terça-feira, 3 de setembro de 2013

Mónica Baldaque - Dias contados (JL de Julho de 2013).

Nasci na província, à meia-noite de um domingo de 12 para 13 de maio. Descia a procissão das velas pela quinta dos meus avós, e a lua em quarto-crescente brilhava no céu azul-limpo.
      Nasci num dos quartos do mirante, sobre o magnífico vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e caminhos estreitos entre muros e oliveiras; e as vidas eram secretas; e o canto compassado dos cavadores me inquietava, como se preparassem um ritual de morte.
     Não era uma vila, nem uma aldeia, mas um lugar: lugar de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do tempo de Egas Moniz.
Aquela casa fora  dos meus bisavós, e passara para minha avó e a sua irmã, espanholas de Zamora.
     Quando eu nasci, alguém me tirou o coração e o escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e continua, para sempre.
    A família do Douro era uma gente estranha. Liam muito, escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro, e um temperamento feroz; para eles, nada era verdadeiramente importante, nem viver nem morrer, nem ser isto ou aquilo, e geriam com desprendimento as fortunas que vinham e iam.
    Eles representavam o mundo fantástico para uma criança. Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que aquilo que era natural eu dar, o que significava que vivia ali num estado de liberdade e de confiança nos adultos.
    Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
    Nas tardes de muito calor, eu lia na sala às escuras as histórias as histórias da Elena Fortún, em espanhol: os dias de Célia e as suas primitas que viviam em Madrid e passavam férias em Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas, agitadas.
    Com os meus pais, as regras mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações de cumprir, de me formar no conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu estivesse atenta e soubesse exprimir-me.
Chorava, quando vinha do Douro, mas enfrentava com coragem e determinação este outro desafio a vencer.
    Mas o tempo da primeira infância, passei-o em Coimbra. Meu pai concluía Direito, minha mãe escrevia e tratava de mim e da casa. Vivíamos numa pequena casa dentro de um jardim, próxima da dos meus avós paternos. Meu avô era militar, e todos os dias o impedido lhe trazia o cavalo a casa, para ele seguir para o quartel. Levava-me a passear a pé até à Quinta das Lágrimas ou ao Portugal dos Pequeninos, o que significava andar 5 quilómetros por dia! Muito pequena, já olhava as plantas com imensa delicadeza e ternura. Chegava a cas sempre com um raminho de alecrim.
     Mudámos entretanto para o Porto. Gostei de fazer a primária na escola pública de Cedofeita.
Lembro-me  de todas as amigas que lá tive, da rua que percorria, das lojas, do recreio da escola com duas enormes tílias que o ensombravam. E de escrever no caderno - 1952.
    Depois o Liceu Michaelis, a que não consegui adaptar-me. Não gostava do edifício, nem dos corredores, nem dos recreios. Tudo aquilo era inóspito e hospitalar. O meu rendimento era mau. Mudaram-me  para o Colégio da Paz, das freiras Doroteias.
    Sempre me enfastiaram as aulas. Bom, era o tempo de férias no Douro! Lá, se moldou a minha alma provinciana e resistente.
    Nunca tive medo de nada. Nem do escuro, nem dos mortos, nem dos fantasmas, nem dos ladrões. Ficava sempre do lado dos personagens mais temíveis, não para os catequizar e trazer para o lado da luz e do bem, mas pelo prazer de os desmontar.
    A gente do Paço, de Vila Meã, da parte do meu avó materno, era uma gente valente e aventureira. E a aventura não implica forçosamente partir para o Brasil, ou outros lugares distantes. Pode ser-se aventureiro no espaço limitado do vale onde se nasceu, viveu e morreu, sem de lá ter saído.
    No fim do verão, fazia a viagem de comboio, com a minha avó, da Régua até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns, admitir outros.
   A minha tia Amélia (a Sibila), recebia-me à porta da cozinha, sem um sorriso nem um beijo. Punha-me um avental comprido, e um grosso cordão de ouro ao pescoço. "Aqui todos trabalham" - dizia-me.
    Eu aceitava aquela extravagância e procurava não me sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês branco que usava no Douro pelo avental de chita...Aprendi a fiar linho e a dar de comer aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos adultos, à luz da candeia de azeite.
   Só muito mais tarde percebi o sentido do avental e do cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas com os outros todos.
   Pouco convivi com essas tias, irmãs do meu avó materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a suspeita, ainda, de que elas consideravam o amor  coisa de velhos e ociosos!
   Com meu avó, já convivi mais. Não confiava nele. Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa. Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e só voltava de madrugada. O avó jogava, e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de capa - e - espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
    Já muito doente, pediu que lhe pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu bem.
    1962 - o grande ano de todas as mudanças. Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de pescadores, deserta no inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à beira-mar, na praia deserta.
     Minha mãe dava-me para ler, Dickens, e mandava-me ir ver os filmes do Bergman. Meu pai desenhava, e ensinava-me a desenhar.
     Aí, comecei a escrever. A escrever cartas intermináveis, que eram como diários de bordo.
    Ainda estive um ano interna no colégio das Doroteias, na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a área de Letras, que no colégio não havia, fiquei dois anos em casa a estudar com um professor particular que lá ia todos os dias dar-me aulas. Um privilégio fantástico! Era dona do meu tempo.
    Entrei em História na Faculdade de Letras do Porto. Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante, porque me obrigava a decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes. Frequentei dois anos a Escola do Porto, e, zangada, pedi a transferência para Lisboa.  Fui viver para casa de uma senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua alimentação Kasher, e contava-me episódios terríveis da guerra, com um sentimento de uma dor apagada e adormecida.
    Não gostei de Lisboa. Demasiada luz, demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado pouco do que eu realmente precisav a para seguir o meu destino. Precisava do nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da pronúncia de corte castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha aprendido e não podia esquecer. É  importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro, inchando-nos.
     Os meus pais compraram a casa do Gólgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi uma casa de ingleses, que mantém a mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas sinto ser essa, hoje, a casa de família.
    Semeou sécias no jardim, e morreu lá, minha avó materna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
    A casa do Douro foi vendida, e eu dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam no galinheiro.
     Ah! Fiz uma carreira nos museus,  de que já me esqueci. Não por mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida. Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só meu, não partilhável, e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos.
   
 
 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

CICUTA - Graça Martins


CICUTA


Debruça-te amor
e colhe-me a manhã

bebe-me o hálito
morde-me os gemidos

eu sou o copo
de cicuta

           (o vinho)

com o qual envenenas
os sentidos


Maria Teresa Horta

FEEL NO PAIN -Graça Martins


MÃE


mãe
terminou o tempo
de sorrir
desculpa-me a morte
das plantas

tatuei a tua antiga
imagem loura
em todos os pulsos
que anjos inclinam
de existires

perdi-me noite na planície
branca
sobrevivente das madrugadas
da memória

trocaram-me os dias
e as ruas de ancas
verticais
e nas minhas mãos incompletas
trouxe-te
um naufrágio
de flores cansadas
e o único jardim de amor
que cultivei
de navios ancorados
ao espaço


Maria Teresa Horta

THE FIRST TASTE - Graça Martins


TU


Com esse teu ar
de arcanjo negro

pálido e magro
triste e alheado

ficas por vezes quase etéreo
calado
enquanto eu te olho docemente

Num espanto condenado
quase místico
debruço-me secreta à tua beira

e numa espécie de prece
porque existes

alheado - magro
belo e triste

estou de joelhos
meu amor
e beijo-te


Maria Teresa Horta

Design do Flyer de Graça Martins. O Transgressor Discurso do Desejo - Sessão Quintas de Leitura - Escritora convidada - Maria Teresa Horta. Imagem plástica - Graça Martins. Na foto Maria Teresa Horta e Graça Martins


O Transgressor Discurso do Desejo - Fotos de Graça Martins



O Transgressor Discurso do Desejo - Fotos de Sara Moutinho - Quintas de Leitura - 11 de Julho de 2013


O Transgressor Discurso do Desejo - Maria Teresa Horta


terça-feira, 2 de julho de 2013

Fotos de Graça Martins


words

O Silêncio dos Poetas - Alberto Pimenta

(...)

A palavra como barreira

Isto explica muitas coisas: explica antes do mais o motivo porque um dos temas mais insistentes da poesia moderna é o da limitação proveniente do facto de ter que exprimir-se e da concessão implícita nesse acto. Fernando Pessoa formulou-o de modo bem claro:

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flôres
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flôres e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque sou só essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

Não será este igualmente o significado do poema Kubla Khan  de S.T. Coleridge, aparentemente tão enigmático no seu conjunto de circunstâncias biográficas e instrumentais? O poema existia acabado e real no espírito do autor, mas perdeu-se no momento em que estava a ser escrito: perdeu-se por conseguinte no momento em que deveria estabelecer-se o compromisso com a expressão, o compromisso da experiência com a memória  (linguística) dessa experiência. Sartre, sempre generoso com os poetas, diz também:

«O poeta está fora da língua, vê as palavras ao contrário, como se não pertencesse à condição humana e, chegando junto dos homens, começasse por encontrar a palavra como uma barreira».

Esteticidade e comunicação

Quem com efeito busca conhecimento concreto, quem não se contenta com ver a «realidade» apenas reflectida no espelho dos símbolos (no espelho do eu?), forçosamente considera que o espelho é um obstáculo e dificilmente um caminho. Sendo assim, o grau de esteticidade de uma obra  literária está também na proporção inversa do seu compromisso com os símbolos apriorísticos, isto é, na proporção inversa da sua  aceitação da «realidade» presente (reflectida) nos ditos símbolos.
Resulta daqui que quanto maior é a esteticidade, tanto menor é o grau de comunicação «objectiva» desta arte e, por conseguinte, tanto menor é a sua aceitação por parte do público,  o qual não costuma dispor-se facilmente a abandonar a harmonia simbólica pré-estabelecida do seu conhecimento. Sucede então o que Bourdieu define assim:

«É por isso que os observadores menos cultos das nossas sociedades têm tanto a tendência de exigir uma 'representação realista'; como não dispõem  das categorias específicas de apreensão, aplicam às obras de arte conhecidas a mesma chave que lhes serve para atribuir um sentido aos objectos da vida cotidiana».


Ensaios, A Regra do Jogo, 1978, Lisboa.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

SITO MUJICA




CLARICE LISPECTOR


CLARICE LISPECTOR

"Só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz."
"Ah, mas para chegar à mudez, que grande esforço da voz.
Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa."

terça-feira, 30 de abril de 2013


Languidez

Languidez - Estado subtil do desejo de amor, experimentado na ausência deste, fora de todo o querer-para-si.

Sátiro diz: Quero que o meu desejo seja imediatamente satisfeito. Se vejo um rosto que dorme, uma boca entreaberta, uma mão que pende, desejo poder lançar-me sobre tudo isto. Este Sátiro - figura do Imediato - é o próprio oposto do lânguido. Na languidez, não faço senão aguardar: «Não acabava de te desejar.» (O desejo está em toda a parte; mas, no estado apaixonado, transforma-se nesta coisa muito especial: a languidez.)


Rolland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Edições 70.

Heart


Fragmentos de um discurso amoroso - Rolland Barthes


Saber que não se escreve para o outro, saber que isto que vou escrever não me fará nunca ser amado por quem amo, saber que a escrita nada compensa, nada sublima, que está precisamente aí onde tu não estás - é o começo da escrita.