terça-feira, 18 de outubro de 2011

Fragmento do romance A MORTE EM VENEZA de THOMAS MANN

(...) Não existe nada de mais estranho e espinhoso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista - que diáriamente, mesmo hora a hora, se encontram, se observam e que têm assim de manter, sem cumprimentos e sem palavras, a aparência de desconhecimento indiferente, devido ao rigor dos costumes ou a caprichos pessoais. Entre elas existe inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria da necessidade insatisfeita, anormalmente recalcada, de conhecimento e comunicação e sobretudo também uma forma de consideração tensa. Pois o ser humano ama e respeita o outro ser humano enquanto não está em posição de o julgar e o desejo é produto de um conhecimento insuficiente.
Necessariamente. (...)
Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. Mas diz-me agora, meu querido amigo, acreditas que se pode atingir alguma vez a sabedoria e verdadeiro valor viril quando se caminha para o espiritual por via dos sentidos? Ou acreditas antes (e és livre de o decidir) que esse caminho é cheio de atraentes perigos, na realidade um caminho de desacerto e pecado, que conduz necessariamente ao erro? Pois tens de saber que nós, poetas, não podemos embarcar no caminho da beleza sem que Eros nos acompanhe e se arvore em líder; podemos bem ser herois à nossa maneira e guerreiros disciplinados, mas não deixamos de ser como as mulheres, pois a paixão é para nós sublimação e o nosso desejo deve permanecer amor - é esse o nosso prazer, é essa a nossa vergonha. Vês agora que nós, os poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade, uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interdizer. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo?

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