sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Foto de Mapplethorpe

basta que te dispas até te doeres todo,
retoma-te no tocado, no aceso,
e fica cego e,
por memória do tacto, desfaz os nós,
muitos, muito
atados uns nos outros,
e que inteiramente te alcance o ar, e,
depois de te haver abraçado de alto a baixo, apareça já
inextricável, ar
falado, a fino ouvido: cacofónico,
mas de um modo exacto, acho,
música inquieta, inconjunta, impura,
isso: essa música


Herberto Helder

A FACA NÃO CORTA O FOGO, súmula & inédita, Assírio & Alvim, 2008

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Foto de Lidia Martinez

FUMO AO ENTARDECCER


Depois de ter cheirado o perfume agridoce da morte,
depois de tantos corpos e paixões e sonhos.
olho agora, sobre a mesa, um copo vazio,
uns livros, papeis em desordem, velhas fotografias,
a luz do entardecer, apagando-se na janela.
Como numa natureza morta de Zurbarán
- a natureza morta, a natureza eterna -,
deixo-me viver já sem perguntas,
enquanto o fumo do cigarro desenha
todos os meus rostos: o que fui, o que sou,
o que serei, no frágil e caprichoso tempo.


Juan Luis Panero

Poemas, tradução e prefácio de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, Lisboa, 2003

Foto de Lidia Martinez

MARIANNE FAITHFULL/THERE IS A GHOST

A cidade anoitece e as ruas
enchem-se de quem só vive
para noitadas e engates. Este café
em plena Baixa, recolhe
os que procuram ficar sós.

O mundo conta-nos histórias
de príncipes encantados,
bonitos e bons amantes.

João Borges

As Sombras de um Corpo Só, Lisboa 2011

Os livros que nunca lemos

"Quando um dia, numa entrevista, perguntam a Borges quem era ele, respondeu que era todos os livros que lera. Eu quero crer que somos todos os livros que lemos mas igualmente os que não lemos.
(...) Às vezes pergunto-me quem raio seria eu, se em vez de ter lido os livros que li, tivesse antes lido os que não li.
Provavelmente cruzar-me-ia comigo na rua e não me reconheceria."

Manuel António Pina

sábado, 19 de novembro de 2011

INÊS LEITÃO

O meu corpo é a minha companhia.

( a partir da obra da pintora Graça Martins)




O meu corpo é a minha companhia
do cheiro dos meus dedos
ao desenho do mundo,
curva silenciosa da minha sobrancelha.


O meu corpo é a minha companhia
das unhas pequenas às coxas empurradas
pela gordura da carne,
antigo refego de barriga.


O meu corpo é a minha companhia
dos pêlos das minhas pernas
até à boca do meu corpo
posicionada pela natureza do meu género
entre as pernas
e cosida à nascença pela minha mãe.


O meu corpo é a minha companhia
quando o profano com outros corpos
e ele em silêncio se procura inteiro
na serenidade da frescura da manhã.


O meu corpo é a minha companhia
quando ao repousar o fogo me guia
e dessa certeza nasce poesia.

O meu corpo é a minha companhia
O meu corpo é a minha companhia.
O meu corpo é a minha companhia.
"Nunca ninguém escreveu, pintou, esculpiu senão para sair do inferno"

Antonin Artaud

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Foto de Lidia Martinez

ANNA AKHMATOVA

(Sobre os anos 10)


E nenhuma infância cor-de-rosa...
Nem pequeninas sardas, nem ursinhos, nem aneis de cabelo,
Nem tias bondosas, nem tios aterradores, nem mesmo
Amigos entre pequenas pedras do rio.
A mim própria desde o próprio início
O sonho de alguém parecia ou o delírio,
Ou o reflexo em espelho alheio,
Sem nome, sem carne, sem razão.
Já sabia a lista dos crimes
Que devia cometer.
E eis que, andando qual sonâmbula,
Entrei na vida e assustei a vida:
Diante de mim estendia-se como um prado,
Onde outrora passeava Proserpina,
Diante de mim, sem raizes, sem jeito,
Abriram-se portas inesperadas,
E saíam gentes e gritavam:
«Ela chegou, ela por si própria chegou!»
Mas eu olhava-os com espanto
E pensava:«Perderam o juízo!»
E quanto mais me elogiavam,
Quanto mais me admiravam,
Mais medo me dava neste mundo viver
E mais me apetecia despertar,
E sabia que pagaria  muito caro
Na prisão, no túmulo, no manicómio,
Em qualquer lugar onde devem acordar
Os como eu - mas continuava a tortura da felicidade.

4 de Julho de 1955
Tradução do russo selecção e notas de Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev, Cotovia, 1992

Foto de Lidia Martinez

INÊS LEITÃO

Cartas a S.



(carta nº 1, a última)



Afoguei o que restava das nossas memórias num balde água quente. A paciência de um afogamento individual,
quieto
tranquilo
de memória a memória
(uma a uma,
dor a dor)


até ao alinhamento rigoroso de todos esses pequenos cadáveres retirados mortos do balde,
mortos
molhados
quentes
deitados em fila no chão da cozinha até à solenidade do seu enterro.

E estranhamente.


Tão estranhamente, toda a água que escaldava no balde e me ajudava a cada execução por afogamento, não terá sido suficiente para me queimar as mãos.
Não vejo queimaduras. Não restam marcas.



No fundo, é como se nunca tivesse acontecido.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Foto de Lidia Martinez

INGEBORG BACHMANN

MANOBRAS DE OUTONO

Não digo: foi ontem. Com insignificantes
trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
E a nós não nos é dada, como aos pássaros,
a retirada para o sul. À noite passam por nós
traineiras e gôndolas, e por vezes
atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho,
onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.

Leio nos jornais muitas notícias - do frio
e suas consequências, de imprudentes e mortos,
de exilados, assassinos e miríades
de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer.
E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio dia
fecho-lhe a porta na cara, porque há paz
e podemos evitar essas, mas não
o triste cair das folhas à chuva.

Vamos viajar! Debaixo de ciprestes
ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos
contemplar a preços reduzidos
inigualáveis pores-de-sol! Vamos esquecer
as cartas ao dia de ontem, não respondidas!
O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,
com o bater da culpa - não estamos em casa.
Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.


O tempo Aprazado, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Foto de Lidia Martinez

«Put off that mask of burning gold»

A MÁSCARA


«Tira essa máscara de ouro ardente
E olhos de esmeralda.»
«Oh não, meu amor, atreves-te demasiado
A ver se um coração é selvagem e sábio,
Sem ser frio.»

«Só quero ver o que houver para ver,
O amor ou o engano.»
«Foi a máscara o que ocupou a tua mente,
E fez bater o teu coração,
Não o que está por detrás.»

«Mas a não ser que sejas minha inimiga
Devo inquirir.»
«Oh não, meu amor, deixa tudo ser como é;
Que importa, se entretanto houver fogo
Em ti e em mim?»


W.B.Yeats, Uma Antologia, Assírio & Alvim, 1996, Lisboa

sábado, 12 de novembro de 2011

Foto de Lidia Martinez

(...) Quem não sabe ocultar não sabe amar: os dúplices e os sinceros, os ingénuos como os sabidos, todos os amantes devem subscrever a validade deste aforismo. O «conquistador» e o amante silencioso vivem duas experiências de dissimulação inversas: o conquistador formula sentimentos que a sua deontologia profissional lhe impede de experimentar, o amante sem «amo-te» cala os sentimentos que sente. A cada um seu disfarce: a tagarelice de um é estratagema de conquistador; o silêncio do outro recusa o destino conjugal que a linguagem atribui ao amor. O libertino dissimula as suas verdadeiras intenções através da linguagem. O amante que se recusa à confissão dissimula a sua vertigem pela linguagem porque sabe que a palavra de amor transforma em pedido a emoção que dele se apoderou. (...)

A Nova Desordem Amorosa, Pascal Bruckner, Alain Finkielkraut, Livraria Bertrand, 1981
«Na palavra amor, há a palavra muro.»

Edmond Jabès

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Corações com mau feitio de Alexandra Mesquita

Cartas a S.



(carta nº1946)


Há uma liberdade na escrita da qual nunca te falei. É um composto. Como se num frasco, o mundo inteiro repousasse.




Mas não vamos falar disso hoje.




O T. hoje faz anos. Ias gostar de nos ver. Vamos ter uma festa, balões, bolos, cores, miúdos da idade dele a correr. Ele não sabe. Pensa que é só na escola.


Vamos ter fotografias parvas. Como nós no nosso tempo. Quando deitados no escritório, no quarto.






No tempo em que tu tinhas uma asa


(não um braço)


uma asa


tu tinhas uma asa e eu era qualquer coisa que essa asa arrastava para si e chamava de seu.




Ontem.


Falávamos da tua nova pequena família e eu invejei-te. Veio-me da ponta dos dedos. Perdoa-me. Vou cortá-los. Vou cortá-los ao dez porque ando perdida e os meus dedos não sabem reconhecer pessoas, nem mapas, nem casas, nem estradas, nem florestas assassinas ou territórios sagrados.




Os meus dedos nunca perceberam nada.


Inês Leitão

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O POETA EVADIDO

Caiu mais um degrau
cerrou-se a cortina
Cesariny morreu
isso que interessa?
portugal não deita luto por poetas
está de nojo por si
e não sofre outros mortos
o cadáver pesa-lhe no arrasto
já lhe basta a sua cremação
clamar por defuntos
adicionando cestas de mirto
coroas de ligaduras
gordos pêsames de trampolim
enumerar quem ocorreu à urna
do poeta evadido
é coisa de jornais
a portugal sobra o arrestado tempo
a ínfima discórdia
sôfrega quimera tentando corrigir
artríticos motetes
ancorar o sem número de falhas
o sem número de redes
armar lázaros em jogadores de golfe
enxofres visam nos cotos
gangrenas terminais
próteses ganham ferrugem
nas repartições
canis cerceiam rasgos
desossam vocações
gestores espezinham
tão pobres armistícios
azedando no copo
tinge-se a nata
vira-se a tina
esgarra-se a toga
suja-se a mão
evade-se o poeta
e portugal cá fica
lambendo perras feridas
encosta-se às fracturas
e roça nas paredes onde escarram ANGST
enquanto espera
na sopa do sidónio.


Fátima Maldonado

VIDA EXTENUADA, Edições &etc, Lisboa, 2008

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Louise Bourgeois

Clarice Lispector

"Mas muito mais contente ainda ao me ocorrer que me chamam de escritora hermética. Como é? Quando escrevo para crianças, sou compreendida, mas quando escrevo para adultos fico difícil? Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e os sentimentos adequados a uma criança? Não posso falar de igual para igual?"

domingo, 30 de outubro de 2011

Discurso do Método




Quando era criança já procurava as janelas

para poder fugir ao espreitar.

Desde então, quando entro em algum lugar,

presto atenção ao sítio onde deixo o casaco

e onde está a porta de saída.

Liberdade, para mim, quer dizer fuga.

Há muitas portas no mundo.

Até o sexo, em caso de emergência,

pode ser, apesar de muitas estarem a fechar

e, para fugir, brevemente só irão ficar

apenas as janelas da infância.

De par em par abertas para poder saltar.




Joan Margarit


«Discurso del Método», em Cálculo de estructuras, tradução do catalão de Joan Margarit, Madrid: Visor Libros, Colecção Visor de Poesia, 2ª edição, 2008, p. 109

sábado, 29 de outubro de 2011

SINTO


Sinto
que em minhas veias arde
sangue,
chama vermelha que vai cozendo
minhas paixões no coração.

Mulheres, por favor,
derramai água:
quando tudo se queima,
só as fagulhas voam
ao vento.



Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Pintura de Luís Melo

PRISIONEIRO DE MIM?


Por dentro do crânio
cresciam larvas. A agonia
escondia-se.
Cordas prendiam-me as pernas.


Era assim
a minha imagem
nas suas mentiras.


Enforcada, a dor
continua pendurada em mim.
Digo palavras sem nexo.
Fogem os versos dos papeis
e o coração incinerado.




João Borges

AS SOMBRAS DE UM CORPO SÓ, Lisboa, 2011

"Não posso adiar o amor para outro século"











[Não posso adiar o amor para outro século]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
não posso adiar
ainda que a noite pese século sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

não posso adiar o coração

[António Ramos Rosa, Faro, 1924]

In Maria Alzira Seixo, Os poemas da minha vida, Público, Lisboa, 2005




O nº4 da revista Cultura ENTRE Culturas é dedicado a António Ramos Rosa e será lançado amanhã, dia 25 de Outubro, às 18.30, numa homenagem em que o poeta estará presente: Residência Faria Mantero, Praça de Dio, n.º 3, em Lisboa. Este número tem o tema "Poesia e Filosofia", dedicando ao poeta um caderno de 60 páginas com muitos textos e desenhos inéditos do Poeta, além de estudos e testemunhos sobre a sua obra, da autoria de vários especialistas e amigos. O lançamento constitui uma Homenagem ao Poeta, no seu 87º Aniversário. A apresentação será feita por Maria Teresa Dias Furtado (Universidade de Lisboa) e António Cândido Franco (Universidade de Évora).

40 ANOS!!!! E tanta coisa por fazer...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Desenhos de João Borges

SERÁ NO PRÓXIMO SÉCULO?

O nosso amor arrasou cidades. Éramos
muito jovens e pensávamos assim.
O mundo pertencia-nos. Ninguém
percebia mas nós viviamos contra
tudo - era um acto político.

Assim alguns seres no mundo
construíram vidas, amaram
e sofreram isolados, por vezes
espoliados, queimados na fogueira.

Mas o nosso amor resistirá
às fronteiras, aos muros de fogo
e à injustiça. Gostaríamos de viver
o tempo da verdadeira transformação,
da felicidade universal.


Isabel de Sá

REPETIR O POEMA, Edições Quasi, 2005

Desenho de João Borges

Só o lume dos teus beijos rompe
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado.

Conhecemos o ritmo e a sede,
a convulsão do desamparo.
No sentido do corpo, no acerto
desce a força pelos braços
na violenta festa do prazer.

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.


Isabel de Sá

REPETIR O POEMA, Edições Quasi, 2005

domingo, 23 de outubro de 2011

A PASSAGEM de ALICE pelo Séc. XXI...

«The past is a foreign country; they do things differently there.» Leslie Poles Hartley

ILUSTRAÇÕES para ALICE de JOHN TENNIEL


Falar de ALICE é falar do famoso ilustrador JOHN TENNIEL...

Falar de ALICE é falar de LEWIS CARROL...

O FILME RECENTE

ALICE É ÚNICA.

ALICE É ÚNICA. (Helena Vasconcelos - A Infância É Um Território Desconhecido)

(...) Alice é única. Não existe nenhuma personagem da História da Literatura que lhe chegue aos calcanhares. É a primeira heroína criança. É engraçada. É curiosa. É valente. É emotiva. Tem um apurado sentido da justiça. É esperta. É sentimental, É lógica. É rapariga. O seu contraponto masculino - e contemporâneo - é, sem dúvida Peter Pan. Mas as diferenças entre eles ultrapassam a mera questão de género. Alice, mesmo no País das Maravilhas é uma pessoa bastante real; Peter Pan, num universo quase «real» é apenas uma espécie de elfo; Alice é corajosa porque pensa; Peter Pan é corajoso porque não pensa. (...)

Helena Vasconcelos - Um livro fundamental!

A Infância É Um Território Desconhecido - HELENA VASCONCELOS






















(...) Convenhamos que o Deus das Moscas é uma narrativa muito desagradável; e muito bem escrita, o que potencia grandemente o seu impacto. Golding insinua - ou antes, afirma - que a perda de inocência não está directamente relacionada com a idade, mas tem, isso sim, uma correlação estreita com o momento em que se abarca a verdadeira dimensão da natureza humana.
O facto de Golding ter escolhido rapazes, alguns bem pequenos, para protagonizarem uma história tão terrível choca mais porque, à partida, pensamos sempre que as crianças são naturalmente «boas». Para além disso, a feroz alegoria de Golding pode aproximar-se da de George Orwell em Animal Farm (O Triunfo dos Porcos), que data de 1945 e é uma crítica feroz aos totalitarismos, sejam de esquerda ou de direita. No caso de Golding poder-se-á dizer que o Deus das Moscas, numa perspectiva política, é uma crítica à anarquia, mas este livro tem um carácter mais filosófico que o de Orwell, que é possível que Golding tenha lido. Poderia também considerar-se que Goldingquis dizer que as pessoas que se entregam à barbarie não estão desenvolvidas psicologicamente, não têm a maturidade dos adultos, supostamente responsáveis, como o incrédulo oficial da Marinha, no final do livro. Pela mesma lógica, a guerra, a violência, o confronto não civilizado seriam apanágio da imaturidade humana. (...)

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