segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

domingo, 23 de dezembro de 2012

Escadas


O FIM DA ESCADA



A estranha sensação de ter morrido
em Viena, numa tarde de outono de 1992,
numa casa cuja escada nunca subi.
De ser desde então um intruso, um farsante,
o actor sem futuro de uma comédia má.
De que o destino. implacável e rasteiro,
se vingou na longa noite de um hospital,
nas horas vazias que tento preencher.
Inventar, não heterónimos como fez Pessoa,
mas algo mais simples, o homem que escreve agora,
a medíocre perseverança dos seus feitos,
enquanto, insistente, me tenta a ideia de voltar,
de subir de vez os degraus, de bater a uma porta.
Mas quem sabe se ainda uma história pior,
um horror mais nítido me espera ali,
no fim da escada, diante da imaginada porta?


Juan Luís Panero


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa
 


UM LONGÍNQUO ADEUS



Falamos, melancólicos, às três da madrugada,
tristes, não demasiado bêbados,
naquele ruidoso bar para noctívagos.
Curiosamente, insistimos no tema da morte
e recordou-me outras conversas, outro tempo,
embora neste momento, fosse uma morte próxima - muito pouco literária -,
sórdida e tangível como as manchas da toalha.
Na porta ao sair ficamos sérios,
sabíamos que de novo nos separávamos
e fingimos esquecê-lo com uma expressão banal.
Hoje, não sei porquê, voltam essas imagens
e gostaria de reviver aquela noite,
nem melhor nem pior, o que foi, simplesmente.
Reter por um momento, só por um momento,
a humidade dos teus olhos, o ricto do teu sorriso,
o que me chega como uma pintura desbotada,
ou como, ao despedir-nos, as gotas de chuva no vidro do carro,
a desenharem um caminho, a resvalarem, a apagarem-se.


Juan Luis Panero


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, 2003, Lisboa

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012


Ruy Belo - Sempre!



A MÃO NO ARADO


Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o  asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infãncia
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente




Ruy Belo

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


O RIO DA POSSE

 
 
Que todos somos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós.
A vida é, por isso, para os indefinidos, só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguém.
 
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age , se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no outro.
Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio como escala pelos outros.
 
 
Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego"

sábado, 15 de dezembro de 2012

Graça Martins - Ainda sem Título!



Poema de João Borges




A FIGURA E O SEU DUPLO*

 
Espelho
enquanto alguns rostos
são devorados pelas trevas,
outros se mostram à luz.
Não tens esperança,
não vês a aridez?
Por que fechas os olhos?

 
Espelho
desiste-se da vida assim
sem insistir? Sem se despenhar
pelas ravinas do esquecimento?
Por que ficas quieto,
por que tens medo?

 
Espelho
por que mostras um acrobata
paralisado pela sua natureza?
Porquê essa velhice tão final,
essa inclinação para a sepultura,
se nada te pede para morrer?

 
Espelho
não são os gritos um sinal de vida?

 
Espelho
não esqueces nada, ficas à espera,
com os dias perdidos,
há quanto tempo podias ter saído,
procurar um princípio e um verbo?

 
Espelho
esquece as palavras,
respira.
 

Lisboa, 20.4.10


*título de uma pintura de Graça Martins
 

domingo, 25 de novembro de 2012

Anselm Kiefer


Ruy Belo - fragmento de poema



Deixará o poeta anónimas algumas
das palavras que deus lhe pôs na boca
ou esses longos versos onde cabe a emoção?
Quantas vezes nesse obscuro instinto de escrever
o poema terá sido para ele
mais que o lugar onde ia ver-se livre
das palavras que o sobrecarregavam?
Estará ele disposto a abandonar o requintado gosto
que têm as leituras junto ao vão da janela?

Senhores dos planos de urbanização
responsáveis pela paisagem
cuidado com o poeta na cidade
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra poeta

Palavras de Gastão Cruz sobre RUY BELO

 
«um dos mais grandiosos e complexos monumentos da poesia portuguesa, um monumento barroco, em que alguns dos mais relevantes caminhos e experiências da poesia portuguesa confluem numa síntese poderosa, que congrega características aparentemente tão demarcadas e raramente conciliadas, como um discurso torrencial, por vezes próximo da prosa, e uma imaginação verbal inesgotável, por um lado, e, (...) por outro, como uma permanente dissecação da vida e da realidade quotidianas, em contraponto com uma antevisão, ora irónica, da morte própria e uma inquietação perante a morte alheia não menos constantes». Em seguida, o crítico reconhece estar diante do «autor dos poemas mais rigorosamente analíticos da realidade portuguesa, diria mesmo: é o mais fascinadamente realista dos poetas portugueses do século XX».
 
 
 
COLÓQUIO Letras, nº178, Dezembro 2011.

domingo, 4 de novembro de 2012

«Como um grito a noite acende o lado sonolento do coração.» Al Berto



Al Berto


A propósito da publicação DIÁRIOS de Al Berto pela Assírio & Alvim, Outubro de 2012



«Caminhos nocturnos, incertas travessias»
 
 
Há um tempo angustiado e silencioso na escrita de Al Berto, um tempo inexplicável que precede o desenrolar dos sentidos, tumultuado por «inscrições premonitórias», e marcado por afinidades com o Chronos.
é o tempo em que «chegara o momento de começar a escrever», de distinguir os jogos literários das velhas cicatrizes pintadas», de «saltar as grades das palavras», levantar «os pés do chão» e vogar «pela ânsia do primeiros livro».
É um tempo de «escrita frenética», de esvaziamento desamparado na noite sem fundo. Um tempo feito de um conglomerado de matérias em estado larvar, um tempo em que os homens são animais, em que o próprio escritor meio anfíbio fala com duas barbatanas a saírem-lhe da boca:(...) lentamente movo a cabeça de peixe fluorescente que me habita, é esta a cabeça do escritor, duas barbatanas a saírem-lhe da boca e um vómito no olhar»1
Os indícios desse conglomerado de tempo emergem como «pulsações bruscas, fragmentadas» (M,p.64) usam nomes despertados pelo desejo, são corpos nascidos duma mancha de tinta» (M,p.41), são pedaços do mundo em movimento que «atingem a velocidade da emergência», imagens-pulsão que ressoam o «som alucinante do alarme e da cesariana» (M,p.64). (...)
É o tempo dos diários - uma imagem «primitiva», «embrionária», uma imagem -pulsão, que dá a ver um mundo originário, que advém nesse estado complicado do tempo que cabe desenrolar: « Um projecto assalta-me: Escrever incessantemente para poder deixar de escrever.» (D1982, 27 de Maio); «É noite, eu sei, (...) Não deveria preocupar-me com mais nada que não fosse escrever. Viver plenamente as alegrias e frustações da minha vida de "homem que escreve", com toda a humildade que essa vida tem para mim. Como um grito a noite acende o lado sonolento do coração.» (D1982, 28 de Maio).
(...) O que importa é fazer da vida uma obra de arte, como se literatura e existência estivessem ligadas, unidas no mesmo andamento -«Pessoalmente, não consigo separar a vida da literatura e vice-versa. Está tudo profundamente ligado. Para mim, é assim: tem de haver uma grande coerência na maneira como se escreve, como se vive, como se está no mundo, senão nem a vida nem a poesia fazem qualquer sentido. (...)»2 ou ainda: «Escrever, pelo menos no que me diz respeito, é um projecto que assenta em grande parte, na maneira como estou na vida, na maneira como me vou dimensionando com o que me rodeia.» (D1984, 5 de Fevereiro). (...)


Golgona Anghel



1 Cf. Al Berto, O Medo (M), Lisboa, Assírio&Alvim, 2005, p.28.
2Cf.Jornal de Letras, 23 de Abril 1997, Al Berto: O poeta como viajante» entrevistado por Maria João Martins com Ricardo Araújo Pereira.

sábado, 3 de novembro de 2012

Luiza Neto Jorge à varanda da sua casa na Rua do Mundo (actualmente Rua da Misericórdia), anos 50. Lisboa.


Poema de Luiza Neto Jorge

Desinferno II



Caísse a montanha e do oiro o brilho
O meigo jardim abolisse a flor
A mãe desmoesse as carnes do filho
Por botão de vídeo se fizesse amor

O livro morresse, a obra parasse
Soasse a granizo o que era alegria
A porta do ar se calafetasse
Que eu de amor apenas ressuscitaria


 


Luiza Neto Jorge, in “Poesia”

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Anish Kapoor




Dois poemas de Al Berto



ao Jacinto


se te nomeasse cintilarias
no beco duma cidade desfeita
e o chumbo dos labirintos derreter-se-ia
na veia branca da noite uma estátua
de areia talvez um barco sulcasse
a cabeleira aquática da fala e
nenhuma porta se abriria sob teus passos


onde estamos? onde vivemos?
no desaguar tenebroso deste rio de penumbra
não beberemos ao futuro do homem
nem festejaremos o rugido triste da fera
moribunda



mas se te nomeasse
que desejo de sexo e da mente a medrosa alegria
em mim permaneceria?




O MEDO, Contexto, 1987, Lisboa.
ao Jorge e ao Eduardo Pitta 


nenhum barco regressou antes ou depois do teu
a noite azedou o vinho adocicado dos deuses
sem que um suspiro estalasse
na penumbra azul dos dias que te evocam


é tarde
estou doente no milénio que finda
as grandes rotas da paixão aborrecem-me
outro corpo magoa o esquecimento do meu
tenho a saudade duma mão sobre o rosto
a melancolia dos olhos dos afogados
mas nunca pedi à morte um pano limpo
para vendar ou polir o âmbar dos teus




resta-me este texto antigo deserto de asas
sobre a pele mordida pelas cinzas do voo
as horas como feridas de aguçados dentes
onde tremem alguns corpos que foram meus
 


O MEDO, Contexto, 1987, Lisboa.

domingo, 28 de outubro de 2012

Poema de Sylvia Plath



TULIPAS


As túlipas são demasiado sensíveis; é Inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apreendendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo ao cirurgiões. (…)
Não queria flores, apenas queria


estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram: imagino-os
introduzindo-as na boca, como se fosse hóstias.
Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,
perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do

meu corpo.

Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim com a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.


Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.

Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
perigosos;
abrem-se como a boca de um animal africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de país tão longínquo como a saúde.



Sylvia Plath, Pela Água, Assírio & Alvim

Dino Valls



Maurice Blanchot - No extremo dos extremos


 
A arte está a chegar ao fim? A poesia morre por se ter olhado de frente, tal como morre aquele que viu Deus? O crítico que considere o nosso tempo, ao compará-lo ao passado não pode deixar de exprimir uma dúvida e uma admiração desesperada pelos artistas que apesar de tudo continuam a produzir. Mas quando alguém prova, como Wladimir Weidlé num livro rico de cultura, de razão e de lamentos, que a arte moderna é impossível - esta prova é convincente, talvez demasiado lisonjeira -, não estará a realçar a exigência secreta da arte, que é sempre, em todos os artistas, a surpresa do que é ser possível, do que deve começar no extremo dos extremos, obra do fim do mundo,  arte que só  encontra o seu começo aí onde já não há arte e onde faltam as condições da arte? Não se pode ir demasiado longe na dúvida. É o modo, um dos modos de ir mais longe na maravilha do indubitável.
Weidlé escreve:« O erro de Mallarmé» (1), e Gabriel Marcel: « O erro mallarmeano...» Erro evidente. Mas não é evidente, também , que é a este erro que devemos Mallarmé? Todo o artista está ligado a um erro, com o qual mantém uma relação especial de intimidade. Há um erro de Homero, um erro de Shakespeare - que talvez seja, para um e para outro, o facto de não existirem. Toda a arte tem origem numa falha excepcional, toda a obra de arte é a execução dessa falha de origem, de que resultam para nós a ameaça de aproximação da plenitude e uma luz nova. Tratar-se-á de uma concepção própria ao nosso tempo, este tempo em que a arte deixou de ser uma afirmação comum, uma tranquila maravilha colectiva e é tanto mais importante quanto mais impossível? Talvez. Mas como eram as coisas outrora? E que vago outrora é esse, onde tudo nos parece tão fácil, tão seguro? Pelo menos, o que tem a ver connosco é o hoje e, quanto a hoje, podemos afirmar resolutamente: um artista não tem a possibilidade de se enganar demasiado, nem de se ligar demasiado ao seu erro, num contacto grave, solitário, perigoso, insubstituível, onde esbarra, com terror, com delícia, nesse excesso que, nele próprio, o conduz para fora de si e talvez para fora de tudo.


(1) - «O erro de Mallarmé foi querer isolar assim a essência poética e apresentá-la em estado puro, justapondo, sem as soldar profundamente, combinações verbais de insuperável beleza». (Les Abeilles d'Aristée).

O LIVRO POR VIR, Edição Relógio D'Água, Lisboa, 1984.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Poema de Manuel António Pina

It's All Right, Ma...
 
                                                                                 Ao Helder
 
Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.

Não tenho paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço, deixaste-me
pouco espaço para tanta existência).

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.


Cuidados Intensivos, Edições Afrontamento, Porto,1994.

Poeta Manuel António Pina -1943-2012




Manuel António Pina, de 68 anos, Prémio Camões 2011, morreu esta tarde no Porto.

O poeta Manuel António Pina, morreu esta tarde na minha cidade, era um escritor afectuoso, divertido e melancólico, gostava muito de gatos e quando nos encontravamos, quase sempre na Fundação Eugénio de Andrade, no Passeio Alegre, na Foz, era uma conversa agradável, informal e terminava a falarmos de comportamentos felinos!

 
Manuel António Pina nasceu no dia 18 de Novembro de 1943.Licenciado em Direito, escritor, trabalhou no Jornal de Notícias durante três décadas.
Além da poesia (o primeiro livro foi editado em 1974, «Ainda não é o fim nem o princípio do Mundo, calma é apenas um pouco tarde») e da literatura infanto-juvenil («O país das pessoas de pernas para o ar», em 1973), escreveu ainda diversas peças de teatro e obras de ficção e crónica.
Tem obras traduzidas em França (francês e corso), Estados Unidos, Espanha (espanhol, galego e catalão), Dinamarca, Alemanha, Países Baixos, Rússia, Croácia e Bulgária.
A obra poética de Manuel António Pina está reunida no volume «Todas as Palavras», editado este ano pela pela Assírio & Alvim.
Além do Prémio Camões 2011, ganhou as seguintes distinções e prémios:
1978
Prémio de Poesia da Casa da Imprensa («Aquele que quer morrer»);
1987
Prémio Gulbenkian 1986/1987 («O Inventão»);
1988
Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, Itália («O Inventão»);
1988
Prémio do Centro Português para o Teatro para a Infância e Juventude (CPTIJ) (conjunto da obra infanto-juvenil);
1993
Prémio Nacional de Crónica Press Club/ Clube de Jornalistas;
2002
Prémio da Crítica, da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários” («Atropelamento e fuga»);
2004
Prémio de Crónica 2004 da Casa da Imprensa (crónicas publicadas na imprensa em 2004);
2004
Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2003 («Os livros»);
2005
Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores/CTT («Os Livros»);
2011
Prémio Camões

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Pose de OFÉLIA para o quadro de MILLAIS (imagem da série inglesa sobre os Pré-Rafaelitas).


Shakespeare

OFÉLIA: Toma, é rosmaninho a flor da lembrança. Lembra-te de mim, peço-to, meu querido; estes são amores perfeitos, é para que sempre viva no teu coração de irmão. (...) Aqui tendes, senhor, estas simbólicas flores.
(Á rainha) Para vós, senhora, é arruda e também para mim; para vós será a erva da ventura, para mim a da dor. Eis um malmequer. Queria dar-vos violetas, mas murcharam todas quando meu pai morreu; dizem que teve o fim do justo.
 
 
 
 (Hamlet Acto 4, Cena 5)

domingo, 14 de outubro de 2012

RIMBAUD


RIMBAUD


Arthur Rimbaud contra a arte

Conservam-se poucos retratos, e os que existem são fantasmais, de Rimbaud adulto, do homem que não tinha nada que ver com a literatura e vivia nas costas da Somália exercendo os mais variados e mal remunerados ofícios.
Talvez seja esta a segunda razão para que se continue a pensar nele quase exclusivamente como no adolescente terrível e rebelde dos seus breves anos de Paris e dos seus meses de Londres.. O abandono da poesia numa idade incerta (digamos que por volta dos vinte anos) fez correr a imaginação insociável de todos os escritores precoces que se lhe seguiram, tentando-os a fazer o mesmo em qualquer ocasião, normalmente, hélàs, em idades mais avançadas: depois dele, todos os escritores precoces foram na realidade tardios.
A razão principal para que Arthur Rimbaud passasse a fazer parte da memória da literatura como criança atroz e prodígio é justamente esse abandono e o carácter misterioso das suas causas. Não era, contudo, a primeira mudança radical na sua vida. É como se Rimbaud se cansasse ao fim de pouco tempo  de ser o que era, coisa que seria poeticamente apoiada pelo seu famoso «je est un autre», que tanta fortuna alcançou na carreira das citações. Passou de criança estudiosa e aluno brilhante a libertino iconoclasta, sem dúvida de relacionamento impossível. Os seus hagiógrafos lamentam  frequentemente a incompreensão com que o mundo literário (boémio ou não) parisiense o tratou, mas para dizer a verdade é fácil de entender que aqueles que podiam ter sido colegas ou companheiros seus se afastassem dele como da peste e em troca lessem comodamente os seus poemas anos depois de o haverem conhecido, como efectivamente faz a posteridade (a posteridade conta sempre com a vantagem de fruir as obras dos escritores sem o incómodo de os suportar a eles). Segundo as descrições da época, Rimbaud nunca mudava de roupa e portanto cheirava mal, deixava as camas por onde passava cheias de piolhos, bebia sem parar (de preferência absinto) e não oferecia aos seus conhecidos senão um tratamento impertinente e afrontoso. (...)


Javier Marías, VIDAS ESCRITAS, Quetzal Editores, Lisboa, 1996.
 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Dois trabalhos plásticos de Dino Valls


Fragmento de um poema de Ruy Belo



Deixará o poeta anónimas algumas
das palavras que deus lhe pôs na boca
ou  esses longos versos onde cabe a emoção?
Quantas vezes nesse obscuro instinto de escrever
o poema terá sido para ele
mais que o lugar onde ia ver-se livre
das palavras que o sobrecarregavam?
Estará ele disposto a abandonar o requintado gosto
que têm as leituras junto ao vão da janela?

Senhores dos planos de urbanização
responsáveis pela paisagem
cuidado com o poeta na cidade
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra do poeta

domingo, 7 de outubro de 2012

Dino Valls

 

Ana Hatherly - O Mestre

A Mentira é recriação de uma verdade. O mentidor cria ou recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é ténue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas ténues e delicadas.
Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo. Resulte seja o que for ou do que for.
A ambiguidade é a Arte do Suspenso. Tudo o que está suspenso suspende ou equilibra. Ou instabiliza. Mas tudo é instável ou está suspenso.
Pelo menos ainda.
Ainda é uma questão de tempo. Tudo depende da noção de tempo ou duração ou extensão. A aceleração do tempo pode traduzir-se pela imobilidade pois que a imobilidade pode traduzir-se por um máximo de aceleração ou um mínimo de extensão: aceleração tão grande que já não se veja o movimento ou o espaço ou a duração.
Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa. Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou qualquer coisa. Ou alguém.
Os construtores demolem. No lugar onde estava o sopro, pormos pedras ou palavras:sinónimos de construção. Ou destruição. Ou acção.
O Mestre é um homem que aparece. Está-se sempre a rir e ri de tudo, mas diz: há coisas que a gente não deve querer. Em francês soava melhor: il y a des choses qu'il ne faut pas vouloir. No entanto o Mestre não é francês, aliás não é natural de lado nenhum ou talvez se pudesse dizer que não tem naturalidade nenhuma.
O Mestre é uma personagem porque é uma pessoa e na origem da pessoa está a máscara. Além disso o Mestre usa máscara, tem máscara, é mascara. Um dos aspectos da sua máscara (ou da sua pessoa) é ser Mestre - usa a máscara de Mestre. Não se sabe bem o que ele ensina, todavia é certo que se pode aprender muito com ele porque, embora fale pouco,ri muito. Ou faz-nos rir muito.
O riso resulta trágico ou do trágico.
Porém a Discípula não gostava de rir nem tão pouco de chorar e é por isso que andava à procura da Alegria, já que essa devia excluir o riso e o choro. Tornar-se Discípula de um Mestre era ter a esperança de com ele aprender a arte da Alegria, porque se ele fosse um mestre além de Sábio devia ser Sofo.
O Mestre é para ensinar o que a gente não sabe. Ou não sabe ainda. É por isso que a Discípula tem de procurá-lo até à exaustão ou à loucura.
Foi por esse motivo que, quando um dia a Discípula leu no jornal um anúncio em que se dizia que um verdadeiro Mestre tinha descido à cidade, correu a inscrever-se no curso dele, esperando com a maior ansiedade o início das aulas. Chegado esse dia a Discípula não compreendeu logo o que é que esse Mestre, porque ele era muito desdobrado e ria muito, mas com o decorrer do tempo verificou que o seu Aparecer é que era o seu Ensinamento.
Então a Discípula, pensando que essa era a maneira de atingir a Alegria, foi buscar o seu Andrógino Potencial e desdobrou-o em três partes para assim poder vir a secundar condignamente o Mestre que, embora Andrógino Potencial e Efectivo, só tinha duas partes verdadeiramente activas.
Entretanto a Discípula habituou-se de tal modo a ser três em um que não conseguiu mais voltar a ser um em três; e verificou que em vez de atingir a Alegria cada vez mais se afastava dela, pois que, desde o dia em que conhecera o Mestre, passara também a rir-se muito. (...) 
 
 
Moraes Editores/Círculo de Poesia, 2ªedição, com prefácio de Maria Alzira Seixo, 1976

domingo, 9 de setembro de 2012

Maria Zambrano


A Filósofa de escrita "inspirada"

Maria Zambrano nasceu em 1904 em Veléz-Málaga. Estudou Filosofia na Universidade de Madrid, onde foi assistente de Ortega y Gasset. A guerra civil de Espanha, em que participou na defesa da República, levou-a ao exílio em 1939. Foi professora em universidades do México, de Cuba e de Porto Rico, até voltar para a Europa em 1953; mas só regressou a Espanha em 1984, falecendo em Madrid em 1991; em 1988 obteve o Prémio Cervantes, o maior galardão literário do mundo de língua espanhola.
A partir de 1930 publicou obras fundamentais do pensamento espanhol contemporâneo.
Com uma cultura invulgar e uma capacidade de escrita que dir-se-ia inspirada, onde o rigor inclui a densidade e a sedução poéticas, Maria Zambrano é um dos maiores escritores espanhois deste século, um espírito que tem de ser considerado para se compreender, desde a sua origem e até hoje, o que é a Espanha.

MARIA ZAMBRANO - O Vazio e a Beleza


A beleza faz o vazio - cria-o -, tal como se essa face que tudo adquire quando está banhado por ela viesse de um longínquo nada e a ele tivesse de voltar, deixando a cinza do seu rosto à condição terrestre, a esse ser que da beleza participa. E que lhe pede sempre um corpo, o seu traslado, do qual por uma espécie de misericórdia lhe deixa às vezes o rasto: pó ou cinza. E em vez do nada, um vazio qualitativo, fechado e puro ao mesmo tempo, sombra da face da beleza quando parte. Mas a beleza que cria esse seu vazio, fá-lo seu depois, porque lhe pertence, é a sua auréola, o seu espaço sacro onde fica intangível. Um espaço onde ao ser terrestre não é possível instalar-se, mas que o convida a sair de si, que leva a sair de si o ser escondido, alma acompanhada pelos sentidos; que arrasta consigo o existir corporal e o envolve, unifica-o. E no próprio limiar do vazio que cria a beleza, o ser terrestre, corporal e existente, rende-se; rende a sua pretensão de ser separadamente, e até a de ser ele, ele próprio; entrega os seus sentidos que se tornam unos com a alma. Um acontecimento a que se chamou contemplação e esquecimento de todo o cuidado.

O Abismar-se da Beleza

A beleza tende para a esfericidade. O olhar que a recolhe quer abrangê-la toda ao mesmo tempo, porque é una, manifestação sensível da unidade, suposto da inteligência do que tão fácilmente ao ficar preso de "isto" ou "aquilo" e da sua relação, sobretudo da sua relação, se desprende. Já que isto ou aquilo considerado desinteressadamente mostra a sua unidade, não sua talvez, mas unidade ao fim e ao cabo.
E a beleza na qual depois distingue a inteligência, elementos e relações até com os seus números, oferece-se ao aparecer como unidade sensível. E a mente de quem a contempla tende a assimilar-se a ela, e o coração a bebê-la, num só hausto, como seu cálice ansiado, o seu feitiço.
Porque a beleza ao mesmo tempo que manifesta a unidade, a unidade que não pode proceder senão do uno, abre-se. Não se apresenta ao modo do ser de Parménides, ou daquele que crê que é esse ser. Abre-se como uma flor, que deixa ver o seu cálice, o seu centro iluminado que logo acaba por ser o centro que comunica com o abismo. O abismo que se abre na flor, nessa única flor que se ergue no prado, que se ergue mal acaba de abrir inteiramente. Logo que aberta, como distância que convida a ser olhada, a que se debrucem sobre o seu cálice violáceo, por vezes branco. E quem se debruça sobre cálice desta flor una, a única flor, arrisca-se a ser raptado. Risco que se cumpre na Perséfone dos sacros mistérios. A rapariga, a inocente que olha o cálice da flor que mal se ergue, junto ao abismo e que é o seu chamamento, a sua abertura. E não seria necessário - dizendo-o com perdão do sagrado mito de Elêusis - que aparecesse o carro do deus dos ínferos. O único abismo que no centro da beleza, unidade que procede do uno, se abre, bastaria para se abismar. E assim a esperança diz: até que o abismo do uno se erga todo; até que Deméter Alma não volte a ter que se pôr de luto.

O Centro - a Angústia

A angústia vem quando se perde o centro. Ser e vida separam-se. A vida é privada do ser e o ser, imobilizado, jaz sem vida e sem por isso morrer nem estar morrendo. Dado que para morrer é preciso estar vivo e, para o trânsito, vivente.
("Que eu, Sancho , nasci para viver morrendo" é uma confissão de um ser, além de vivo, vivente.)
O ser sem referência alguma ao seu centro jaz, absoluto enquanto apartado; separado, solitário. Sem nome. Ignorante, inacessível. Pior que um algo, despojo de um alguém. Some-se sem por isso descer nem mover-se, nem sofrer alteração alguma, resiste à desagregação ameaçadora. É tudo.
E a vida derrama-se do ser tirado do seu centro simplesmente. Não encontra lugar que a albergue, entregue à sua solitária vitalidade. Angústia do jovem, do adolescente e até da criança que divaga e tem tempo, todo o tempo, um tempo inabitável, inconsumível; situação derivada de não estar submetida a um ser e ao que o fixa, a um centro. Tende a voltar à condição primária, à avidez colonizadora; dissipa-se e até se afoga em si mesma, água sem margens, até que encontra, se felizmente encontrar, a pedra.
Reagir na angústia ou perante ela - Kierkegaard alcança neste ponto uma autoridade de mártir e de mestre - é o inferno. A quietude sob ela é indispensável. A quietude que não consiste em retirar-se mas em não sair do simples aguentar que é padecer. Neste padecer o ser acorda, vai acordando necessitado da vida e chama-a. Chama-a se resistiu à tentação inerte de continuar a vida no seu derramar-se. E quando a vida torna a recolher-sete é o momento em que o alguém, o habitante do ser - se não é o próprio ser - estabelece distância, uma diferença de nível para não ficar submerso pelo impulso da vida. E passa assim de estar sem lugar a ser o seu dono, enquanto é simplesmente erguido de um modo embriagador. Passa de ficar sem vida a ficar sozinho com essa vida parcial que volta pela sua docilidade de serva.
Pois a vida é como uma serva dócil à invocação e à chamada de quem aparece como dono.. Precisa do seu dono, de ser de alguém para ser de algum modo e alcançar de alguma maneira a a realidade que lhe falta.diante de si, sozinho nesta conjunção do ser com a vida, nesta mistura não estável, como se sabe. E assim antes de se separar na situação terrestre - a que conhecemos e suportamos - tem de fixar-se uma estranha realidade, a do próprio sujeito, a do ser que adquiriu pela vida, e graças a ela, a realidade própria. E a vida, serva fiel, poderá então retirar-se tendo cumprido a sua finalidade saciada por fim, sem avidez excessiva. E fá-lo-á deixando sempre algo da sua essência germinante, nada ideal nem que possa por isso ser captado; algo que pode somente reconhecer-se enquanto se sente, nessa espécie, a mais rara do sentir iluminante, do sentir que é directamente, imediatamente conhecimento sem nenhuma mediação. O conhecimento puro, que nasce na intimidade do ser, e que o abre e o transcende, "o diálogo silencioso da alma consigo mesma" que busca ainda ser palavra, a palavra única, a palavra indizível; a palavra liberta da linguagem.
E a realidade surge, a do próprio ser humano e que ele precisa de ter diante de si, sózinho nesta conjunção do ser com a vida, nesta mistura não estável, como se sabe. E assim antes de se separar na situação terrestre - a que conhecemos e suportamos - tem de fixar-se uma estranha realidade, a do próprio sujeito, a do ser que adquiriu pela vida, e graças a ela, a realidade própria. E a vida, serva fiel, poderá então retirar-se tendo cumprido a sua finalidade saciada por fim, sem avidez excessiva. E fá-lo-á deixando sempre algo da sua essência germinante, nada ideal nem que possa por isso ser captado; algo que pode somente reconhecer-se enquanto se sente, nessa espécie, a mais rara do sentir iluminante, do sentir que é directamente, imediatamente conhecimento sem nenhuma mediação. O conhecimento puro, que nasce na intimidade do ser, e que o abre e o transcende, "o diálogo silencioso da alma consigo mesma" que busca ainda ser palavra, a palavra única, a palavra indizível; a palavra liberta da linguagem.



3 Fragmentos do livro Clareiras do Bosque de Maria Zambrano, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1995

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

MARGUERITE YOURCENAR - O seu espaço de criação em Petite Plaisance, na sua ilha americana, conhecida como Montes Desertos.



A casa de Marguerite Yourcenar


Les Yeux Ouverts


MARGUERITE YOURCENAR - De Olhos Abertos - Conversas com Matthieu Galey

(...) Estou tentada a acreditar que, com o passar da vida, o estilo se aperfeiçoa, se desprende de escórias imitativas, se simplifica e encontra a sua própria inclinação, mas que o fundo permanece, só que enriquecido, ou antes, confirmado pela vida.
A seguir vem a publicação dos meus primeiros ensaios, no estilo de narrativa francesa, muito reservado, moderado, delimitado. É também o período de Alexis. De certa forma, houve uma paragem no meu desenvolvimento pessoal, pelos meus vinte e cinco anos. Queria alinhar-me com a literatura contemporânea, sobretudo a da «narrativa» à Gide ou à Schlumberger, fechar-me numa forma de arte mais literária, mais contida, o que até era uma excelente disciplina.
Seguiu-se uma reacção contra Alexis. Estamos na época de Fogos e do primeiro Denário do Sonho, num estilo mais ornamentado que, efectivamente, pode ter sido influenciado por Barrès, mas também por muitos outros, por Suarés, por exemplo, ou por todos os poetas e pintores barrocos italianos...Depois disso, acho que voltei ao meu caminho, a partir de Adriano.
 
- O seu pai tinha paixões literárias que poderá ter-lhe legado? 
 
-Ele gostava muito de ler e tinha alguns autores favoritos, mas paixões literárias acho que não. Gostava muito de Shakespeare,  por exemplo, e de Ibsen. Lemos Ibsen juntos, quando eu tinha dezasseis ou dezassete anos. Tenho ainda várias peças anotadas por ele: queria ensinar-me a ler em voz alta, e imaginou uma espécie de anotação musical, para marcar os sítios onde deveríamos parar, aqueles em que a voz sobe ou desce. Ibsen ensinou-me muito sobre a independência total do homem, como em Um inimigo do povo, cujo heroi é o único a aperceber-se de que a cidade está poluída. Esses extraordinários escritores do século XIX  eram muitas vezes refractários, subversivos, em oposição à sua época e a tudo o que os rodeava, contra toda a mediocridade humana.. Ibsen, Nietzche e Tolstói pertenciam a esse grupo, e foi com o meu pai, de resto, que os li aos três.
Por outro lado, ele não era grande leitor de Balzac. Eu diria mesmo, o que pode parecer bastante arrogante da minha parte, que, em certa medida, fui eu que o levei a ler alguma da literatura francesa do séc.XIX. Fui eu que lhe disse, por exemplo: «Vamos ler A Cartuxa de Parma.»
Líamos muito juntos, em voz alta. Passávamos o livro um ao outro. Eu lia, e quando já estava cansada ele pegava e retomava a leitura. Lia muitíssimo bem, muito melhor do que eu, exteriorizava muito mais.
 
-E quando é que descobriu Proust?
 
-Pouco depois da sua morte, devia ter vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Mas nesse caso o meu pai já não me seguiria. Tinha  aquela recusa da velhice, aquela repugnância em ler obras mais recentes. Para ele, Proust representava o incompreensível. Preferia os russos, que amávamos intensamente. E Selma Lagerlöf, sobre quem eu viria posteriormente a escrever um ensaio, e que continuo a considerar uma escritora de génio.
 
- E Dostoievski?

-Li-o mais tarde, e admirei-o com uma espécie de estupor, como explicar?, de cortar a respiração por momentos, tão grande aquilo me pareceu. Mas nunca me senti muito influenciada. O seu cristianismo estava - ou parecia-me estar - nos antípodas do que me interessava, ainda que eu tivesse uma admiração emocionada pelo stárets Zóssima. No entanto, nunca reli muito Dostoievski, e também é por esse aspecto que julgamos as influências.
Havia também autores franceses, Saint-Simon, por exemplo. O meu pai gostava sobretudo dos escritores do século XVII. Li quase tudo de Saint-Simon com ele. Tinha a sensação de ali encontrar as massas humanas, de nele ver o grande observador do que se passa e do que passa...Quanto ao seu estilo, é tão grande que, se não o analisarmos enquanto profissionais, nem nos apercebemos de que existe. A sua  linguagem é admirável, mas questiono-me sobre se não será apenas agora, ou sobretudo agora, que me inpressiona.

-E os poetas?

-Os poetas? Os do séculoXVII, naturalmente, os renascentistas, e Hugo. Sempre adorei Hugo, apesar de todas as modas contrárias. Reconheço que tem momentos de uma retórica pesada, mas tem outros deslumbrantes e imensos. Os outros poetas, Rimbaud, Apollinaire, chegaram-me mais tarde. Já disse, aliás, no prefácio de Alexis, que me parece frequente um jovem escritor estar preocupado com a sua época, a menos que faça parte integrante de um grupo «em voga» que tenta seguir ou antecipar as modas. Em geral, os jovens alimentam-se da obra deixada pelas gerações precedentes. Isto é surpreendente quando observamos de perto os românticos. Nem é nos seus predecessores imediatos que buscam referências, vão sempre um pouco mais longe.

-No seu caso, quem foram os seus predecessores?

-Talvez Yeats, Swinburne, D'Annunzio. D'Annunzio era muito lido naquela época. Sobretudo os poemas, muitas vezes belíssimos, que eu lia em italiano. Era capaz de distinguir entre os seus romances, que são muito datados, e aqueles poemas que continuam a ser sempre bons, na condição, claro, de passar por cima da poética enfatizada ou da ornamentação barroca, tão irritantes nele como em Barrès.
Quem mais? Péguy? Nunca fui apreciadora de Péguy; não gostava do seu cristianismo agressivo,tal como detestava o de Claudel. Nem um nem outro existiam realmente para mim. Beaudelaire, sim, mas só bem tarde é que lhe tomei o gosto, como conhecedora, como alguém que julga, do ponto de vista do ofício, a perfeição extraordinária do verso baudelairiano. De certo modo, já era demasiado tarde para entusiasmos ingénuos.
No meu caso, entusiasmou-me sobretudo a poesia do século XVII e a poesia renascentista: Racine, La Fontaine (mas menos, pois só muito posteriormente é que senti a beleza rítmica do verso de La Fontaine), os poetas ingleses, sobretudo os metafísicos, que, obviamente, li no original. E depois, entre os italianos, os da Idade Média, os poetas da «Gaia Ciência» e toda aquela escola. Poetas que não estão muito longe de ser metafísicos.
Mas, se quer falar de infuências, seria provavelmente necessário ir buscá-las  aos filósofos. Por exemplo, acho que não se pode dar grande destaque à infuência de Niestzche, pelo menos não ao Zaratustra; mas ao Niestzche de A Gaia Ciência sim, de Humano, Demasiado Humano, aquele que tem uma forma particular de considerar as coisas, ao mesmo tempo de muito perto e de muito longe, lúcido, aguçado e simultaneamente quase ligeiro.

-Mas um homem como Schopenhauer, por exemplo, foi importante para si?

-Sim, só que rapidamente se confundiu com a influência do budismo, porque no fundo Schopenhauer representa uma primeira tentativa de introduzir o pensamento budista num país europeu. Mas penso sempre com emoção em Thomas Buddenbrook, de Mann, quando, depois de uma vida convencional e desalentada, descobre em Schopenhauer um sentido para o desespero e talvez a maior forma de paz.
(...)

Relógio D'Água Editores, Junho de 2011, tradução de Renata Correia Botelho.