sexta-feira, 31 de agosto de 2012
MARGUERITE YOURCENAR - De Olhos Abertos - Conversas com Matthieu Galey
(...) Estou tentada a acreditar que, com o passar da vida, o estilo se aperfeiçoa, se desprende de escórias imitativas, se simplifica e encontra a sua própria inclinação, mas que o fundo permanece, só que enriquecido, ou antes, confirmado pela vida.
A seguir vem a publicação dos meus primeiros ensaios, no estilo de narrativa francesa, muito reservado, moderado, delimitado. É também o período de Alexis. De certa forma, houve uma paragem no meu desenvolvimento pessoal, pelos meus vinte e cinco anos. Queria alinhar-me com a literatura contemporânea, sobretudo a da «narrativa» à Gide ou à Schlumberger, fechar-me numa forma de arte mais literária, mais contida, o que até era uma excelente disciplina.
Seguiu-se uma reacção contra Alexis. Estamos na época de Fogos e do primeiro Denário do Sonho, num estilo mais ornamentado que, efectivamente, pode ter sido influenciado por Barrès, mas também por muitos outros, por Suarés, por exemplo, ou por todos os poetas e pintores barrocos italianos...Depois disso, acho que voltei ao meu caminho, a partir de Adriano.
- O seu pai tinha paixões literárias que poderá ter-lhe legado?
-Ele gostava muito de ler e tinha alguns autores favoritos, mas paixões literárias acho que não. Gostava muito de Shakespeare, por exemplo, e de Ibsen. Lemos Ibsen juntos, quando eu tinha dezasseis ou dezassete anos. Tenho ainda várias peças anotadas por ele: queria ensinar-me a ler em voz alta, e imaginou uma espécie de anotação musical, para marcar os sítios onde deveríamos parar, aqueles em que a voz sobe ou desce. Ibsen ensinou-me muito sobre a independência total do homem, como em Um inimigo do povo, cujo heroi é o único a aperceber-se de que a cidade está poluída. Esses extraordinários escritores do século XIX eram muitas vezes refractários, subversivos, em oposição à sua época e a tudo o que os rodeava, contra toda a mediocridade humana.. Ibsen, Nietzche e Tolstói pertenciam a esse grupo, e foi com o meu pai, de resto, que os li aos três.
Por outro lado, ele não era grande leitor de Balzac. Eu diria mesmo, o que pode parecer bastante arrogante da minha parte, que, em certa medida, fui eu que o levei a ler alguma da literatura francesa do séc.XIX. Fui eu que lhe disse, por exemplo: «Vamos ler A Cartuxa de Parma.»
Líamos muito juntos, em voz alta. Passávamos o livro um ao outro. Eu lia, e quando já estava cansada ele pegava e retomava a leitura. Lia muitíssimo bem, muito melhor do que eu, exteriorizava muito mais.
-E quando é que descobriu Proust?
-Pouco depois da sua morte, devia ter vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Mas nesse caso o meu pai já não me seguiria. Tinha aquela recusa da velhice, aquela repugnância em ler obras mais recentes. Para ele, Proust representava o incompreensível. Preferia os russos, que amávamos intensamente. E Selma Lagerlöf, sobre quem eu viria posteriormente a escrever um ensaio, e que continuo a considerar uma escritora de génio.
- E Dostoievski?
-Li-o mais tarde, e admirei-o com uma espécie de estupor, como explicar?, de cortar a respiração por momentos, tão grande aquilo me pareceu. Mas nunca me senti muito influenciada. O seu cristianismo estava - ou parecia-me estar - nos antípodas do que me interessava, ainda que eu tivesse uma admiração emocionada pelo stárets Zóssima. No entanto, nunca reli muito Dostoievski, e também é por esse aspecto que julgamos as influências.
Havia também autores franceses, Saint-Simon, por exemplo. O meu pai gostava sobretudo dos escritores do século XVII. Li quase tudo de Saint-Simon com ele. Tinha a sensação de ali encontrar as massas humanas, de nele ver o grande observador do que se passa e do que passa...Quanto ao seu estilo, é tão grande que, se não o analisarmos enquanto profissionais, nem nos apercebemos de que existe. A sua linguagem é admirável, mas questiono-me sobre se não será apenas agora, ou sobretudo agora, que me inpressiona.
-E os poetas?
-Os poetas? Os do séculoXVII, naturalmente, os renascentistas, e Hugo. Sempre adorei Hugo, apesar de todas as modas contrárias. Reconheço que tem momentos de uma retórica pesada, mas tem outros deslumbrantes e imensos. Os outros poetas, Rimbaud, Apollinaire, chegaram-me mais tarde. Já disse, aliás, no prefácio de Alexis, que me parece frequente um jovem escritor estar preocupado com a sua época, a menos que faça parte integrante de um grupo «em voga» que tenta seguir ou antecipar as modas. Em geral, os jovens alimentam-se da obra deixada pelas gerações precedentes. Isto é surpreendente quando observamos de perto os românticos. Nem é nos seus predecessores imediatos que buscam referências, vão sempre um pouco mais longe.
-No seu caso, quem foram os seus predecessores?
-Talvez Yeats, Swinburne, D'Annunzio. D'Annunzio era muito lido naquela época. Sobretudo os poemas, muitas vezes belíssimos, que eu lia em italiano. Era capaz de distinguir entre os seus romances, que são muito datados, e aqueles poemas que continuam a ser sempre bons, na condição, claro, de passar por cima da poética enfatizada ou da ornamentação barroca, tão irritantes nele como em Barrès.
Quem mais? Péguy? Nunca fui apreciadora de Péguy; não gostava do seu cristianismo agressivo,tal como detestava o de Claudel. Nem um nem outro existiam realmente para mim. Beaudelaire, sim, mas só bem tarde é que lhe tomei o gosto, como conhecedora, como alguém que julga, do ponto de vista do ofício, a perfeição extraordinária do verso baudelairiano. De certo modo, já era demasiado tarde para entusiasmos ingénuos.
No meu caso, entusiasmou-me sobretudo a poesia do século XVII e a poesia renascentista: Racine, La Fontaine (mas menos, pois só muito posteriormente é que senti a beleza rítmica do verso de La Fontaine), os poetas ingleses, sobretudo os metafísicos, que, obviamente, li no original. E depois, entre os italianos, os da Idade Média, os poetas da «Gaia Ciência» e toda aquela escola. Poetas que não estão muito longe de ser metafísicos.
Mas, se quer falar de infuências, seria provavelmente necessário ir buscá-las aos filósofos. Por exemplo, acho que não se pode dar grande destaque à infuência de Niestzche, pelo menos não ao Zaratustra; mas ao Niestzche de A Gaia Ciência sim, de Humano, Demasiado Humano, aquele que tem uma forma particular de considerar as coisas, ao mesmo tempo de muito perto e de muito longe, lúcido, aguçado e simultaneamente quase ligeiro.
-Mas um homem como Schopenhauer, por exemplo, foi importante para si?
-Sim, só que rapidamente se confundiu com a influência do budismo, porque no fundo Schopenhauer representa uma primeira tentativa de introduzir o pensamento budista num país europeu. Mas penso sempre com emoção em Thomas Buddenbrook, de Mann, quando, depois de uma vida convencional e desalentada, descobre em Schopenhauer um sentido para o desespero e talvez a maior forma de paz.
(...)
Relógio D'Água Editores, Junho de 2011, tradução de Renata Correia Botelho.
-Li-o mais tarde, e admirei-o com uma espécie de estupor, como explicar?, de cortar a respiração por momentos, tão grande aquilo me pareceu. Mas nunca me senti muito influenciada. O seu cristianismo estava - ou parecia-me estar - nos antípodas do que me interessava, ainda que eu tivesse uma admiração emocionada pelo stárets Zóssima. No entanto, nunca reli muito Dostoievski, e também é por esse aspecto que julgamos as influências.
Havia também autores franceses, Saint-Simon, por exemplo. O meu pai gostava sobretudo dos escritores do século XVII. Li quase tudo de Saint-Simon com ele. Tinha a sensação de ali encontrar as massas humanas, de nele ver o grande observador do que se passa e do que passa...Quanto ao seu estilo, é tão grande que, se não o analisarmos enquanto profissionais, nem nos apercebemos de que existe. A sua linguagem é admirável, mas questiono-me sobre se não será apenas agora, ou sobretudo agora, que me inpressiona.
-E os poetas?
-Os poetas? Os do séculoXVII, naturalmente, os renascentistas, e Hugo. Sempre adorei Hugo, apesar de todas as modas contrárias. Reconheço que tem momentos de uma retórica pesada, mas tem outros deslumbrantes e imensos. Os outros poetas, Rimbaud, Apollinaire, chegaram-me mais tarde. Já disse, aliás, no prefácio de Alexis, que me parece frequente um jovem escritor estar preocupado com a sua época, a menos que faça parte integrante de um grupo «em voga» que tenta seguir ou antecipar as modas. Em geral, os jovens alimentam-se da obra deixada pelas gerações precedentes. Isto é surpreendente quando observamos de perto os românticos. Nem é nos seus predecessores imediatos que buscam referências, vão sempre um pouco mais longe.
-No seu caso, quem foram os seus predecessores?
-Talvez Yeats, Swinburne, D'Annunzio. D'Annunzio era muito lido naquela época. Sobretudo os poemas, muitas vezes belíssimos, que eu lia em italiano. Era capaz de distinguir entre os seus romances, que são muito datados, e aqueles poemas que continuam a ser sempre bons, na condição, claro, de passar por cima da poética enfatizada ou da ornamentação barroca, tão irritantes nele como em Barrès.
Quem mais? Péguy? Nunca fui apreciadora de Péguy; não gostava do seu cristianismo agressivo,tal como detestava o de Claudel. Nem um nem outro existiam realmente para mim. Beaudelaire, sim, mas só bem tarde é que lhe tomei o gosto, como conhecedora, como alguém que julga, do ponto de vista do ofício, a perfeição extraordinária do verso baudelairiano. De certo modo, já era demasiado tarde para entusiasmos ingénuos.
No meu caso, entusiasmou-me sobretudo a poesia do século XVII e a poesia renascentista: Racine, La Fontaine (mas menos, pois só muito posteriormente é que senti a beleza rítmica do verso de La Fontaine), os poetas ingleses, sobretudo os metafísicos, que, obviamente, li no original. E depois, entre os italianos, os da Idade Média, os poetas da «Gaia Ciência» e toda aquela escola. Poetas que não estão muito longe de ser metafísicos.
Mas, se quer falar de infuências, seria provavelmente necessário ir buscá-las aos filósofos. Por exemplo, acho que não se pode dar grande destaque à infuência de Niestzche, pelo menos não ao Zaratustra; mas ao Niestzche de A Gaia Ciência sim, de Humano, Demasiado Humano, aquele que tem uma forma particular de considerar as coisas, ao mesmo tempo de muito perto e de muito longe, lúcido, aguçado e simultaneamente quase ligeiro.
-Mas um homem como Schopenhauer, por exemplo, foi importante para si?
-Sim, só que rapidamente se confundiu com a influência do budismo, porque no fundo Schopenhauer representa uma primeira tentativa de introduzir o pensamento budista num país europeu. Mas penso sempre com emoção em Thomas Buddenbrook, de Mann, quando, depois de uma vida convencional e desalentada, descobre em Schopenhauer um sentido para o desespero e talvez a maior forma de paz.
(...)
Relógio D'Água Editores, Junho de 2011, tradução de Renata Correia Botelho.
quinta-feira, 16 de agosto de 2012
Poema de João Borges
Caminhávamos abraçados
e a verdade ía queimando
a máscara comum.
Depois da colisão dos corpos,
da celebração,
o escuro desfazia-se.
Riam os teus olhos
e deixei-me adormecer.
quarta-feira, 25 de julho de 2012
Poema de José Miguel Silva
A CAMINHO DE IDAHO - GUS VAN SANT (1991)
A liberdade conjuga-se no corpo, e esses anos
de prostituto foram os mais felizes da minha vida.
Tinha na carne o livre-trânsito do sexo disponível,
o instrumento da autonomia. Viver, para mim,
era sobretudo ver - ou seja, viajar, sem bagagem
nem destino, por lugares insubmissos, de um centro
para outro centro. Era uma vida lenta, idílica,
sem compromissos. Ao mínimo sinal de enfado,
não pensava duas vezes: o primeiro comboio
ensinava-me o caminho. Ficava sempre a ganhar.
Podia passar meses numa cidade (Toulouse, Barcelona,
Roterdão) ou apenas meia noite - era comigo.
Confiava plenamente no inesperado.
E se tivesse tido a sorte de morrer em toda a firmeza
do corpo (antes dos malditos trinta anos),
não precisaria de suportar agora a indignidade
de um horário servil, o paternalismo do gerente,
o boleado tom de voz com que me perguntais
se o arroz-doce é realmente caseiro.
Telhados de Vidro, nº4, Maio, 2005
Poema de Manuel de Freitas
para o A.M.Pires Cabral
É à sombra, no improviso
de esplanadas contíguas
a tabernas, que preferem acabar
a vida. Já não bebem, pouco
dormem - o futuro é uma beata
que lhes caiu das mãos.
A minha vida acabou mais cedo,
mas não faço disso lamento.
Foi sempre inútil termos estado aqui
e nenhum chão, por muito que invoquemos
o cansaço, acolhe o desejo de não ser,
os meus indesejados versos.
Telhados de Vidro, nº4, 2005
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Poema de João Borges
A FIGURA E O SEU DUPLO*
enquanto alguns rostos
são devorados pelas trevas,
outros se mostram à luz.
por que fechas os olhos?
Espelho
por que mostras um acrobata
Porquê
para a sepultura?
Espelho
não esqueces, ficas à espera,
*título de uma pintura de Graça Martins
Lisboa, 20.4.10
quinta-feira, 19 de julho de 2012
Maníacos de Qualidade - Joana Amaral Dias
Às vezes é assim, a vida dá muitas voltas, fica-se ocupada com coisas várias e até a leitura de um livro é adiada. Foi o que aconteceu com o livro da Joana Amaral Dias. Terminei hoje a sua leitura, e o livro foi adquirido em 2010, com dedicatória da autora de 9 de Julho de 2010. Gostei imenso do livro e as páginas dedicadas ao Fernando Pessoa são muito cuidadas. Admiro imenso o Fernando Pessoa e, para mim é o único GÉNIO português! A sua OBRA, a sua VIDA foram um exemplo de genialidade absoluta!!!! Fiquei triste, muito triste, quando terminei as páginas dedicadas ao Fernando Pessoa. O Super-Camões que não encontrou a alma gémea. Que desde muito cedo, aos seis, anos inventou o Chevalier de Pas, o 1º heterónimo, criado na Rua de São Marçal, perto do Príncipe Real. Tinha nascido na casa perto do Largo de S.Carlos, onde viviam a avó paterna, duas empregadas e os pais, mas o pai morreu, vitima de tuberculose, tinha o Pessoa cinco anos e mudaram-se para a Rua de São Marçal. Teve uma infância atravessada por demasiadas perdas, mortes, lutos, ausências. A sua solidão era do tamanho do mundo. Morreu com 47 anos.
« A única compensação moral que devo à literatura é a glória futura de ter escrito as minhas obras presentes.»
(...) "Realmente Pessoa tinha uma ideia grandiosa de si mesmo e caracterizava-se por uma crença inabalável em si próprio. E se esses traços o defendiam da dor, também o colocavam a coberto do fracasso emocional. Quando o poeta afirma que não aprofunda as suas relações porque «tem mais que fazer», porque é à sua obra que deve dedicação e prioridade, está também a dizer que as falhas nas suas relações não se devem às suas dificuldades. Existem, mas não porque ele não consegue. Apenas porque ele não quer. Tal como se resguardou do sofrimento consequente ao suicídio de Sá-Carneiro, escudando-se no esoterismo, Pessoa defendeu-se toda a vida de amar, optando pela abstinência sexual e até emocional. O poeta preferia esse regime a experimentar penar e errar, como seria fatal caso ensaiasse esses laços."
« Em torno de mim está-se tudo afastando e desmonorando. (...) Que serei eu daqui a dez anos - de aqui a cinco anos, mesmo? Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos...(...) Mas sei eu ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo cheire a podridão.»
(...) Pessoa não era um homem extrovertido, nem tão-pouco alguém para quem fosse prioritária a vida de sociedade. Porém, é um mito que fosse alguém extremamente isolado, fechado sobre si próprio e parco em contactos. Essa imagem foi, em parte, alimentada pelo próprio e, por outro lado, construida por Gaspar Simões. Afinal, é o poeta, ele mesmo, que escreve palavras como:
« Estou cercado de amigos que não são amigos e de conhecidos que não me conhecem.»
Super- Camões morreu num pequeno hospital em Lisboa, no centro do Bairro Alto. (...) Dias antes de falecer, Pessoa ainda fora ao café Martinho da Arcada, onde conversara com Almada Negreiros. (...) Segundo Murteira França (1987:16), o último gesto de Pessoa antes de morrer foi pedir os óculos e escrever, em Inglês: «Não sei o que o amanhã trará.»
O enterro realizou-se no dia 2 de Dezembro e Pessoa foi sepultado no jazigo de Dionísia, a sua avó louca, no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Cinquenta anos depois, o seu corpo foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos (poderia ter ido para o Panteão...), o que não deixa de ser irónico, já que Pessoa nunca comungou da fé cristã. Sarcástico se pensarmos que São Jerónimo se flagelou pelos pecados do mundanismo. Pessoa não se açoitava por tais tentações porque impunha a si mesmo uma disciplina despótica que evitava qualquer pecadilho. Sardónico se considerarmos que Jerónimo é o padroeiro dos tradutores, actividade que o Super-Camões prosseguiu como mero ganha-pão.
Diz-se que, nesta mudança, não foi descoberto um esqueleto, como seria expectável, mas um corpo mumificado. Quase tão mítico como o de Afonso VI. Ou até de D.Sebastião. E Pessoa está sepultado, naturalmente, entre o túmulo de Vasco da Gama e o de...Camões. (...)
fragmento do livro Maníacos de Qualidade de Joana Amaral Dias - Portugueses célebres na consulta com uma psicóloga, editado pela A Esfera dos Livros, 2010, Lisboa.
sábado, 14 de julho de 2012
Konstadinos Kavafis
FUI
Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.
E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
Relógio D'Água Editores, 1994
Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.
E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
Relógio D'Água Editores, 1994
A propósito do livro de CULTO - Anti- Édipo/Capitalismo e Esquizofrenia de Gilles Deleuze & Felix Guattari
O Anti- Édipo, escrito numa altura de forte contestação social (anos 80), depressa se tornou num livro de culto. Os seus autores, Gilles Deleuze e Félix Guattari, adquiriram o estatuto de estrelas intelectuais, ao desconstruir a Psicanálise, e ao introduzir uma Esquizoanálise do Capitalismo, mas face ao cinismo dos anos 80 e à insatisfação dos anos 90, as suas teorias eram muitas vezes acolhidas com sarcasmo. No entanto, em 2012, no centro de uma crise financeira sem precedentes, e num contexto onde a natureza anti-democrática dos fluxos monetários anónimos é cada vez mais criticada, esta obra está de novo na luz da actualidade!!!! Um livro muito interessante. Li-o nos anos 80 e chamo a atenção para uma leitura atenta e criativa. Às vezes basta um parafuso de uma engrenagem desacertar para comprometer todo o SISTEMA!!!!
quarta-feira, 11 de julho de 2012
Um belo Soneto de Shakespeare
XVIII
Devo igualar-te a dia de Verão?
És mais encantador, mais temperado:
Em Maio, o vento agita-lhe o botão,
E o bem do Estio foge apressurado.
Sei que o olhar do Céu chega a queimar,
E o seu aspecto de ouro se embacia;
O belo pode às vezes declinar,
Se acaso a Natureza se transvia:
Mas teu eterno Estio não se vai,
Nem perdes a beleza que deténs;
Da Morte o manto sobre ti não cai,
Se em verso perdurarem os teus bens:
Enquanto alguém respire e possa ver,
Enquanto isto existir, hás-de viver.
Tradução em verso de Maria do Céu Saraiva Jorge
Devo igualar-te a dia de Verão?
És mais encantador, mais temperado:
Em Maio, o vento agita-lhe o botão,
E o bem do Estio foge apressurado.
Sei que o olhar do Céu chega a queimar,
E o seu aspecto de ouro se embacia;
O belo pode às vezes declinar,
Se acaso a Natureza se transvia:
Mas teu eterno Estio não se vai,
Nem perdes a beleza que deténs;
Da Morte o manto sobre ti não cai,
Se em verso perdurarem os teus bens:
Enquanto alguém respire e possa ver,
Enquanto isto existir, hás-de viver.
Tradução em verso de Maria do Céu Saraiva Jorge
sábado, 7 de julho de 2012
sexta-feira, 6 de julho de 2012
Exposição de Luís Manuel Gaspar - Um Lugar nos Olhos - Biblioteca Nacional, Campo Grande, 83, Lisboa - 2 de Julho a 31 de Agosto
"Como nenhum outro ilustrador, o essencial da sua obra pode ser encontrado algures entre a Natureza e a palavra (nos livros de poesia, capas e miolo; dando rosto aos volumes de ficção; em livro infantil com animais; nas bandas desenhadas que ilustram poemas de Sophia, Pessoa, O’Neill entre tantos outros).
Uma parte deste campo visual radica no naturalismo mais despojado, aqui e ali retocado pelas cores vibrantes do acrílico. São lugares (recantos de cidade) e paisagens (de beira-mar), gatos em diversas poses com todos os pêlos (sim, contei-os…), moscas ou objectos. E retratos, de escritores ou de felídeos. A riqueza de pormenor vai do cenário de ópera íntima à dentição completa do peixe. A segunda parte acomoda-se na gaveta dos surrealismos, como se as gralhas dos textos se transfigurassem em híbridos do mundo natural. Tenho-os no aconchego da mão e não me canso de os mirar: aracnídeos em flor, ramos secos que se locomovem em patas de aranha, pássaros que se desfazem em estames e corolas, ausências de branco no coração de um bailado de folhas. Neste reino desenhado de Gaspar com pujante ciência, animal e vegetal e inanimado fazem-se criatura única que evolui perante os nossos olhos na superfície do papel. Uma composição por vezes abstracta que faz todo o sentido. O que parecia arbitrária conjugação de factores pulsa uma naturalidade óbvia, que parece dizer-nos, então não tinhas reparado que os gravetos de pinho são invertebrados de exoesqueleto quitinoso?"
João Paulo Cotrim
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Poema de Sylvia Plath
PALAVRAS
Machados,
Após cada pancada sua a madeira range,
E os ecos!
São ecos que viajam
Do centro para fora como cavalos.
A seiva
Brota como lágrimas, como a
Água a esforçar-se
Por recompor o seu espelho
Sobre a rocha
Que pinga e se transforma,
Uma caveira branca
Comida pelas ervas daninhas.
Anos mais tarde
Encontro-as no caminho -
Palavras secas e indomáveis,
Infatigável som de cascos no chão.
Enquanto
Do fundo do charco estrelas fixas
Governam uma vida.
Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D'Água Editores, 1996, Lisboa
Machados,
Após cada pancada sua a madeira range,
E os ecos!
São ecos que viajam
Do centro para fora como cavalos.
A seiva
Brota como lágrimas, como a
Água a esforçar-se
Por recompor o seu espelho
Sobre a rocha
Que pinga e se transforma,
Uma caveira branca
Comida pelas ervas daninhas.
Anos mais tarde
Encontro-as no caminho -
Palavras secas e indomáveis,
Infatigável som de cascos no chão.
Enquanto
Do fundo do charco estrelas fixas
Governam uma vida.
Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D'Água Editores, 1996, Lisboa
Poema de Isabel de Sá
DISFARCE
Frequentemente o rosto é máscara, disfarce. Mas de onde vem a luz que faz do muro espelho? Incessante, a vida procura clarificar aquilo que em nós é finito e nos arrasta em busca da perfeição. É sempre confuso penetrar na nova obra, enterrar nela o que somos sem calar a verdade. Desordem, crueldade ou artifício, tudo faz parte do naufrágio.As palavras desenrolam obscuramente o que existe.
Repetir o poema, (poesia reunida)Edições Quasi, 2005
Repetir o poema, (poesia reunida)Edições Quasi, 2005
quinta-feira, 14 de junho de 2012
Poema de Sylvia Plath
OLMO
Para a Ruth Fainligth
Conheço o fundo, diz ela. Cheguei lá com a minha raiz maior:
É disso que tu tens medo.
Mas eu não tenho medo: já lá estive.
É o mar o que ouves em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada que era a tua loucura?
O amor é uma sombra.
Como ficas prostrada e chorosa depois
Escuta: são os cascos dele: desapareceu como um cavalo.
Toda a noite a galopar, assim, impetuosamente,
Até que a tua cabeça fique uma pedra e a tua almofada um pequeno monte de turfa,
Fazendo eco, fazendo eco.
Ou deverei eu trazer-te um som de venenos?
Agora é a chuva, este silêncio.
E este é o seu fruto: da cor metálica do arsénico.
Tenho sofrido a atrocidade dos crepúsculos.
Queimados até à raiz
Os meus filamentos vermelhos ardem, ficam espetados,
mão de fios eléctricos.
Desfaço-me em bocados de caruma que voam em várias direcções.
Um vento tão violento
Não aguenta espectadores: Tenho de gritar.
Também da lua está ausente a piedade: Havia de arrastar-me
Cruel, na sua estirilidade.
O seu esplendor ofusca-me. Ou talvez a tenha agarrado.
Vou deixá-la ir. Vou deixá-la ir
Diminuida e esvaziada, como após uma operação radical.
Como os teus sonhos maus me possuem e alimentam.
Sou habitada por um grito.
Noite após noite bate asas
Procurando com as garras algo para amar.
Aterroriza-me esta coisa tenebrosa
Que dorme dentro de mim;
Todo o dia sinto o macio voltejar das suas penas, a sua malignidade.
As nuvens passam e dispersam-se.
Serão essas as faces do amor, esfumadas coisas que não se recuperam?
É por isto que perturbo o meu coração?
Sou incapaz de aprender mais.
O que é isto, este rosto
Tão assassino em seus tentáculos estranguladores?-
O seu ácido silvo de serpente.
Petrifica o desejo. Erros que isolam, essas falhas lentas
Que matam, e matam, e matam.
Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D´Agua Editores, 1996.
Para a Ruth Fainligth
Conheço o fundo, diz ela. Cheguei lá com a minha raiz maior:
É disso que tu tens medo.
Mas eu não tenho medo: já lá estive.
É o mar o que ouves em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada que era a tua loucura?
O amor é uma sombra.
Como ficas prostrada e chorosa depois
Escuta: são os cascos dele: desapareceu como um cavalo.
Toda a noite a galopar, assim, impetuosamente,
Até que a tua cabeça fique uma pedra e a tua almofada um pequeno monte de turfa,
Fazendo eco, fazendo eco.
Ou deverei eu trazer-te um som de venenos?
Agora é a chuva, este silêncio.
E este é o seu fruto: da cor metálica do arsénico.
Tenho sofrido a atrocidade dos crepúsculos.
Queimados até à raiz
Os meus filamentos vermelhos ardem, ficam espetados,
mão de fios eléctricos.
Desfaço-me em bocados de caruma que voam em várias direcções.
Um vento tão violento
Não aguenta espectadores: Tenho de gritar.
Também da lua está ausente a piedade: Havia de arrastar-me
Cruel, na sua estirilidade.
O seu esplendor ofusca-me. Ou talvez a tenha agarrado.
Vou deixá-la ir. Vou deixá-la ir
Diminuida e esvaziada, como após uma operação radical.
Como os teus sonhos maus me possuem e alimentam.
Sou habitada por um grito.
Noite após noite bate asas
Procurando com as garras algo para amar.
Aterroriza-me esta coisa tenebrosa
Que dorme dentro de mim;
Todo o dia sinto o macio voltejar das suas penas, a sua malignidade.
As nuvens passam e dispersam-se.
Serão essas as faces do amor, esfumadas coisas que não se recuperam?
É por isto que perturbo o meu coração?
Sou incapaz de aprender mais.
O que é isto, este rosto
Tão assassino em seus tentáculos estranguladores?-
O seu ácido silvo de serpente.
Petrifica o desejo. Erros que isolam, essas falhas lentas
Que matam, e matam, e matam.
Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D´Agua Editores, 1996.
domingo, 10 de junho de 2012
Poema de João Borges
Canção diante de uma porta fechada*
I
O começo do inverno trocou em chuva todas as coisas que ainda não disse. Tenho um projecto interminável para me convencer de que vale a pena este quarto vazio, este silêncio.
Diante de uma porta fechada, estou sentado e canto. Para a chuva, para o que está do outro lado.
Voltei para casa, seja isso onde for. Os fantasmas assombram os mesmos cantos do quarto, e a paisagem através da janela não se moveu ainda.
Este segredo
neste livro, mas sei que não posso perpetuar a conversa, porque me canso de ouvir só a minha voz.
Para continuar.
Para mim, só dessa maneira fazia sentido ter feridas, dizer que me magoara, porque antes nem havia sangue suficiente para assim escorrer em abundância.
Não sabia,não podia saber, que a verdadeira dor e as feridas irreversíveis são limpas, sem sangue a escorrer nem pele esfolada para desinfectar com~álcool e betadine.
Agora sei.
in Brilho no Escuro nº3, edições Anjo da Guarda, Porto, 2009
sábado, 9 de junho de 2012
sábado, 2 de junho de 2012
sábado, 19 de maio de 2012
segunda-feira, 7 de maio de 2012
domingo, 6 de maio de 2012
Poema de Christina Rossetti
Recorda-me quando eu já tiver partido,
Partido longe adentro da terra silente,
Quando não mais a mão me possas dar,
Nem eu, semi-virar-me para ir, e ao virar-me ficar.
Recorda-me quando não mais, dia a dia,
Me contares o nosso futuro que planeaste:
Recorda-me apenas. Compreendes,
Já será tarde para dar conselhos ou rezar.
Porém, se por um momento me esqueceres
E depois recordares, não lamentes:
Pois se o escuro e a corrupção deixarem
Um vestígio dos pensamentos que uma vez tive,
É de longe melhor que esqueças e sorrias
Que por recordar entristeças.
Os Pré-Rafaelitas, antologia poética, Assírio&Alvim, 2005
Partido longe adentro da terra silente,
Quando não mais a mão me possas dar,
Nem eu, semi-virar-me para ir, e ao virar-me ficar.
Recorda-me quando não mais, dia a dia,
Me contares o nosso futuro que planeaste:
Recorda-me apenas. Compreendes,
Já será tarde para dar conselhos ou rezar.
Porém, se por um momento me esqueceres
E depois recordares, não lamentes:
Pois se o escuro e a corrupção deixarem
Um vestígio dos pensamentos que uma vez tive,
É de longe melhor que esqueças e sorrias
Que por recordar entristeças.
Os Pré-Rafaelitas, antologia poética, Assírio&Alvim, 2005
quinta-feira, 3 de maio de 2012
Poema de Dante Gabriel Rossetti
cançãoV
UM POUCO DE TEMPO
Um pouco de tempo, um pouco de amor,
A hora pacienta ainda por ti e por mim
Que não retirámos o véu para ver
Se o nosso céu ainda se acende lá em cima.
Tu apenas, ao último suspiro do dia,
Sentiste a tua alma prolongar o som;
E eu ouvi o vento nocturno gritar
E julguei que era minha a fala dele.
Um pouco de tempo, um pouco de amor,
O Outono disseminador entesoura para nós
Cujo aposento não está ainda arruinado
Nem desfolhado o nosso bosque sem canções.
Apenas através dos ramos agitados
Ouvimos as marés que buscam o mar,
E fundo acordam nos nossos dois corações
Um lamento por ti e por mim.
Um pouco de tempo, um pouco de amor,
Pode ainda ser nosso que não dissemos
A palavra que nos atemoriza os olhos
O saber o que cada um está a pensar.
Ainda não no fim: emudeçam-nos os lábios
Em sorrisos por uma breve estação ainda:
Eu dir-te-ei, quando o fim chegar,
Como melhor poderemos olvidar.
Os Pré-Rafaelitas, antologia poética, Assírio&Alvim,2005
UM POUCO DE TEMPO
Um pouco de tempo, um pouco de amor,
A hora pacienta ainda por ti e por mim
Que não retirámos o véu para ver
Se o nosso céu ainda se acende lá em cima.
Tu apenas, ao último suspiro do dia,
Sentiste a tua alma prolongar o som;
E eu ouvi o vento nocturno gritar
E julguei que era minha a fala dele.
Um pouco de tempo, um pouco de amor,
O Outono disseminador entesoura para nós
Cujo aposento não está ainda arruinado
Nem desfolhado o nosso bosque sem canções.
Apenas através dos ramos agitados
Ouvimos as marés que buscam o mar,
E fundo acordam nos nossos dois corações
Um lamento por ti e por mim.
Um pouco de tempo, um pouco de amor,
Pode ainda ser nosso que não dissemos
A palavra que nos atemoriza os olhos
O saber o que cada um está a pensar.
Ainda não no fim: emudeçam-nos os lábios
Em sorrisos por uma breve estação ainda:
Eu dir-te-ei, quando o fim chegar,
Como melhor poderemos olvidar.
Os Pré-Rafaelitas, antologia poética, Assírio&Alvim,2005
segunda-feira, 23 de abril de 2012
sexta-feira, 20 de abril de 2012
quinta-feira, 19 de abril de 2012
Poema de Mário de Sá-Carneiro
O FANTASMA
O que farei na vida - o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?
(De que revolta ou que país fadado?)
Pobre lisonja a gaze que me encerra...
Imaginária e pertinaz, desferra
Que fôrça mágica o meu pasmo aguado?
A escada é suspeita e é perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa, os corrimões partidos...
Taparam com rodilhas o meu norte,
As formigas cobriram minha sorte,
Morreram-me meninos nos sentidos...
Paris - 21 Janeiro 1916.
O que farei na vida - o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?
(De que revolta ou que país fadado?)
Pobre lisonja a gaze que me encerra...
Imaginária e pertinaz, desferra
Que fôrça mágica o meu pasmo aguado?
A escada é suspeita e é perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa, os corrimões partidos...
Taparam com rodilhas o meu norte,
As formigas cobriram minha sorte,
Morreram-me meninos nos sentidos...
Paris - 21 Janeiro 1916.
domingo, 8 de abril de 2012
A PÁSCOA e o poema da Sophia de Mello Breyner Andresen- Boa Páscoa para todos os que visitam este blog.
A paz sem vencedor e sem vencidos
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
sábado, 7 de abril de 2012
Dois poemas de Amadeu Baptista
FRIDA KAHLO E OS DESENHOS DO MUNDO
Creio que a adolescência tocou o teu rosto
para fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo surpreendente
como os cabelos deslizam para a brancura
são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa
uma cidade para se perder no instante
de uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das coisas para extrair do passado
uma medida de ferro, um fio de oiro,
um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe
para os ombros como o frágil ramo
de uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre a transparência para identificar o anjo
que te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos silêncios para resistir ao assédio
das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a tempestade triunfou
sobre a tempestade e a memória entregou
o resgate de não haver resgate.
Deste lugar te avisto e avisto o mar,
esta passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite, os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz explodir em fragmentos translúcidos
onde se inscreve a mensagem,
uma última notícia do paraíso perdido
em que um traço de luz corresponde
ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e separa, a palavra onde o deslumbramento
é um labirinto que pela alucinação
percorremos no incontornável fulgor
de um momento perpétuo.
Creio que a adolescência tocou o teu rosto
para fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo surpreendente
como os cabelos deslizam para a brancura
são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa
uma cidade para se perder no instante
de uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das coisas para extrair do passado
uma medida de ferro, um fio de oiro,
um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe
para os ombros como o frágil ramo
de uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre a transparência para identificar o anjo
que te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos silêncios para resistir ao assédio
das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a tempestade triunfou
sobre a tempestade e a memória entregou
o resgate de não haver resgate.
Deste lugar te avisto e avisto o mar,
esta passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite, os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz explodir em fragmentos translúcidos
onde se inscreve a mensagem,
uma última notícia do paraíso perdido
em que um traço de luz corresponde
ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e separa, a palavra onde o deslumbramento
é um labirinto que pela alucinação
percorremos no incontornável fulgor
de um momento perpétuo.
A NOITE DE PAVESE
Raras vezes me franquearam a porta
e deixaram entrar. A febre
sitia-me a alma e quem me vê
assusta-se do aspecto do meu rosto,
esta barba por fazer onde um rouxinol
se esconde. E mais ainda assusta
a minha altura, este lugar de vertigem
e palavras poderosas, a presença
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer, o estremecimento que corre
nos meus ombros. Embora nada peça, sabem que sou um pedinte. E quando entro nas casas os meus gestos afeiçoam-se a alguma coisa enigmática que contorna o pavor e o entrega
por não se saber que espécie de vida
ou de morte vem comigo. Obviamente, eu abençoo quem me deixa entrar, dou a entender
que alguma coisa brilha nas minhas mãos
e posso matar a fome com uma ou outra palavra próxima do amor, um dedo nos cabelos
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa em silêncio e em silêncio aceitei
que me aguardassem com as inefáveis sombras que vejo nos outros e tento decifrar para meu contentamento. Mandaram-me sentar
e deram-me de beber. Esse álcool
reconfortou-me a alma. E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo e nítido, observando a mulher nesse sem fim das coisas, onde todos os mistérios avançam
para uma explicação que a qualquer momento pode irromper do espírito como uma explosão.
Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas
que me ofereces, o teu rosto é-me familiar
se recuar à infância e subitamente perceber
que também pertenci ao exercício desta árvore
que nesta sala se levanta. Em frente,
na fotografia que o meu olhar alcança
porque me alcança o olhar que dela
se desprende, inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar, mais que um rumor ou um fio ténue com o nome de todas as coisas inesperadas que me aconteceram na vida, sempre que me franquearam a porta e deixaram entrar. Agora, com a memória de ter estado
em tua casa e ter recebido a graça de alguma atenção, eu, que sou pedinte embora nada peça,
entrego-te este sulco da desordem
sobre a página em branco e agradeço-te
com o conhecimento de um outro mundo
ainda mais inexplicável. Não tendo havido despedida, sabe que permaneço
e na encruzilhada das dores que me couberam viver não esquecerei o teu nome no dia
em que também tiver partido
e mais nenhuma luz houver além daquela
que ilumina o teu rosto na solidão da noite.
Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar. Que me seja a alba a tua tolerância.
terça-feira, 3 de abril de 2012
quarta-feira, 21 de março de 2012
A Primavera chegou!!!!!!
Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
Alberto Caeiro
DIA MUNDIAL DA POESIA - 21 de Março
ENFRENTAR A DOR
Ao reler os poemas à memória voltam
dias gloriosos, as canções com palavras
simples, a praia, o Inverno e as casas
-exististe em quase tudo e agora
é penosa a separação.
Dia a dia envelhecemos, estou morta
sob a luz da Primavera e não consigo
agarrar a vida. Há este abandono,
a sensação de ruína, a ferida implacável
no olhar.
Há o cheiro a relva cortada dos jardins,
a temperatura amena. Passam as horas
dentro da minha morte
executo movimentos contra a inércia,
... sei que tenho um ar sombrio
e deixei de existir nos teus braços.
Isabel de Sá
sob a luz da Primavera e não consigo
agarrar a vida. Há este abandono,
a sensação de ruína, a ferida implacável
no olhar.
Há o cheiro a relva cortada dos jardins,
a temperatura amena. Passam as horas
dentro da minha morte
executo movimentos contra a inércia,
... sei que tenho um ar sombrio
e deixei de existir nos teus braços.
Isabel de Sá
segunda-feira, 19 de março de 2012
Nascimento de um blogue !!!!! CULTURAL!!!!
O Improvável Caderno de Retratos nasceu no mês de Março!!!
Atenção ao seu crescimento!!!
http://improvavelcaderno.blogspot.com
Atenção ao seu crescimento!!!
http://improvavelcaderno.blogspot.com
domingo, 11 de março de 2012
segunda-feira, 5 de março de 2012
terça-feira, 28 de fevereiro de 2012
Juan Luis Panero
Um belo poema de Juan Luis Panero (e que nos fala das naturezas mortas de Zurbarán). Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.
FUMO AO ENTARDECER
Depois de ter cheirado o perfume agridoce da morte,
depois de tantos corpos e paixões e sonhos,
olho agora, sobre a mesa, um copo vazio,
uns livros, papeis em desordem, velhas fotografias,
a luz do entardecer, apagando-se na janela.
Como numa natureza de Zurbarán
- a natureza morta, a natureza eterna -,
deixo-me viver já sem perguntas,
enquanto o fumo do cigarro desenha
todos os meus rostos: o que fui, o que sou,
o que serei, no frágil e caprichoso tempo.
deixo-me viver já sem perguntas,
enquanto o fumo do cigarro desenha
todos os meus rostos: o que fui, o que sou,
o que serei, no frágil e caprichoso tempo.
Relógio D'Água, Lisboa, 2003
terça-feira, 21 de fevereiro de 2012
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