quarta-feira, 6 de março de 2013
Os Diários de Franz Kafka
Franz Kafka nasceu em 1883 em Praga, onde o pai era negociante. Doutor em Direito, entra para uma companhia de seguros em 1907, mas a sua natureza complexa vai adaptar-se dificilmente à vida profissional. Em 1910 começa a escrever os Diários que irá manter com regularidade até 1923. Morre de tuberculose num sanatório em 1924.
12 de Janeiro - Não escrevi muito sobre mim nestes dias, em parte por preguiça (durmo tanto e tão profundamente durante o dia, tenho mais peso enquanto durmo), em parte também por medo de trair o conhecimento que tenho de mim. Este medo justifica-se, porque uma pessoa só devia permitir fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade. Porque se isto não acontecer - e eu de qualquer maneira não sou capaz de o fazer - o que está escrito irá, de acordo com a sua própria finalidade e com o poder superior do que foi fixado, tomar o lugar daquilo que se sentia apenas vagamente, de tal modo que o sentimento verdadeiro desaparecerá enquanto o não valor do que foi anotado será reconhecido tarde de mais.
23 de Setembro - Esta história O Processo, escrevi-a eu de um jacto durante a noite de 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã. Quase não conseguia tirar as pernas de debaixo da secretária, tão rígidas elas estavam de estar tanto tempo sentado. A terrível tensão e alegria, a maneira como a história se desenvolveu perante mim, como se eu estivesse a andar sobre as águas. Várias vezes durante a noite senti o meu peso às costas. Como tudo pode ser dito, como há para tudo, para as mais estranhas fantasias, um grande fogo à espera em que elas perecem e renascem outra vez.
Como ficou azul do lado de fora da janela. Rolou por ali uma carruagem. Dois homens atravessaram a ponte. Às duas horas olhei para o relógio pela última vez. Quando a criada atravessou a antecâmara pela primeira vez eu escrevi a última frase. Fechar a luz e a luz do dia. As dores leves em redor do coração. O cansaço que desapareceu a meio da noite. A trémula entrada no quarto das minhas irmãs. A leitura em voz alta. Antes disso, espreguiçar em frente da criada e dizer: «Estive a escrever até agora.» O aspecto da cama intacta, como se tivesse acabado de ser posta ali. A convicção confirmada de que com o escrever este romance me encontro nas planuras vergonhosas da escrita. Só desta maneira é que se pode escrever, só com uma coerência destas, com esta abertura total do corpo e da alma.
FRANZ KAFKA/DIÁRIOS, DIFEL, Difusão Editorial Lda, Lisboa.
eternidade
Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se
o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não demais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,
diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.
Maria do Rosário Pedreira
a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico Lda, Lisboa, 2007.
Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se
o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não demais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,
diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.
Maria do Rosário Pedreira
a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico Lda, Lisboa, 2007.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
Algumas páginas do DIÁRIO de Virginia Woolf do ano de 1926- Primeiro Volume - 1915-1926
Quarta, 15 de Setembro
Usarei por vezes a forma de apontamento; por exemplo, assim:
Um estado de espírito
Usarei por vezes a forma de apontamento; por exemplo, assim:
Um estado de espírito
Acordei talvez às três. Ai, está a começar, está a chegar...o horror...fisicamente, como uma onda dolorosa crescendo junto do coração...que me ergue. Estou infeliz, infeliz! Que me afunda...Meu Deus, quem me dera estar morta. Pausa. Mas porque estou eu a sentir isto? Deixa-me olhar para a onda que sobe. Olho. Vanessa. Filhos. Fracasso. Sim; detecto-o. Fracasso, fracasso. (A onda sobe.) Ai, eles fizeram troça do meu gosto por causa da tinta verde! A onda rebenta, violenta. Quem me dera estar morta! Tenho só mais alguns anos de vida, espero eu. Já não consigo enfrentar mais este horror...( é a onda estendendo-se sobre mim). Isto continua: várias vezes, com várias espécies de horror. Depois, na altura da crise, em vez de a dor continuar intensa, torna-se bastante vaga. Dormito. Acordo num sobressalto. A onda novamente! A dor irracional: a sensação de fracasso; como, por exemplo, o meu gosto por causa da tinta verde, ou comprar um vestido novo, ou convidar o Dadie a vir cá passar o fim- de- semana.
Por fim digo, olhando tão desapaixonadamente quanto me é possível: vá lá, domina-te. Já chega. Raciocino. Faço um recenseamento dos felizes e dos infelizes. Enteso-me e empurro. atiro, quebro. Começo a andar cegamente em frente. Sinto obstáculos, afundo-me. Digo que não importa. Nada importa. Fico rígida e direita e volto a adormecer, e quase acordo e sinto a onda a começar e olho a luz que fica branca e pergunto-me como será que, desta vez, o pequeno -almoço e a luz do dia a irão dominar; e depois ouço o L. no corredor e finjo, tanto por mim como por ele, uma grande animação; e em geral já estou animada quando o pequeno-almoço termina. Passará toda a gente por este estado? Porque terei eu tão pouco controlo? Não é digno, nem amorável. É a causa de muito desperdício e dor na minha vida.
(...)
Terça , 23 de Novembro
(...) A vida, como eu digo desde os dez anos, é imensamente interessante - se é que não é mais rápida e mais intensa aos quarenta e quatro do que aos vinte e quatro - , mais desamparada, suponho, à medida que o rio se precipita em direcção ao Niágara - a minha nova visão da morte; activa, precisa, como tudo o resto, e que me alvoroça; e de grande importância...enquanto experiência.
" A única experiência que nunca irei descrever", disse eu ontem à Vita. Ela estava sentada no chão com o seu casaco de veludo e saia de seda vermelha às riscas, eu a dar nós nas suas pérolas até ficarem cachos de grandes ovos luzidios. Tinha vindo de Londres para me ver... assim vamos andando... uma ligação fogosa, respeitável, acho eu, inocente (espiritualmente) e com a qual só tenho a lucrar, acho eu; uma grande chatice para o Leonard, mas que não chega ao ponto de o afligir. A verdade é que há lugar para muitas relações. Depois ela volta amanhã para a Pérsia, com o Leigt Asthon*- esse rafeiro escorraçado, de focinho encardido e voz baixa, que está sempre a escapar-se de rabo entre as pernas mas que dá, ao que se diz, ceias de ostras.
Estou a refazer seis páginas do Lighthouse por dia. Este não é, acho eu, tão rápido como Mrs. D., mas também acho que grande parte está muito em esboço e tenho de o improvisar enquanto escrevo à máquina. Acho que é muito mais fácil do que escrever à mão. A minha opinião agora é que este é, sem sombra de dúvida, o melhor dos meus livros, mais completo do que o J.R. e menos espasmódico, ocupado com coisas mais interessantes do que Mrs D., e sem estar complicado com todo aquele desesperado acompanhamento de loucura. É mais livre e mais subtil, acho eu. Contudo, não sei ainda que outro livro se irá seguir a este: o que pode querer dizer que o meu método ficou perfeito, e agora vai ficar como está, e desempenhar a função que eu lhe quiser atribuir. Dantes, um desenvolvimento do método dava origem a novos assuntos, porque eu via a oportunidade de os dizer. Contudo, sou de vez em quando assombrada pela biografia meio mística e muito profunda de uma mulher, que irá ser toda contada numa única ocasião; e o tempo será completamente obliterado; o futuro há-de acabar por brotar do passado. Um incidente - digamos, uma flor que cai - o pode conter. A minha teoria é que o facto real praticamente não existe... nem o tempo. Mas não quero forçar isto. Tenho de imaginar o meu livro para a colecção**.
* Leigh Aston (n. 1897), o futuro director do Victoria and Albert Museum.
** A "Hogarth Lectures on Literature".
Virginia Woolf, Diário, Primeiro Volume 1915-1925, tradução de Maria José Jorge, Bertrand Editora, Lisboa, 1985.
segunda-feira, 14 de janeiro de 2013
Noite do inferno - Jean Arthur Rimbaud
Engoli uma notável poção de veneno.
-Três vezes seja bendita esta riquíssima ideia!- As entranhas ardem-me. A violência da peçonha galvaniza-me os membros, desfigura-me, atira-me por terra. Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a pena capital. Vede como as chamas cobrem tudo! Ardo bastante bem. Aplica-te, demónio.
Estava eu a sonhar com uma conversão à ventura e ao bem, a salvação. Poderei descrever tal visão? o ar do inferno não suporta hinos! Eram milhões de criaturas amáveis, um suave conluio espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, que sei eu?
As nobres ambições!
E é ainda a vida! Se a danação é eterna! Um homem que quer mutilar-se está danado e bem danado, não é assim? Imaginar o inferno é ser inferno. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo do meu baptismo. Ó família minha, fizestes o meu infortúnio e fizestes o vosso. Coitadinho do inocente! - O inferno não pode engolir os pagãos. - É ainda a vida! Mais tarde as delícias da danação irão muito mais fundo. Um crime, depressa, que a lei humana me precipite no vácuo.
Cala-te, cala-te...És a vergonha, o bébedo destas plagas! Satanás diz que o fogo é ignóbil e a tua cólera incrívelmente estúpida.-Parem lá com isso!..asneiras que me vindes bichanar, magias, perfumes falsos, músicas pueris.-E dizer que detenho a verdade, que vejo a justiça: possuo um discernimento são e firme, estou à beira da perfeição... Orgulho.- Esfarelam-me a pele da cabeça. Misericórdia! Senhor, tenho medo. Tenho sede, tanta sede! Ah! a infância, a erva, a chuva, o lago cobrindo as pedras, o luar quando soava meia-noite na torre... àquela hora era o diabo sineiro. Maria! Virgem Santa!..Horrorosa idiotia.
Lá longe, não há almas sem mácula, capazes de querer-me bem?...Vinde...Tenho um travesseiro na boca, não me ouvem, são fantasmas. De resto, ninguém pensa em ninguém. É melhor que não venham. Cheiro muito a chamusco, com certeza.
As alucinações são inumeráveis: é o que sempre tive, nenhuma fé na história, olvido dos princípios. Calar-me-ei: poetas e sonhadores morreriam de inveja. Sou mil vezes mais rico, sejamos avaros como o mar.
E esta! o relógio da vida parou de repente. Deixei de habitar o mundo. A teologia é a sério, o inferno está sem dúvida alguma em baixo e o céu em cima. - Êxtase, pesadelo, sono num ninho de chamas. (...)
Uma Época no Inferno
Versão portuguesa, prefácio e notas de Mário Cesariny de Vasconcelos, Portugália Editora, Lisboa, 1960.
domingo, 13 de janeiro de 2013
Jean- Arthur RIMBAUD - Uma Época no Inferno
Outrora, se estou bem lembrado, a minha vida era um festim em que todos os corações se abriam, em que todos os vinhos cintilavam.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos.- E vi que era amarga.- E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, éreis vós a guarda do meu tesoiro?
Consegui destruir em mim toda a esperança. Contra toda a alegria lancei o bote cego da besta feroz. Estranguladas!
E chamei os carrascos para morder, na agonia, a coronha dos fuzis. Conjurei as pragas para sofucar na areia, mergulhar em sangue. O infortúnio foi meu vero deus. Estiracei-me na lama. Sequei ao ar do crime. E preguei boas partidas à loucura.
E a primavera trouxe-me a terrível risada do idiota.
Ora, últimamente, prestes a lançar à cara do planeta o derradeiro estalo, lembrei-me de ir buscar a chave do festim (talvez me regressasse o antigo apetite?).
Caridade - é a chave. Uma inspiração destas prova que sonhei.
«Permanecerás hiena, etc...», ruge o demónio que me coroava de tão amáveis papoilas. «Morre feliz ao lado dos teus apetites, com todo o teu egoismo, com todos os melhores pecados capitais.»
Ah! tomei tanto disso... - Mas, meu caro Satã, não carregueis tanto o sobrolho! e enquanto esperais ainda uma que outra miséria, vinda atrasada por motivo de obras, vós, que apreciais no escritor a mais selecta ausência de faculdades descritivas ou pedagógicas, aqui tendes para já, especialmente arrancadas, estas odiosas folhas do meu canhenho diário de danado.
Versão portuguesa, prefácio e notas de Mário Cesariny de Vasconcelos, Portugália Editora, Lisboa, 1960.
Versão portuguesa, prefácio e notas de Mário Cesariny de Vasconcelos, Portugália Editora, Lisboa, 1960.
Poema de Isabel de Sá
ENFRENTAR A DOR
Ao reler os poemas à memória voltam
dias gloriosos, as canções com palavras
simples, a praia, o Inverno e as casas
- exististe em quase tudo e agora
é penosa a separação.
Dia a dia envelhecemos, estou morta
sob a luz da Primavera e não consigo
agarrar a minha vida. Há este abandono,
a sensação de ruína, a ferida implacável
no olhar.
Há o cheiro a relva cortada dos jardins,
a temperatura amena. Passam as horas
dentro da minha morte
executo movimentos contra a inércia,
sei que tenho um ar sombrio
e deixei de existir nos teus braços.
dias gloriosos, as canções com palavras
simples, a praia, o Inverno e as casas
- exististe em quase tudo e agora
é penosa a separação.
Dia a dia envelhecemos, estou morta
sob a luz da Primavera e não consigo
agarrar a minha vida. Há este abandono,
a sensação de ruína, a ferida implacável
no olhar.
Há o cheiro a relva cortada dos jardins,
a temperatura amena. Passam as horas
dentro da minha morte
executo movimentos contra a inércia,
sei que tenho um ar sombrio
e deixei de existir nos teus braços.
Isabel de Sá
Repetir o Poema, edições Quasi, 2005.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
domingo, 23 de dezembro de 2012
O FIM DA ESCADA
A estranha sensação de ter morrido
em Viena, numa tarde de outono de 1992,
numa casa cuja escada nunca subi.
De ser desde então um intruso, um farsante,
o actor sem futuro de uma comédia má.
De que o destino. implacável e rasteiro,
se vingou na longa noite de um hospital,
nas horas vazias que tento preencher.
Inventar, não heterónimos como fez Pessoa,
mas algo mais simples, o homem que escreve agora,
a medíocre perseverança dos seus feitos,
enquanto, insistente, me tenta a ideia de voltar,
de subir de vez os degraus, de bater a uma porta.
Mas quem sabe se ainda uma história pior,
um horror mais nítido me espera ali,
no fim da escada, diante da imaginada porta?
Juan Luís Panero
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa
A estranha sensação de ter morrido
em Viena, numa tarde de outono de 1992,
numa casa cuja escada nunca subi.
De ser desde então um intruso, um farsante,
o actor sem futuro de uma comédia má.
De que o destino. implacável e rasteiro,
se vingou na longa noite de um hospital,
nas horas vazias que tento preencher.
Inventar, não heterónimos como fez Pessoa,
mas algo mais simples, o homem que escreve agora,
a medíocre perseverança dos seus feitos,
enquanto, insistente, me tenta a ideia de voltar,
de subir de vez os degraus, de bater a uma porta.
Mas quem sabe se ainda uma história pior,
um horror mais nítido me espera ali,
no fim da escada, diante da imaginada porta?
Juan Luís Panero
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa
UM LONGÍNQUO ADEUS
Falamos, melancólicos, às três da madrugada,
tristes, não demasiado bêbados,
naquele ruidoso bar para noctívagos.
Curiosamente, insistimos no tema da morte
e recordou-me outras conversas, outro tempo,
embora neste momento, fosse uma morte próxima - muito pouco literária -,
sórdida e tangível como as manchas da toalha.
Na porta ao sair ficamos sérios,
sabíamos que de novo nos separávamos
e fingimos esquecê-lo com uma expressão banal.
Hoje, não sei porquê, voltam essas imagens
e gostaria de reviver aquela noite,
nem melhor nem pior, o que foi, simplesmente.
Reter por um momento, só por um momento,
a humidade dos teus olhos, o ricto do teu sorriso,
o que me chega como uma pintura desbotada,
ou como, ao despedir-nos, as gotas de chuva no vidro do carro,
a desenharem um caminho, a resvalarem, a apagarem-se.
Juan Luis Panero
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa
Falamos, melancólicos, às três da madrugada,
tristes, não demasiado bêbados,
naquele ruidoso bar para noctívagos.
Curiosamente, insistimos no tema da morte
e recordou-me outras conversas, outro tempo,
embora neste momento, fosse uma morte próxima - muito pouco literária -,
sórdida e tangível como as manchas da toalha.
Na porta ao sair ficamos sérios,
sabíamos que de novo nos separávamos
e fingimos esquecê-lo com uma expressão banal.
Hoje, não sei porquê, voltam essas imagens
e gostaria de reviver aquela noite,
nem melhor nem pior, o que foi, simplesmente.
Reter por um momento, só por um momento,
a humidade dos teus olhos, o ricto do teu sorriso,
o que me chega como uma pintura desbotada,
ou como, ao despedir-nos, as gotas de chuva no vidro do carro,
a desenharem um caminho, a resvalarem, a apagarem-se.
Juan Luis Panero
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa
sexta-feira, 21 de dezembro de 2012
Ruy Belo - Sempre!
A MÃO NO ARADO
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infãncia
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente
Ruy Belo
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
O RIO DA POSSE
Que todos somos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós.
A vida é, por isso, para os indefinidos, só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguém.
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age , se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no outro.
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio como escala pelos outros.
Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego"
sábado, 15 de dezembro de 2012
Poema de João Borges
A FIGURA E O SEU DUPLO*
Espelho
enquanto alguns rostos
são devorados pelas trevas,
outros se mostram à luz.
Não tens esperança,
não vês a aridez?
Por que fechas os olhos?
Espelho
desiste-se da vida assim
sem insistir? Sem se despenhar
pelas ravinas do esquecimento?
Por que ficas quieto,
por que tens medo?
Espelho
por que mostras um acrobata
paralisado pela sua natureza?
Porquê essa velhice tão final,
essa inclinação para a sepultura,
se nada te pede para morrer?
Espelho
não são os gritos um sinal de vida?
Espelho
não esqueces nada, ficas à espera,
com os dias perdidos,
há quanto tempo podias ter saído,
procurar um princípio e um verbo?
Espelho
esquece as palavras,
respira.
Lisboa, 20.4.10
*título de uma pintura de Graça Martins
*título de uma pintura de Graça Martins
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
domingo, 25 de novembro de 2012
Ruy Belo - fragmento de poema
Deixará o poeta anónimas algumas
das palavras que deus lhe pôs na boca
ou esses longos versos onde cabe a emoção?
Quantas vezes nesse obscuro instinto de escrever
o poema terá sido para ele
mais que o lugar onde ia ver-se livre
das palavras que o sobrecarregavam?
Estará ele disposto a abandonar o requintado gosto
que têm as leituras junto ao vão da janela?
Senhores dos planos de urbanização
responsáveis pela paisagem
cuidado com o poeta na cidade
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra poeta
Palavras de Gastão Cruz sobre RUY BELO
«um dos mais grandiosos e complexos monumentos da poesia portuguesa, um monumento barroco, em que alguns dos mais relevantes caminhos e experiências da poesia portuguesa confluem numa síntese poderosa, que congrega características aparentemente tão demarcadas e raramente conciliadas, como um discurso torrencial, por vezes próximo da prosa, e uma imaginação verbal inesgotável, por um lado, e, (...) por outro, como uma permanente dissecação da vida e da realidade quotidianas, em contraponto com uma antevisão, ora irónica, da morte própria e uma inquietação perante a morte alheia não menos constantes». Em seguida, o crítico reconhece estar diante do «autor dos poemas mais rigorosamente analíticos da realidade portuguesa, diria mesmo: é o mais fascinadamente realista dos poetas portugueses do século XX».
COLÓQUIO Letras, nº178, Dezembro 2011.
domingo, 4 de novembro de 2012
A propósito da publicação DIÁRIOS de Al Berto pela Assírio & Alvim, Outubro de 2012
«Caminhos nocturnos, incertas travessias»
Há um tempo angustiado e silencioso na escrita de Al Berto, um tempo inexplicável que precede o desenrolar dos sentidos, tumultuado por «inscrições premonitórias», e marcado por afinidades com o Chronos.
é o tempo em que «chegara o momento de começar a escrever», de distinguir os jogos literários das velhas cicatrizes pintadas», de «saltar as grades das palavras», levantar «os pés do chão» e vogar «pela ânsia do primeiros livro».
É um tempo de «escrita frenética», de esvaziamento desamparado na noite sem fundo. Um tempo feito de um conglomerado de matérias em estado larvar, um tempo em que os homens são animais, em que o próprio escritor meio anfíbio fala com duas barbatanas a saírem-lhe da boca:(...) lentamente movo a cabeça de peixe fluorescente que me habita, é esta a cabeça do escritor, duas barbatanas a saírem-lhe da boca e um vómito no olhar»1
Os indícios desse conglomerado de tempo emergem como «pulsações bruscas, fragmentadas» (M,p.64) usam nomes despertados pelo desejo, são corpos nascidos duma mancha de tinta» (M,p.41), são pedaços do mundo em movimento que «atingem a velocidade da emergência», imagens-pulsão que ressoam o «som alucinante do alarme e da cesariana» (M,p.64). (...)
É o tempo dos diários - uma imagem «primitiva», «embrionária», uma imagem -pulsão, que dá a ver um mundo originário, que advém nesse estado complicado do tempo que cabe desenrolar: « Um projecto assalta-me: Escrever incessantemente para poder deixar de escrever.» (D1982, 27 de Maio); «É noite, eu sei, (...) Não deveria preocupar-me com mais nada que não fosse escrever. Viver plenamente as alegrias e frustações da minha vida de "homem que escreve", com toda a humildade que essa vida tem para mim. Como um grito a noite acende o lado sonolento do coração.» (D1982, 28 de Maio).
(...) O que importa é fazer da vida uma obra de arte, como se literatura e existência estivessem ligadas, unidas no mesmo andamento -«Pessoalmente, não consigo separar a vida da literatura e vice-versa. Está tudo profundamente ligado. Para mim, é assim: tem de haver uma grande coerência na maneira como se escreve, como se vive, como se está no mundo, senão nem a vida nem a poesia fazem qualquer sentido. (...)»2 ou ainda: «Escrever, pelo menos no que me diz respeito, é um projecto que assenta em grande parte, na maneira como estou na vida, na maneira como me vou dimensionando com o que me rodeia.» (D1984, 5 de Fevereiro). (...)
Golgona Anghel
1 Cf. Al Berto, O Medo (M), Lisboa, Assírio&Alvim, 2005, p.28.
2Cf.Jornal de Letras, 23 de Abril 1997, Al Berto: O poeta como viajante» entrevistado por Maria João Martins com Ricardo Araújo Pereira.
(...) O que importa é fazer da vida uma obra de arte, como se literatura e existência estivessem ligadas, unidas no mesmo andamento -«Pessoalmente, não consigo separar a vida da literatura e vice-versa. Está tudo profundamente ligado. Para mim, é assim: tem de haver uma grande coerência na maneira como se escreve, como se vive, como se está no mundo, senão nem a vida nem a poesia fazem qualquer sentido. (...)»2 ou ainda: «Escrever, pelo menos no que me diz respeito, é um projecto que assenta em grande parte, na maneira como estou na vida, na maneira como me vou dimensionando com o que me rodeia.» (D1984, 5 de Fevereiro). (...)
Golgona Anghel
1 Cf. Al Berto, O Medo (M), Lisboa, Assírio&Alvim, 2005, p.28.
2Cf.Jornal de Letras, 23 de Abril 1997, Al Berto: O poeta como viajante» entrevistado por Maria João Martins com Ricardo Araújo Pereira.
sábado, 3 de novembro de 2012
Poema de Luiza Neto Jorge
Desinferno II
Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amor
O livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria
Luiza Neto Jorge, in “Poesia”
Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amor
O livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria
Luiza Neto Jorge, in “Poesia”
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
Dois poemas de Al Berto
ao Jacinto
se te nomeasse cintilarias
no beco duma cidade desfeita
e o chumbo dos labirintos derreter-se-ia
na veia branca da noite uma estátua
de areia talvez um barco sulcasse
a cabeleira aquática da fala e nenhuma porta se abriria sob teus passos
onde estamos? onde vivemos?
no desaguar tenebroso deste rio de penumbra
não beberemos ao futuro do homem
nem festejaremos o rugido triste da fera
moribunda
mas se te nomeasse
que desejo de sexo e da mente a medrosa alegria
em mim permaneceria?
O MEDO, Contexto, 1987, Lisboa.
ao Jorge e ao Eduardo Pitta
nenhum barco regressou antes ou depois do teu
a noite azedou o vinho adocicado dos deuses
sem que um suspiro estalasse
na penumbra azul dos dias que te evocam
é tarde estou doente no milénio que finda
as grandes rotas da paixão aborrecem-me
outro corpo magoa o esquecimento do meu
tenho a saudade duma mão sobre o rosto
a melancolia dos olhos dos afogados
mas nunca pedi à morte um pano limpo
para vendar ou polir o âmbar dos teus
resta-me este texto antigo deserto de asas
sobre a pele mordida pelas cinzas do voo
as horas como feridas de aguçados dentes
onde tremem alguns corpos que foram meus
O MEDO, Contexto, 1987, Lisboa.
nenhum barco regressou antes ou depois do teu
a noite azedou o vinho adocicado dos deuses
sem que um suspiro estalasse
na penumbra azul dos dias que te evocam
é tarde estou doente no milénio que finda
as grandes rotas da paixão aborrecem-me
outro corpo magoa o esquecimento do meu
tenho a saudade duma mão sobre o rosto
a melancolia dos olhos dos afogados
mas nunca pedi à morte um pano limpo
para vendar ou polir o âmbar dos teus
resta-me este texto antigo deserto de asas
sobre a pele mordida pelas cinzas do voo
as horas como feridas de aguçados dentes
onde tremem alguns corpos que foram meus
O MEDO, Contexto, 1987, Lisboa.
domingo, 28 de outubro de 2012
Poema de Sylvia Plath
TULIPAS
As túlipas são demasiado sensíveis; é Inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apreendendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo ao cirurgiões. (…)
Não queria flores, apenas queria
estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram: imagino-os
introduzindo-as na boca, como se fosse hóstias.
Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do
meu corpo.
Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim com a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.
Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.
Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
perigosos;
abrem-se como a boca de um animal africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de país tão longínquo como a saúde.
Sylvia Plath, Pela Água, Assírio & Alvim
Maurice Blanchot - No extremo dos extremos
A arte está a chegar ao fim? A poesia morre por se ter olhado de frente, tal como morre aquele que viu Deus? O crítico que considere o nosso tempo, ao compará-lo ao passado não pode deixar de exprimir uma dúvida e uma admiração desesperada pelos artistas que apesar de tudo continuam a produzir. Mas quando alguém prova, como Wladimir Weidlé num livro rico de cultura, de razão e de lamentos, que a arte moderna é impossível - esta prova é convincente, talvez demasiado lisonjeira -, não estará a realçar a exigência secreta da arte, que é sempre, em todos os artistas, a surpresa do que é ser possível, do que deve começar no extremo dos extremos, obra do fim do mundo, arte que só encontra o seu começo aí onde já não há arte e onde faltam as condições da arte? Não se pode ir demasiado longe na dúvida. É o modo, um dos modos de ir mais longe na maravilha do indubitável.
Weidlé escreve:« O erro de Mallarmé» (1), e Gabriel Marcel: « O erro mallarmeano...» Erro evidente. Mas não é evidente, também , que é a este erro que devemos Mallarmé? Todo o artista está ligado a um erro, com o qual mantém uma relação especial de intimidade. Há um erro de Homero, um erro de Shakespeare - que talvez seja, para um e para outro, o facto de não existirem. Toda a arte tem origem numa falha excepcional, toda a obra de arte é a execução dessa falha de origem, de que resultam para nós a ameaça de aproximação da plenitude e uma luz nova. Tratar-se-á de uma concepção própria ao nosso tempo, este tempo em que a arte deixou de ser uma afirmação comum, uma tranquila maravilha colectiva e é tanto mais importante quanto mais impossível? Talvez. Mas como eram as coisas outrora? E que vago outrora é esse, onde tudo nos parece tão fácil, tão seguro? Pelo menos, o que tem a ver connosco é o hoje e, quanto a hoje, podemos afirmar resolutamente: um artista não tem a possibilidade de se enganar demasiado, nem de se ligar demasiado ao seu erro, num contacto grave, solitário, perigoso, insubstituível, onde esbarra, com terror, com delícia, nesse excesso que, nele próprio, o conduz para fora de si e talvez para fora de tudo.
(1) - «O erro de Mallarmé foi querer isolar assim a essência poética e apresentá-la em estado puro, justapondo, sem as soldar profundamente, combinações verbais de insuperável beleza». (Les Abeilles d'Aristée).
O LIVRO POR VIR, Edição Relógio D'Água, Lisboa, 1984.
Weidlé escreve:« O erro de Mallarmé» (1), e Gabriel Marcel: « O erro mallarmeano...» Erro evidente. Mas não é evidente, também , que é a este erro que devemos Mallarmé? Todo o artista está ligado a um erro, com o qual mantém uma relação especial de intimidade. Há um erro de Homero, um erro de Shakespeare - que talvez seja, para um e para outro, o facto de não existirem. Toda a arte tem origem numa falha excepcional, toda a obra de arte é a execução dessa falha de origem, de que resultam para nós a ameaça de aproximação da plenitude e uma luz nova. Tratar-se-á de uma concepção própria ao nosso tempo, este tempo em que a arte deixou de ser uma afirmação comum, uma tranquila maravilha colectiva e é tanto mais importante quanto mais impossível? Talvez. Mas como eram as coisas outrora? E que vago outrora é esse, onde tudo nos parece tão fácil, tão seguro? Pelo menos, o que tem a ver connosco é o hoje e, quanto a hoje, podemos afirmar resolutamente: um artista não tem a possibilidade de se enganar demasiado, nem de se ligar demasiado ao seu erro, num contacto grave, solitário, perigoso, insubstituível, onde esbarra, com terror, com delícia, nesse excesso que, nele próprio, o conduz para fora de si e talvez para fora de tudo.
(1) - «O erro de Mallarmé foi querer isolar assim a essência poética e apresentá-la em estado puro, justapondo, sem as soldar profundamente, combinações verbais de insuperável beleza». (Les Abeilles d'Aristée).
O LIVRO POR VIR, Edição Relógio D'Água, Lisboa, 1984.
sexta-feira, 19 de outubro de 2012
Poema de Manuel António Pina
It's All Right, Ma...
Ao Helder
Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.
Não tenho paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanta existência).
Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água menos.
Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.
Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.
Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.
Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.
Cuidados Intensivos, Edições Afrontamento, Porto,1994.
Ao Helder
Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.
Não tenho paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanta existência).
Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água menos.
Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.
Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.
Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.
Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.
Cuidados Intensivos, Edições Afrontamento, Porto,1994.
Manuel António Pina, de 68 anos, Prémio Camões 2011, morreu esta tarde no Porto.
O poeta Manuel António Pina, morreu esta tarde na minha cidade, era um escritor afectuoso, divertido e melancólico, gostava muito de gatos e quando nos encontravamos, quase sempre na Fundação Eugénio de Andrade, no Passeio Alegre, na Foz, era uma conversa agradável, informal e terminava a falarmos de comportamentos felinos!
Manuel António Pina nasceu no dia 18 de Novembro de 1943.Licenciado em Direito, escritor, trabalhou no Jornal de Notícias durante três décadas.
Além da poesia (o primeiro livro foi editado em 1974, «Ainda não é o fim nem o princípio do Mundo, calma é apenas um pouco tarde») e da literatura infanto-juvenil («O país das pessoas de pernas para o ar», em 1973), escreveu ainda diversas peças de teatro e obras de ficção e crónica.
Tem obras traduzidas em França (francês e corso), Estados Unidos, Espanha (espanhol, galego e catalão), Dinamarca, Alemanha, Países Baixos, Rússia, Croácia e Bulgária.
A obra poética de Manuel António Pina está reunida no volume «Todas as Palavras», editado este ano pela pela Assírio & Alvim.
Além do Prémio Camões 2011, ganhou as seguintes distinções e prémios:
1978
Prémio de Poesia da Casa da Imprensa («Aquele que quer morrer»);
1987
Prémio Gulbenkian 1986/1987 («O Inventão»);
1988
Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, Itália («O Inventão»);
1988
Prémio do Centro Português para o Teatro para a Infância e Juventude (CPTIJ) (conjunto da obra infanto-juvenil);
1993
Prémio Nacional de Crónica Press Club/ Clube de Jornalistas;
2002
Prémio da Crítica, da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários” («Atropelamento e fuga»);
2004
Prémio de Crónica 2004 da Casa da Imprensa (crónicas publicadas na imprensa em 2004);
2004
Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2003 («Os livros»);
2005
Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores/CTT («Os Livros»);
2011
Prémio Camões
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
Shakespeare
OFÉLIA: Toma, é rosmaninho a flor da lembrança. Lembra-te de mim, peço-to, meu querido; estes são amores perfeitos, é para que sempre viva no teu coração de irmão. (...) Aqui tendes, senhor, estas simbólicas flores.
(Á rainha) Para vós, senhora, é arruda e também para mim; para vós será a erva da ventura, para mim a da dor. Eis um malmequer. Queria dar-vos violetas, mas murcharam todas quando meu pai morreu; dizem que teve o fim do justo.
(Á rainha) Para vós, senhora, é arruda e também para mim; para vós será a erva da ventura, para mim a da dor. Eis um malmequer. Queria dar-vos violetas, mas murcharam todas quando meu pai morreu; dizem que teve o fim do justo.
(Hamlet Acto 4, Cena 5)
domingo, 14 de outubro de 2012
Arthur Rimbaud contra a arte
Conservam-se poucos retratos, e os que existem são fantasmais, de Rimbaud adulto, do homem que não tinha nada que ver com a literatura e vivia nas costas da Somália exercendo os mais variados e mal remunerados ofícios.
Talvez seja esta a segunda razão para que se continue a pensar nele quase exclusivamente como no adolescente terrível e rebelde dos seus breves anos de Paris e dos seus meses de Londres.. O abandono da poesia numa idade incerta (digamos que por volta dos vinte anos) fez correr a imaginação insociável de todos os escritores precoces que se lhe seguiram, tentando-os a fazer o mesmo em qualquer ocasião, normalmente, hélàs, em idades mais avançadas: depois dele, todos os escritores precoces foram na realidade tardios.
A razão principal para que Arthur Rimbaud passasse a fazer parte da memória da literatura como criança atroz e prodígio é justamente esse abandono e o carácter misterioso das suas causas. Não era, contudo, a primeira mudança radical na sua vida. É como se Rimbaud se cansasse ao fim de pouco tempo de ser o que era, coisa que seria poeticamente apoiada pelo seu famoso «je est un autre», que tanta fortuna alcançou na carreira das citações. Passou de criança estudiosa e aluno brilhante a libertino iconoclasta, sem dúvida de relacionamento impossível. Os seus hagiógrafos lamentam frequentemente a incompreensão com que o mundo literário (boémio ou não) parisiense o tratou, mas para dizer a verdade é fácil de entender que aqueles que podiam ter sido colegas ou companheiros seus se afastassem dele como da peste e em troca lessem comodamente os seus poemas anos depois de o haverem conhecido, como efectivamente faz a posteridade (a posteridade conta sempre com a vantagem de fruir as obras dos escritores sem o incómodo de os suportar a eles). Segundo as descrições da época, Rimbaud nunca mudava de roupa e portanto cheirava mal, deixava as camas por onde passava cheias de piolhos, bebia sem parar (de preferência absinto) e não oferecia aos seus conhecidos senão um tratamento impertinente e afrontoso. (...)
Javier Marías, VIDAS ESCRITAS, Quetzal Editores, Lisboa, 1996.
Javier Marías, VIDAS ESCRITAS, Quetzal Editores, Lisboa, 1996.
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
Subscrever:
Mensagens (Atom)