quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Os Objectos Herdados

Sim, as coisas são o veículo de conhecimento, à medida que se dispõem experimentam o nosso pensamento e submetem à prova a nossa maneira de agir; disponho-as de certa maneira e já outras percepções surgem, mudo-as de lugar, estabeleço entre elas outras recíprocas relações, e já novos seres estão presentes e começam a exprimir-se (a mim) para que eu não os abandone, ou descreva, os mantenha, os reforce na sua realidade nascente; quando tudo por mim for abandonando (penso na morte), haverá objectos que, em outras casas que os herdaram, chamarão alguém a seu destino.

Maria Gabriela Llansol, Finita.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Pintura de Luís Melo

A propósito da relação de Fernando Pessoa com Ofélia

«Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo.
Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já justificação do amor, nem de uma parte nem de outra.»

Ter Ofélia enquanto mulher, com corpo, desejo e sexo, implicaria outro nível de intimidade, que Pessoa parecia temer, como referido. Aliás, a infantilidade que caracteriza a vida amorosa do poeta só poderia ser preservada mantendo Ofélia como um «bebé» - banindo o erotismo (evitamento que poderia durar mais quanto tempo?) - e prosseguindo o amor que os unia como maternal. Assim, nessa mesma carta de despedida, Pessoa sugere:

«Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco como meninos, e (...) conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.»

Foi assim que o Super-Camões viu - ou pretendeu ver - o seu relacionamento com Ofélia. Como um «amor de meninos». « Inútil». Sem sexo. Inconsequente e desresponsabilizante, já que o amor adulto pressupõe reciprocidade.

Maníacos de Qualidade, Joana Amaral Dias, editora A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010

Pintura de Luís Melo

Fragmento do romance A MORTE EM VENEZA de THOMAS MANN

(...) Não existe nada de mais estranho e espinhoso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista - que diáriamente, mesmo hora a hora, se encontram, se observam e que têm assim de manter, sem cumprimentos e sem palavras, a aparência de desconhecimento indiferente, devido ao rigor dos costumes ou a caprichos pessoais. Entre elas existe inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria da necessidade insatisfeita, anormalmente recalcada, de conhecimento e comunicação e sobretudo também uma forma de consideração tensa. Pois o ser humano ama e respeita o outro ser humano enquanto não está em posição de o julgar e o desejo é produto de um conhecimento insuficiente.
Necessariamente. (...)
Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. Mas diz-me agora, meu querido amigo, acreditas que se pode atingir alguma vez a sabedoria e verdadeiro valor viril quando se caminha para o espiritual por via dos sentidos? Ou acreditas antes (e és livre de o decidir) que esse caminho é cheio de atraentes perigos, na realidade um caminho de desacerto e pecado, que conduz necessariamente ao erro? Pois tens de saber que nós, poetas, não podemos embarcar no caminho da beleza sem que Eros nos acompanhe e se arvore em líder; podemos bem ser herois à nossa maneira e guerreiros disciplinados, mas não deixamos de ser como as mulheres, pois a paixão é para nós sublimação e o nosso desejo deve permanecer amor - é esse o nosso prazer, é essa a nossa vergonha. Vês agora que nós, os poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade, uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interdizer. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo?

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Página 72 de um dos LIVROS DE ARTISTA de ISABEL DE SÁ

O FILHO DE MIL HOMENS - VALTER HUGO MÃE - 24 de Setembro - LANÇAMENTO em LISBOA - LX FACTORY - 21.30horas

27 de Setembro, pelas 15horas, no anfiteatro2 da Faculdade de Letras da Universidade do Porto- DEFESA DA TESE - MARIA BOCHICCHIO

A TESE !!! A POESIA NA POESIA DE POETAS PORTUGUESES

A minha querida amiga italiana Maria bochicchio vai defender a sua tese de Doutoramento em LITERATURAS E CULTURAS ROMÂNICAS, especialidade em LITERATURA PORTUGUESA, no dia 27 de Setembro, pelas 15 horas, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no Anfiteatro 2.

A dissertação intitula-se “ A POESIA NA POESIA DE POETAS PORTUGUESES: José Régio, Vitorino Nemésio, Carlos Queiroz, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny.
Orientação do Prof. Doutor Arnaldo Saraiva, e será arguida pelos Profs. Doutores Maria Paula Nina Mourão, Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Carlos Alberto Mendes deSousa, Professor Associado do Istituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho. Do júri fazem parte as Profs. Doutoras Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira, Professora Associada com Agregação e Zulmira da Conceição TrigoGomes Marques Coelho dos Santos, Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

CARLOS QUEIROZ - FERNANDO PESSOA - O POETA E OS SEUS FANTASMAS

(...) Todos os poetas são acompanhados - às vezes, mesmo tiranicamente perseguidos - por entes invisíveis que se exprimem numa linguagem desconhecida, de natureza mais musical do que idiomática. Ouvir essas falas e, numa total concentração anímica - num estado a que ouso chamar de pura inconsciência lúcida - interpretá-las, é todo o acto de criação poética.
O exemplo de Rainer Maria Rilke, escutando, no castelo de Duino, em certa manhã tempestuosa, uma voz oculta que lhe ditou, inteiro, o verso inicial das suas famosas elegias : («Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as hierarquias dos anjos?»), transcende esse silêncio genético - só na essência rítmico - e eleva o fenómeno a uma altitude inacessível à compreensão dos mortais. Todavia, no plano em que Arthur Rimbaud afirmava a necessidade de o homem se tornar vidente para poder ser poeta, já a análise crítica pode  penetrar e, aí, - mesmo através do satanismo de quem se propusera, por esse meio, divinizar-se - descobrir uma alma inocente e ansiosa de Deus, como fez o ensaísta católico Jaques Rivière, que via no extraordinário poeta de Uma Estação no Inferno (palavras suas) « um maravilhoso introdutor no Cristianismo».
Rolland de Renéville, no seu livro de ensaios L'Expérience Poétique, diz o seguinte« Poetas e Místicos»: - «O estudo da inspiração revelou-nos que certos poetas se abandonam à corrente da sensibilidade e das paixões até ao instante em que ressoa aos seus ouvidos uma voz que parece exterior ao seu espírito, enquanto que outros, ao contrário, se esforçam por realizar, com uma atenção suspensa, a construção verbal que premeditaram. Estas opostas diligências levam-nosà obtenção duma realidade única: a Poesia. Sabemos, por outro lado, através das confidências dos místicos (continua Renéville), que o êxtase os prende, tanto no momento em que deixam agir sobre eles o que chamam a graça divina, como quando se esforçam, com voluntária meditação, por chegar à contemplação da entidade que perseguem.» Rolland de Renéville classifica de método passivo aquele que corresponde ao primeiro estado – tanto de inspiração como de êxtase místico – e de método activo o que corresponde ao segundo.
A obra poética de Fernando Pessoa e, sobretudo, as suas confidências pessoais sobre o assunto, fazem-nos crer que a sua inspiração pertencia – pela constância com que ele era acompanhado por esses entes incoercíveis a que há pouco aludi – quase exclusivamente à primeira espécie.
Mas, além dessas entidades (que nada e ninguém nos autoriza a garantir que sejam anjos ou demónios), outras, não menos abstractas e assíduas, perseguiam o seu espírito. Criadas pela imaginação necessariamente anormal, revelavam-se-lhe, talvez por isso mesmo, com mais sensível consistência, quase corpóreas, quase humanas. Não eram, somente, suas criaturas, mas seus desdobramentos anímicos, não eram somente os «eus parciais» a que Freud se referiu – comandados e passivos – mas eus parciais autónomos e criadores.
É a isto que eu chamo os fantasmas de Fernando Pessoa, num sentido diverso do que o mestre da psicanálise atribuiu à mesma palavra no seu ensaio: A criação literária e o sonho acordado». Para ele, Freud, fantasmas são as fantasias originárias de desejos insatisfeitos que os homens acalentam dissimuladas, como prolongamentos do mundo infantil dos jogos solitários; são os substitutos da realidade apetecida e nunca alcançada: são, numa palavra (que é, aliás, um sinónimo seu); os castelos em Espanha dos adultos.
Ao que eu designo por fantasmas, chamou-lhes F.P. sub-personalidades ou heterónimos cujo significado exprimiu assim:- «A obra pseudónima é do autor em sua pessoa; é de uma individualidade completa fabricada por ele, como o seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu.»
Fabricada por ele, disse Fernando Pessoa. Sinceramente? Fingindo?Ou fingindo que fingia?Isto foi escrito em 1928. (…)





Organização, introdução, leitura e notas de Maria Bochicchio, edição ÁTICA/ Babel, Lisboa, 2011

domingo, 18 de setembro de 2011

«Eu vejo a morte - disse Lillias»

Fragmento do livro LILLIAS FRASER da escritora HÉLIA CORREIA

"Lillias extinguia dentro de si mesma a vigilância de que precisara para fazer o caminho até ali. E aquela fraqueza que a tomava, em vez de a assustar, trazia o embalo da sua infância ao colo de Margaret. «Que nome tem vossemecê?»
- Blimunda - disse a mulher. - Blimunda Sete-Luas.
- É um bonito nome - disse Lillias. Quis pegar-lhe na mão, porém Blimunda já não estava a seu lado. O próprio fogo se tornava invisível, devagar.

Lillias sentiu os olhos de Blimunda e acordou. Ela sorria-lhe outra vez. «A criança está bem. De hoje em diante, eu tomo conta de vocês as duas.»
- Que criança, senhora? - disse Lillias.
- A que tu, Lillias Fraser, vais parir.
- Como pode sabê-lo?
- Vejo dentro do corpo das pessoas quando estou em jejum - explicou Blimunda.
- Eu vejo a morte - disse Lillias.
Blimunda Sete- Luas inclinou-se e tocou-lhe com os dedos na camisa. «Então sou mais feliz que do que tu és. De hoje em diante só verei este menino.»


in LILLIAS FRASER, RELÓGIO D'ÁGUA, Lisboa, 2001

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

PAOLO SCHIFANO

LAMENTAÇÃO DE ADRIANO SOBRE A MORTE DE ANTINOO

Não escreverei mais o meu nome em letras gregas sobre a cera das tabuinhas
Porque estás morto
E contigo morreu o meu projecto de viver a condição divina


Sophia de Mello Breyner Andresen

ANDY WAITE - The Weight of Wings

Poema de SOPHIA DE MELLO BRYNER ANDRESEN

ROSTO


Onde os outros puseram a mentira
Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte

Ficou o teu rosto que ninguém conhece
O teu desejo sempre anoitecido
Ficou o ritmo exacto da má sorte
E o jardim proibido.

RODIN - The Walking Man

Poema de João Borges

A LUZ DA MORTE


Um rapaz cantava a morte
e a sua voz exalava doçura

Pedi-lhe que cessasse
o canto triste, o suicídio.

Respondeu-me"Eu canto a vida"

Esperei, então, o momento
em que a treva venceria
ou o choro me salvasse.


AS SOMBRAS DE UM CORPO SÓ, Lisboa, 2011

sábado, 10 de setembro de 2011

BOOKS e ROSAS DAMASCENAS

Poema de AMADEU BAPTISTA

PAINEL PARA ROSALIA DE CASTRO

É um frio tremendo.
A água gela nas torneiras, a solidão
cresce com uma unha, uma sombra
atrai todas as camisas de silêncio, arde, é uma noite
encerrando os perigos da perdição, os ferros agudíssimos
do silêncio.

É um frio tremendo.
Perde-se o caminho de casa, a luz extingue-se,
pergunta-se pelo sangue e o sangue não responde, o sangue
perde-se aos borbotões na vida, não há caminho, não há
regresso, a sereia canta
no denso nevoeiro, mas não há esperança, a tempestade
é o único lugar, o único lençol, a voz velocíssima
entregando-nos sem rendição, entregando-nos.

Como uma agulha fecha-nos os lábios, ata-nos
as mãos, como uma agulha de silêncio, feroz, terrível,
cose-nos
contra as paredes e os olhos saltam, saltam, é um frio tremendo
onde tudo arde,
arde antiquíssimo, flecha no coração, solidão
descendo o braço, descendo devagar, espraiando-se

na terrível superfície do silêncio.

Rosalírica Homenaxe de 27 poetas portugueses a Rosalía

"As lembranças que na alma lhe moravam," Luís de Camões

DARK, ONLY DARK...

Poema de João Borges

AO DOBRAR A PÁGINA


Palavras de granito
marcaram a cidade
Repete-se tudo.

Por mais calor que faça
tenho frio. Um rapaz
deixou no escuro
a minha pele.

Porém, sento-me, divago.
Não conto as horas,
apenas sei que já sou outro.

AS SOMBRAS DE UM CORPO SÓ, Lisboa, 2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

CHRISTINA ROSSETTI

Tradução de JOÃO BORGES

INTRODUÇÃO A CHRISTINA ROSSETTI

Por Katherine McGowran

Ao longo da sua vida, Christina Rossetti cultivou uma imagem de si mesma como poeta reclusa. Uma devota e pia anglicana, viveu discretamente e escreveu cerca de quinhentos poemas religiosos e várias prosas de devoção. Na memória que prefaciava a sua edição de 1904 dos poemas de Christina, o irmão William [Michael Rossetti] recordava que as reticências e reservas sociais dela eram acompanhadas de uma aversão ao ‘exibicionismo’: Na sua reputação de poeta ela nunca presumiu, nem nunca voluntariamente, aludiu às suas capacidades: num contexto de mediocridade, ela consentia em parecer tão medíocre como o mais discreto de todos. (Memória, p. LVI)1.  Aparentemente introspectiva, sentimental e profundamente religiosa, Rossetti foi apresentada ao longo da maior parte do século XX como uma escritora cujos poemas lidavam principalmente com emoções privadas, e que se afastou da publicidade e da fama. No entanto, esta suposta modesta poeta, que publicou o seu primeiro trabalho com dezassete anos de idade, foi o primeiro dos escritores associados ao movimento Pré-Rafaelita a obter a atenção da crítica. Além de poesia e prosa de devoção, Rossetti escreveu algumas histórias infantis. A sua produção poética, que inclui poesia lírica, poemas narrativos, baladas e sonetos, mostra o alcance de uma poeta de considerável talento e ambição. Os poemas de Rossetti são raramente tão imediatos quanto as suas superfícies simples podem sugerir e o seu uso de formas literárias tradicionais é frequentemente desafiador e inovador.

Rossetti era filha de Gabriele Rossetti, poeta patriota, pedagogo e professor de Italiano; e da sua mulher de descendência italiana, Frances [Lavinia Polidori] Rossetti. O pai havia fugido de Nápoles em 1821 depois do fiasco de um motim político que pretendia conseguir uma constituição para o reino. A sua mãe, uma governanta, era irmã do Dr. John Polidori, fisiatra de Byron e autor de The Vampire (1819). Christina, nascida em 1830, foi a filha mais nova dos quatro filhos precoces dos Rossetti. Os seus irmãos, o editor e crítico William Michael Rossetti e Dante Gabriel Rossetti, o famoso poeta e pintor, foram fundadores do movimento Pré-Rafaelita. A imã Maria [Francesca], que professou na Ordem de Todos os Santos em 1873, partilhava a paixão do pai por Dante [Alighieri]2 e a crença inabalável da mãe na fé Anglicana, uma herança que Christina, apesar de exteriormente não menos pia, achou mais perturbante.

Christina foi em todos os aspectos uma criança de ‘bom-coração’ e curiosa e um pouco temperamental, dada a rompantes e birras. Tinha um ‘temperamento apaixonado’ que, durante uma discussão com a mãe, a levou a tomar um par de tesouras e esfacelar o seu próprio braço, para expressar a sua raiva (Packer, p.10). No entanto, algures durante a sua adolescência, ela sofreu um trauma emocional ou espiritual que resultou numa alteração permanente do seu carácter. Decidiu então que renunciaria a todos os passatempos prazerosos e aos divertimentos, pois sentia que se demorava demais neles. A partir daqui, passou a frequentar pouco a sociedade, com excepção do seu círculo mais íntimo de família e amigos, e aderiu estritamente aos princípios da fé Anglicana, que se tornariam uma influência dominante na sua vida e no seu trabalho. Como recorda o seu irmão William, O seu temperamento e carácter, naturalmente afectuosos e livros tornaram-se uma ‘sorte escondida’. (Memória, p. LXVIII).

Apesar das restrições auto-impostas que esta forma de vida altamente escrupulosa implicava, Christina não desistiu totalmente da sociedade. Ela pertenceu ao ‘The Portfolio Club’, um grupo de mulheres escritoras, a que também pertenciam a sufragista Barbara Bodichon e a poeta Bessie Rayner Parkes. E também foi membro não-oficial da ‘Irmandade’ Pré-Rafaelita de artistas e escritores, contribuindo com poemas para números da sua revista literária The Germ, sob o pseudónimo de ‘Ellen Alleyn’. Ela assistiu a algumas das reuniões dos Pré-Rafaelitas que decorriam na casa da família, em Charlotte Street, apesar da sua habitual reserva a impedir de participar. Durante as décadas de 1840 e 1850, Christina posou para vários pintores Pré-Rafaelitas, incluindo o irmão Dante Gabriel Rossetti e William Holman Hunt. O seu poema ‘In Na Artist’s Studio’ é muito provavelmente baseado no estúdio de Dante Gabriel. Este poema oferece uma noção perturbante entre o artista e o modelo, retractando o artista como uma espécie de vampiro, a alimentar-se do rosto da ‘rapariga sem nome’, que aparece em vários papéis em todas as suas telas. Christina tentou desenhar ela mesma durante a década de 1850, tendo aulas para jovens raparigas dadas por outro dos membros dos Pré-Rafaelitas, Ford Madox Brown, em Camden Town. Em 1854, solicitada pelos relatos de pavorosas mortas na Crimeia, ela candidatou-se sem sucesso para ser enfermeira. Já no final da década de 1850, Christina trabalhou como voluntária na Penitenciária de Highgate, uma casa estabelecida com o objectivo de salvar ‘mulheres caídas’ e treiná-las para um emprego mais ‘correcto’ no mundo exterior.

No outono de 1847, Christina aceitou um pedido de casamento de James Collinson, um pintor conhecido dela pelas suas relações com os Pré-Rafaelitas. No entanto, quando ele se converteu ao Catolicismo Romano (Ele era freq                uentador da High Anglican Church onde Christina e a mãe iam.), ela rompeu o noivado, reivindicando diferenças religiosas como razão. Algures durante a década de 1860, Christina recusou outro pedido de casamento, uma vez mais por motivos religiosos. Charles Cayley, um ex-aluno do pai, era um poeta e escritor que se lançou numa tradução de Dante quando os dois se conheceram. Apesar da rejeição de Christina, ficaram amigos íntimos até à morte dele. Os seus motivos permanecem ainda obscuros, e no caso de Cayley, mais ainda porque o irmão William estava convencido do afecto de Christina pelo tímido aluno de Gabriele.

A publicação do primeiro livro de Christina, Goblin Market and Other Poems, em 1862 trouxe-lhe a atenção de muitos escritores e críticos. Recebeu boas recensões no London Review, no Litterary Gazette e no Athenaeum, que louvaram a sua vívida imaginação e a originalidade do seu versejar. Christina foi comparada favoravelmente com mulheres-poetas como Adelaide Procter e Jean Ingelow, cuja popularidade originou ocasionais acessos de inveja. Rossetti foi também aclamada como a única possível sucessora de Elizabeth Barret Browning. A comparação com Barrett Browning foi nalguns aspectos inevitável, já que o seu póstumo Last Poems (1862) surgiu no mesmo ano que Goblin Market. As tendências simbolistas de Rossetti e a sua tendência para exuberantes ambientes medievais parecem mostrá-la como indiferente a preocupações contemporâneas, e portanto oposta a uma escritora como Elizabeth Barret Browning, para quem a poesia era uma actividade pública e política. Falando da ausência de política nos seus versos, numa carta ao irmão, Rossetti explica: não está em mim, e portanto nunca sairá de mim, uma inclinação para a política e a filantropia ao lado de Mrs. Browning: tal pluralidade deixo para alguém maior do que eu (Cartas, p.31). Os poemas de Rossetti não contam com as referências explícitas aos problemas sociais contemporâneos que encontramos nos poemas de Browning, no entanto eles contêm a sua própria crítica social indirecta.

Apesar da recusa de Rossetti para ‘a política e a filantropia’, a verdade é que fez campanha vigorosa para causas sociais como o Movimento Antivivissecção e o Protection of Minors Bill, que pretendia acabar a exploração de crianças para a prostituição, através da alteração do limite mínimo de idade dos treze anos para os dezasseis. A fama trouxe petições de pessoa que pretendiam o apoio de Christina e as suas cartas desta altura denotam o seu envolvimento activo e esforços em benefício das várias causas. No entanto, quando Augusta Webster, uma poeta cujo trabalho Rossetti admirava, solicitou o seu apoio para o projecto-de-lei de 1878 para o sufrágio, Rossetti estava relutante em aceitar, respondendo em termos que revelavam o conflito entre as suas crenças religiosas (A ênfase dada na Bíblia às diferenças de género –sendo as mulheres subordinas aos homens.) e o seu reconhecimento da restritiva ‘barreira do sexo’ (Bell, p.112), que impedia o avanço e a participação das mulheres.

Em 1872, foi diagnosticada a Christina a doença de Grave, uma doença de tiróide de que ela sofreria intermitentemente para o resto da vida. Pela mesma altura, a saúde de Dante Gabriel começou a deteriorar-se. Os seus sintomas consistiam em delírios paranóicos e eram alimentados por um misto da culpa pela morte de [Elizabeth Eleanor] ‘Lizzie’ Siddal (Que havia morrido em 1862, com uma overdose de láudano.) e as acusações dos críticos que cada vez mais apontavam imoralidade e excessos de sensualidade nos poetas Pré-Rafaelitas. Ele tornara-se cada vez mais dependente do cloral e nunca realmente recuperou a sua saúde ou o seu equilíbrio mental. Morreu dez anos depois, no seguimento de um ataque cardíaco. Em 1883, morria o grande amigo e ex-pretendente de Christina, Charles Cayley, deixando instruções para que ela fosse a sua executora literária. Três anos depois, Frances Rossetti, com quem Christina vivera a vida inteira, morre também. A cominação destas três tristes perdas e da sua própria saúde precária, fizeram de Christina mais relutante ainda em envolver-se na sociedade. O seu aspecto fora consideravelmente alterado pelas crises da doença de Grave, que lhe descolorou a pele e tornou os seus olhos invulgarmente proeminentes. Ela passou a dedicar cada vez mais tempo a escrever textos de devoção, poemas e prosas, que publicava através da Society for Promoting Christian Knowledge.

A publicação do terceiro e quarto volumes de poesia, The Prince’s Progress and Other Poems (1866) e A Pageant and Other Poems (1881) ajudaram a manter a sua reputação. Em 1885, Christina recebeu um volume de poemas da poeta irlandesa Katherine Tynan, que na dedicatória escrevia com humildade e reverência para a primeira das mulheres poetas, da última e menor (Marsh, p.535). Tynan visitou Rossetti na década de 1880, mas ficou de alguma forma desconcertada por encontrar a poeta um pouco envelhecida vestida de forma algo prosaica, sendo a imagem romântica que ela havia idealizado dissipada pela saia de tweed e as botas toscas da anfitriã. As expectativas de Tynan da poeta usar vestidos de tecidos suaves e de belas cores (p.536) dão-nos uma noção dos mitos criados à volta de Rossetti. Ela parece ter sido figura tão icónica quanto inspiradora para a geração de mulheres escritoras que lhe sucede. Tynan foi só uma de muitas mulheres escritoras que se inspirou em Rossetti. Muitas das poetas da geração vindoura, como Alice Maynell, Charlotte Mew e Michael Field se devem a ela.

Em 1892, descobriu-se que Christina sofria de cancro de mama. Foi operada em Maio, mas o cancro reapareceu um ano depois. Ao serem-lhe administrados opiáceos, para as dores, ela começou a ter alucinações que preocupavam o seu irmão ateu William. No seu leito de morte, Christina expressou o seu medo de ir para o inferno, as suas crenças religiosas criaram nela mais terror do que conforto, no fim da sua vida. Foi enterrada no cemitério de Highgate, junto ao pai, à mãe e à cunhada Lizzie Siddal.



1:Esta memória prefaciou a edição de 1904 dos “Poemas Completos”, que incluía alguns poemas inéditos de Rossetti. A edição, de William Michael, contem também algumas notas úteis, que ajudam a explicar muitas das fontes da poesia de Rossetti.

2: Maria Francesca Rossetti chegou a publicar, em 1871 o ensaio The Shadow of Dante : Being an essay towards studying himself, his worl, and his pilgrimage. Além disto, traduziu ainda o diurno monástico The Day Hours and Other Offices as Used by the Sisters of All Saints, já quando vivia na Ordem de Todos os Santos. 

sábado, 13 de agosto de 2011


Poema de JOÃO BORGES


INUNDAÇÃO
I’ve got these feelings and I don´t know why
I see all my fears in the darkness of light.
What made the river so cold?
John Douglas
Apesar do prenúncio do verão,
a chuva inunda a casa,
derruba os objectos e perde-os.
Chega depois às páginas,
levanta a tinta das palavras,
apaga suavemente a marca
de cada vez que te odiei ou
amei, como apaga também
a esperança de poder viver
nesta casa onde me afogo.

E eu queria levantar-me,
salvar as coisas, os livros que
foram a muralha contra o isolamento
mas estou aqui, de pé, parado,
a sentir a água subindo pelo
meu corpo, tão fria
como se me preparasse
para um longo sono onde
outra vez te irei beijar.




Lisboa, 13.5.11

Poema de ISABEL DE SÁ

RISCO


Experienciar a literatura faz da vida uma espécie de ensaio particularmente ameaçado. Soberano, o poeta fala-nos de uma intimidade cheia de dúvidas. O desejo de absoluto vota ao fracasso um empreendimento demasiado grave. Provocar o desenlace entre o espírito e a matéria é um risco.

O Avesso do Rosto, Editorial Caminho, Lisboa, 1991

Joop Lieverse - Maria in Rain


Poema de ISABEL DE SÁ


DECLÍNIO


O que faz o poeta separar-se do real é a decisão de se tornar concreto para a escrita. Se eu quiser esconder o que sou, recai sobre mim o poderoso rosto da imagem dilacerada.
Invoco o encanto do livro onde sei que as palavras são fugidias, mas isso não atenua o brutal declínio.


O Avesso do Rosto, Editorial Caminho, Lisboa, 1991

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Página de LIVRO DE ARTISTA de ISABEL DE SÁ

"O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem, por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis".

Fernando Pessoa

domingo, 31 de julho de 2011

MARGUERITE YOURCENAR - DE OLHOS ABERTOS

Foi publicado pela primeira vez entre nós em 1984, quando se lia muito Marguerite Yourcenar (1903-1987), e acompanhou-me em várias noites de insónia. A Relógio D’Água acaba de disponibilizar novamente De Olhos Abertos, em tradução assinada por Renata Correia Botelho.
O livro consiste numa longa conversa com o francês, entretanto desaparecido, Matthieu Galey, e a autora de Memórias de Adriano acabaria por não apreciar o resultado. Teria as suas razões, mas para nós, leitores de De Olhos Abertos, o livro é uma dádiva. Desde logo, de inteligência.
Matthieu Galey organizou-o tematicamente e os muitos capítulos tanto cobrem a obra literária da escritora de origem belga (os muitos títulos, influências maiores, etc.), como a sua vida pessoal, sem deixar de lado as convicções de Yourcenar sobre temas tão variados como política, ecologia, feminismo ou religião.
Para quem está familiarizado com os livros da única mulher até agora aceite na Academia Francesa (um facto a que se atribuirá maior ou menor importância), estas entrevistas talvez despertem o desejo de reler coisas tão perfeitas como A Obra ao Negro ou Golpe de Misericórdia. Para os que desconhecem Marguerite Yourcenar, trata-se de uma excelente introdução.
Aristocrata de nascimento e, sobretudo, de espírito, talvez corra, contudo, o risco de ser mal interpretada. Conservadora e absolutamente livre (tanto quanto o poderá ser um ser humano), Yourcenar é uma escritora moral que bebe nos grandes clássicos e na grande literatura e cujas posições — eticamente exigentes e politicamente independentes — talvez pareçam desfasadas num tempo que saiu por aí a galope.
Pomposa, por vezes; simples, quase sempre, deixa-se colar neste livro à frase que fez dizer ao Imperador Adriano: “A verdade é sempre um escândalo”.

De Olhos Abertos, Marguerite Yourcenar, 2011, Relógio D’Água
Postagem do blogue : Meditação na Pastelaria http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com

sábado, 30 de julho de 2011

O RAPAZ só tem 22 anos, já fez 2 filmes e um deles premiado...XAVIER DOLAN


CINEMA - XAVIER DOLAN

Xavier Dolan - Um cineasta nascido em 1989 no Canadá, que tão jovem revela uma CULTURA extraordinária. Os seus filmes surgem num registo contemporâneo, urbano, autobiográfico, e talvez devido a essa autenticidade, criam uma empatia com todo um grupo de jovens, que se vêem retratados nos seus filmes.

"Sou extremista em individualismo, em determinação, em teimosia e em solidão..." palavras deste jovem cineasta que apresenta uma personalidade forte, disposto com os seus filmes, a desmascarar hipocrisias que já não se suportam no séc. XXI. A hipocrisia da família, a formatação da sociedade, os papeis destinados a cada rapaz e rapariga que nasce, seja o seu lugar na sociedade, seja a sua orientação sexual.


Consultem o endereço do blogue Cinema na Rede
http://www.cinemanarede.com/2010/12/sobre-o-cinema-de-xavier-dolan.html

XAVIER DOLAN - EU MATEI A MINHA MÃE

Entrevista com XAVIER DOLAN

Retrato de um jovem cineasta - XAVIER DOLAN

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Floria Sigismondi

Poema de Joaquim Manuel Magalhães


Se os teus dedos cruzam os meus dedos
esses ângulos são infinitos, nem são ângulos,
contêm estilhaços em fogo, a respiração das seivas.
O teu corpo não tem parcelas.
O prumo atravessa-te da cabeça aos pés,
sem largura, suspenso dos meus olhos.
Os extremos, um no ar outro na terra,
cercam os meus caminhos.
Todos os teus pontos respiram
uma água a que chamo ruas.
A superfície mede o teu peito,
o volume as tuas mãos, o abismo
as costas curvadas no lençol.
Um dos pontos, o que me atravessa,
prolonga-se até ao meu repouso.
Aquele onde te atravesso eu
é um centro receoso, o mundo, a infância
que ninguém soube viver.


uma luz com um toldo vermelho, Editorial Presença, Lisboa, 1990

quarta-feira, 27 de julho de 2011

ELZA SOARES

A CARNE - ELZA SOARES

Carta de Manuela Santos para José Miguel Wisnik depois da descoberta da cantora brasileira ELZA SOARES.


Uma tal Elza Soares

Descobri por acaso este disco “DO CÓXIS ATÉ AO PESCOÇO” e tenho-o partilhado com alguns amigos. (O disco e as primeiras impressões que registei mal o ouvi):
Trata-se dum objecto musical insólito, desconhecido entre nós, e francamente desconcertante, provavelmente esdrúxulo na própria carreira da intérprete.

Tudo começou numa aula de ginástica, já no ido 2004, com uma canção do Cole Porter cantada por uma voz negra americana, mas em... brasileiro. Em dueto com Chico Buarque. Uma voz de espantação. Investigada a origem, lá fui para a FNAC à procura duma tal Elza Soares e descobri este disco fulminante.

A voz, em vez do açúcar brasileiro, tem ácido sulfúrico. E as letras são puro veneno. Como não usei antídoto, a corrosão fez estragos na alma. Mas dos bons, fiquei em estado de exaltação. Perguntei-me (e continuo a perguntar) se seria mesmo um grandecíssimo disco, ou se estaria a exagerar...

A mistura duma voz antiga, negra, forte, plástica, com ritmos alucinados, as letras que ela ousa gritar como quem atira nitroglicerina às trombas de todos nós, a explosão de vitalidade e criatividade, organizados com tanta riqueza e inovação formais, pareceram-me um assombro.

No Samba, no Rap, no Choro ou no Tango, em todas as cores, perfumes, timbres, eu ouvi SÉCULOS DE DESESPERO EM FORMATO TROPICAL. Muito ritmo, muita festa, muito excesso, muito carnaval. E uma dor e uma raiva que arranham a alma, e uma
 
grandeza que assombra, e uma coragem tão excessiva que é quase imolatória.
 
Esta Elza Soares em cada frase celebra toda a tragédia da escravatura e da negritude quando dança ou quando chora, quando grita ou murmura. Mesmo quando a voz se adoça, sabe a sangue, e a gargalhada abre-se em ferida.

Em algumas das faixas, por trás duma parafernália electrónica, surge aquela voz, qual oficiante duma celebração satãnica ou divina; homicida e suicida; rezando e blasfemando, numa implosão de contrastes que nos abrasam com o mesmo fogo em que se consome a celebrante.

Passei a considerá-lo, seguramente, um dos discos da minha vida.

Depois de escrever estas  1.ªs impressões que o disco me causou, enviei-as a um amigo brasileiro e pedi-lhe algumas informações sobre a cantora. Mais tarde, uma pesquisa na Internet deu-me mais dados.

E o que vim a saber confirmou e explica o que senti desde o início: a genialidade duma intérprete de excepção; as trágicas atribulações biográficas que se alquimicaram em dor e raiva na voz; um milagre de energia e inovação aos 72 anos de idade; a falta do reconhecimento devido, como paga do excesso de ousadia e do pouco tino comercial.

A “B.B.C.” elegeu-a em 2000 a “cantora do milénio”, e só por isso arranjou editora para este colossal disco, e das mais pequenas.

Quando o disco saiu, em Abril de 2002, muitos críticos da MPB logo o elegeram como o “disco do ano” no Brasil, e alguns deles,
nem tão poucos como isso, disseram mesmo que era o melhor disco dos últimos 5 anos editado no Brasil. Mas nem isso ajudou a sua divulgação em Portugal. Nem uma referência, e apenas a FNAC teve alguns exemplares à venda.

Estupefacta com a relação qualidade do objecto ó   nacional ignorância, e disposta a fazer justiça à minha modestíssima escala, aproveitei o Natal para oferecer o disco aos amigos, justificando a escolha com uma carta de apresentação, partilhando as intensas emoções experimentadas.

Pensei eu, ingenuamente, que bastaria conhecerem o disco, e a mesma assombração tombaria sobre aquele grupo de amigos que partilha comigo algumas idiossincrasias. Nada mais falso...

Só alguns, bem raros.

Confesso que não percebi o desacerto, e achei que se explicasse melhor... se contasse algumas peripécias biográficas da cantora, então sim, far-se-ia luz nas mentes um pouco obscurecidas dos meus amigos. E escrevi uma segunda carta. Engano meu! As reacções continuavam a ser simpáticas, mas nada entusiastas, com as tais, raras, excepções.

O que me deixa, confesso, um pouco atordoada. Porque não me convenço que seja apenas uma privadíssima idiossincrasia. Ainda acredito que, independentemente dos meus pessoalíssimos gostos, este disco é, de facto, invulgarmente bom.
 
E é assim que mando este objecto do (meu) culto

Espero que agrade.

A quem decidir ouvi-lo, faça-o como quem reza – no maior recolhimento, a sós, eventualmente com um copo de vinho e um brinde a todos os prodígios deste mundo. 

E depois partilhe as suas impressões comigo, sejam próximas, opostas, ou nem isso.

(Mas a quem gostar, partilhe-as também com os seus melhores amigos.)

Manuela Santos*

Psicóloga, Grupanalista, Psicoterapeuta de Inspiração Psicanalítica.

Resposta de JOSÉ MIGUEL WISNIK para MANUELA SANTOS*

Caríssima Manuela,
Há tempos recebi de você uma carta maravilhosa sobre o cantar de Elza Soares. Você nomeava com uma propriedade espantosa e entusiasmante as qualidades poderosas e únicas dessa artista que eu também quero tanto. Preciso te dizer que reconheci um por um dos meus próprios sentimentos naquilo que você escreveu, sem tirar nem por. Você se espantava e se decepcionava com a percepção de que aquilo que nos parece acachapantemente óbvio não ressoava no comum das pessoas com a mesma intensidade. Talvez hoje em dia você tenha admitido que essa discrepância de sentimentos, e a ausência de uma entrega total à escuta de uma voz tão entregue ao canto e à vida, sejam mais comuns do parecem, e que fazem parte do modo como as pessoas se resguardam, se protegem e anestesiam. O que não é admissível, para mim, no entanto, é que eu mesmo, ao chegar de Portugal ao Brasil, daquela vez, tenha me desorganizado e deixado sua carta num lugar perdido entre tantas coisas, e não tenha te respondido à altura. Inclusive porque você pedia expressamente que as impressões fossem partilhadas. Foi um momento feliz, mas tingido de remorso, este em que eu reencontrei a carta, e em que te escrevo. Quero reparar esse silêncio de anos, agradecendo a você pelas maravilhosas palavras e gesto, como o dessa dádiva com que você multiplicou o “Do cóccix até o pescoço” pelo mundo.
Um abraço carinhoso e reconhecido
Do
José Miguel*


*José Miguel Soares Wisnik, músico, compositor, ensaísta  brasileiro, professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.
*Manuela Santos, Psicóloga, Grupanalista, Psicoterapeuta de Inspiração Psicanalítica.

A DIVA NATÁLIA CORREIA


No decurso do II Encontro da Associação Portuguesa de Prevenção do Alcoolismo, foi abordado o tema “O Álcool na Literatura _ O Escritor e a Obra” que incluiu uma homenagem a Natália Correia, para a qual me pediram colaboração. Escolhi nessa ocasião dar um testemunho sobre algumas dimensões menos visíveis da personalidade desta escritora que me impressionaram e tocaram duma forma especial (por ter sido sua amiga e por ter privado com ela) e poderão ajudar a compreendê-la um pouco melhor.
Se um talento esplendoroso, uma inteligência luminosa e um magnífico sentido de auto-encenação foram responsáveis pela incendiada admiração que tantos de nós sentimos por Natália Correia, a pose majestática, tonitruante e por vezes feroz, assustaram outros tantos; mas apenas um olhar disponível e sem preconceitos podia dar-se conta, ao arrepio dos lugares comuns que sempre se foram dizendo a seu respeito, do absoluto desamparo e da total fragilidade deste ser excessivamente complexo e paradoxal.
A quem se deixava impregnar pelo carisma desta mulher extraordinária, não podia deixar de surpreender o intenso curto-circuito que a sua personalidade exprimia pela mistura do esplendor com o arcaico, ou como ela própria disse em “Madona”, referindo-se a uma personagem, podíamos senti-la como se estivesse “...misticamente ligada a uma religião onde as forças extremas, o sórdido e o sublime se fundiam numa única e inominável divindade... não havia qualquer duplicidade moral nesta sua forma de tocar os dois pólos da alma. Dir-se-ia que o seu espírito tinha um perpétuo movimento circular que incessantemente abrangia o superior e o inferior” (p. 41)
Esta complexidade e estes contrastes foram desde sempre para mim um poderosíssimo apelo à decifração. Tentar esclarecer alguns equívocos que envolveram a figura e a vida de Natália Correia é um tributo de quantos a conheceram e amaram.
O primeiro equívoco é sugerido pela associação da Natália à problemática do alcoolismo. Já por altura da sua morte houve quem, nunca a tendo conhecido, comentasse terem sido o álcool e o tabaco a vitimá-la. Nada mais injusto.
É verdade que Natália frequentava um bar regularmente, animando noite após noite tertúlias e convívios; defendeu exaltadamente marginalidades e marginais; celebrou com álcool festas e encontros; e abominou em discursos excessivos todas as formas de puritanismo. Tratava-se duma postura intelectual, uma atitude romântica, insubmissa e desafiadora, que partilhava desde a juventude com os surrealistas, de quem foi amiga, companheira de muitos percursos e em alguns casos musa inspiradora.
No entanto bebia muito moderadamente, apenas em situações sociais, e afirmava mesmo nunca se ter excedido. Quando deixou de beber e fumar por conselho médico, nunca a ouvi queixar-se por lhe sentir a falta; apenas sofria por ter perdido a saúde que lhe permitira no passado beber e fumar.
Aquilo que de mais subterrâneo a terá impelido para certos ambientes, sugeriu-o em “Madona”, a propósito de bares e do cortejo de seres bizarros que sempre lhes estão associados: “Perante essa inquietante sociedade de seres oníricos [Miguel], dava-me a impressão de um coleccionador de coisas fantásticas nas quais fazia entrar a tragédia afogada em risos desses palhaços da comédia dos sexos” (p. 84). Ou: “... Mas o que ele procurava era uma forma... de nadar naquele mar de naufragados, o único elemento que lhe permitia a sensação de se agitar e de se achar vivo no pulsar dessa agitação” (p.55). Ou ainda: “É no meio desses infelizes que eu me posso sentir um ser humano” (p.178).
Outro equívoco terrível que crucificou Natália Correia em vida diz respeito à lenda de “mulher fatal”, “vamp”, “devoradora de homens” (ou nem só), tecida através de inúmeras histórias e enredos, qual deles mais descabelado, com que mistificaram a sua vida amorosa. Este equívoco partilhou-o com outras mulheres de gerações próximas da sua. Grandes actrizes que ajudaram a criar e difundir o mito da “mulher fatal” surgem-nos hoje em dia, através de biografias póstumas (Garbo, Marlene, Marilyn, etc.), como vítimas destroçadas pelas armadilhas a que deram rosto, e revelam-se-nos mulheres imaturas, sexualmente inibidas, com vidas amorosas precárias e infelizes. Esta verdadeira patologia da feminilidade não parece encontrar-se nas gerações com menos de 60 anos. O cinema continua a promover imagens de mulheres belas e sensuais, mas distantes da “mulher fatal” dos anos 50. Sucessivas revoluções sexuais fizeram aparecer novas expressões para a mesma patologia da feminilidade, e ironicamente os herdeiros actuais destas “femmes fatales” dos idos 50 parecem ser certos travestis do “show business”.
Natália Correia contribuiu para este equívoco que se lhe colou à pele e à vida: foi uma mulher muito bela e uma sedutora compulsiva, uma “allumeuse”. Com as suas ideias libertárias e atitudes desafiadoras demoliu publicamente muitos tabus, sexuais incluídos, ajudando a criar uma imagem com que viria a ser perversamente agredida.
Era por isso totalmente inesperado darmo-nos conta, ao privar com ela, de quanto a sua vida e os valores pelos quais pautava o seu comportamento contradiziam esta ousada encenação intelectual. Confessava repetidamente, a pessoas quase sempre incrédulas, que se considerava uma mulher sexualmente inexperiente, inapetente e inapta. Emitia juízos de valor a respeito de comportamentos de pessoas que lhe eram próximas, que mais do que conservadores, chegavam a ser reaccionariamente puritanos.
Mas ela própria afirmou: “A minha ousadia era puramente intelectual, ou seja, a cobardia de viver” (“Madona”, p. 165). Ou: “...A poesia é o défice das nossas inibições. Viver poeticamente é viver as coisas em potência.” (Ibid., p. 154). Ou ainda: “... Fazer poemas enquanto se mata/ durante a cópula quando faminto/ esses nunca os vi fazer// A poesia é sempre em vez/mênstruo da alma uma vez por mês/ sangrenta flor abortada/ da natureza infecunda” (“Poema Sáfaro”, in “O Vinho e a Lira”).
Perante a perplexidade de quantos a procuravam compreender, tornava-se claro que não se tratava de fingimento: não havia uma Natália actriz “vs “ a pessoa; a figura pública “vs” a existência privada; a máscara “vs” o rosto. Ao contrário, estávamos sempre dentro do mesmo cenário, barroco, que ora nos aparecia pelo direito, ora pelo avesso, numa constante reversibilidade dos contrários.
Um dia contou-me que, quando criança, ainda nos Açores, vira num filme bíblico cristãos a serem devorados por leões num circo romano, e imediatamente tomara o partido dos leões. Nesta frase extraordinária, Natália Correia condensou toda a sua tragédia narcísica: ela foi sempre a vítima, condenada implacavelmente a ser comida pelo leão – em que ela própria se tornava para poder sobreviver. Cristão devorado e leão devorador, Natália Correia cumpriu este destino em vida e obra. Vítima sacrificial desde sempre crucificada na sua tragédia interior, o que a compeliu a trabalhar obsessivamente, e magnificamente, o tema da descrucificação.
Esta primordial crucificação (tão dilaceradamente exposta em “Uma Estátua Para Herodes”) dum ser que simultaneamente irrompia com uma energia anímica assombrosa (Henry Miller chamou-lhe “uma força da natureza”) pertencia ao que em Natália Correia permanecia um enigma em busca de decifração. Sensíveis à carga mítica que desde sempre a envolveu, podíamos ao mesmo tempo adivinhar a criança dependente, humilhada e culpabilizada que também foi. Com a sua admirável vitalidade “deu a volta por cima”, sem no entanto se soltar do fio da navalha onde sempre se equilibrou pela criação e fantasia que fizeram dela a genial fabricante de sonhos que conhecemos.
A devoção e admiração que procurava permanentemente obter à sua volta, foram a forma sublime com que recusou submeter-se à sua aflita dependência, que noutros planos sentiu com um desmesurado embaraço. A vergonha e humilhação transfigurou-as em magnífica arrogância com que golpeava implacavelmente quantos ameaçavam apequená-la. A terrível culpabilidade em que se consumia converteu-se em desafio e provocação com que “levantava as saias a essa podridão vestida de marido, de pai, de sacerdote” (“Madona, p. 36).
Neste precário equilíbrio entre dependência e necessidade de ser admirada, humilhação e arrogância ou mesmo culpa e desafio, Natália cumpriu-se excessiva e exuberante em cada um destes pólos antitéticos.
Alquimicando esta humaníssima dilaceração, o seu extraordinário talento marcou-lhe encontro com as próximas gerações, quando a sua vastíssima obra for conhecida, compreendida, apreciada e ocupar o lugar cimeiro que lhe pertence no panorama cultural do nosso século. O futuro deixar-se-á impregnar pela genialidade fulgurante das suas dádivas maiores: “...E à branca praia nos leva a onda materna/ Porque os deuses aí não são longínquos./ Têm seus tronos onde nos esperam/ Imutáveis os mitos” (in “O Armistício”).
É lá que a Natália Correia nos espera.

Maria Manuela Gonçalves dos Santos
Publicado na revista de Psicanálise, Psicoterapia e Desenvolvimento Humano, "Se...,Não! nº2, 2011