobressaltos e caprichos de sentido que nos deixam de repente ainda mais desamparados diante do ameaçador mundo de todos os dias. E palavras desmesuradas e antigas, pelas quais pensámos um dia ser capazes de morrer e envelheceram connosco ou julgávamos mortas, assomam-nos ainda às vezes aos lábios vindas do fundo da memória ( ou, quem sabe?, do fundo do coração) como se nos dissessem: «Sou eu, não me ouves chamar?»
Quando era jovem, gostava da palavra «todavia». Parecia-me haver nela algo alado, simultaneamente som e sentido, que dava alturas poéticas à prosa mais banal e rasteira.
E da palavra «fidelidade», que encontrei intacta num livro de Jorge de Sena emprestado por uma biblioteca itinerante da Gulbenkian. Nas intermináveis noites da adolescência, acreditava então que havia palavras secretas que podiam proteger-me da solidão e da incoincidência, e enchia de versos folhas e folhas à sua procura ou inventava línguas desconhecidas para elas ( ainda hoje, tantos anos depois, escrevo por vezes nessas línguas). Noutras alturas deixava que as minhas palavras falassem sózinhas, repetindo-as alto até perderem sentido ou até se desmoronarem para dentro de si mesmas em novas palavras, (...)
As palavras, porém, gastam-se, como disse Eugénio. E compram-se e vendem-se, mesmo aquelas de que somos mais intimamente feitos. (...)
Temos cada vez menos palavras a cuja sombra nos acolher ou capazes, não só de nos nomear, mas de nos convocar. (...)
Notícias Magazine, 04.JUL.2010