quarta-feira, 6 de março de 2013
Os Diários de Franz Kafka
Franz Kafka nasceu em 1883 em Praga, onde o pai era negociante. Doutor em Direito, entra para uma companhia de seguros em 1907, mas a sua natureza complexa vai adaptar-se dificilmente à vida profissional. Em 1910 começa a escrever os Diários que irá manter com regularidade até 1923. Morre de tuberculose num sanatório em 1924.
12 de Janeiro - Não escrevi muito sobre mim nestes dias, em parte por preguiça (durmo tanto e tão profundamente durante o dia, tenho mais peso enquanto durmo), em parte também por medo de trair o conhecimento que tenho de mim. Este medo justifica-se, porque uma pessoa só devia permitir fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade. Porque se isto não acontecer - e eu de qualquer maneira não sou capaz de o fazer - o que está escrito irá, de acordo com a sua própria finalidade e com o poder superior do que foi fixado, tomar o lugar daquilo que se sentia apenas vagamente, de tal modo que o sentimento verdadeiro desaparecerá enquanto o não valor do que foi anotado será reconhecido tarde de mais.
23 de Setembro - Esta história O Processo, escrevi-a eu de um jacto durante a noite de 22 para 23, das dez da noite às seis da manhã. Quase não conseguia tirar as pernas de debaixo da secretária, tão rígidas elas estavam de estar tanto tempo sentado. A terrível tensão e alegria, a maneira como a história se desenvolveu perante mim, como se eu estivesse a andar sobre as águas. Várias vezes durante a noite senti o meu peso às costas. Como tudo pode ser dito, como há para tudo, para as mais estranhas fantasias, um grande fogo à espera em que elas perecem e renascem outra vez.
Como ficou azul do lado de fora da janela. Rolou por ali uma carruagem. Dois homens atravessaram a ponte. Às duas horas olhei para o relógio pela última vez. Quando a criada atravessou a antecâmara pela primeira vez eu escrevi a última frase. Fechar a luz e a luz do dia. As dores leves em redor do coração. O cansaço que desapareceu a meio da noite. A trémula entrada no quarto das minhas irmãs. A leitura em voz alta. Antes disso, espreguiçar em frente da criada e dizer: «Estive a escrever até agora.» O aspecto da cama intacta, como se tivesse acabado de ser posta ali. A convicção confirmada de que com o escrever este romance me encontro nas planuras vergonhosas da escrita. Só desta maneira é que se pode escrever, só com uma coerência destas, com esta abertura total do corpo e da alma.
FRANZ KAFKA/DIÁRIOS, DIFEL, Difusão Editorial Lda, Lisboa.
eternidade
Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se
o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não demais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,
diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.
Maria do Rosário Pedreira
a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico Lda, Lisboa, 2007.
Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se
o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não demais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,
diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.
Maria do Rosário Pedreira
a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico Lda, Lisboa, 2007.
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