quinta-feira, 28 de agosto de 2008
O RETRATO
(...)O retrato fotográfico vem confrontar o sujeito com o horror e o fascínio de uma imagem especular fixa, da qual ele não pode fugir. Mas esse facto abre-lhe o acesso a todas as especulações sobre o seu Eu, fornecendo-lhe um espelho «manuseável». Esta especulação surge ao mesmo tempo que certos conceitos oriundos da psicanálise referentes à construção psíquica da identidade: a noção de Eu proposta por Freud, remete em última análise para uma instância de acção, nem sempre consciente, e a partir do qual o sujeito se posiciona ideologicamente, isto é, fictivamente/idealmente. É este «Eu» que o retrato paradoxalmente fornece e põe em causa; a imagem parada é sempre perturbante: ela nega o movimento, a mobilidade e plasticidade do eu, a possibilidade do arrependimento e do remorso, ela nega sobretudo a afirmação da vida, porque nos transforma em coisas. Esse corte temporal apenas nos surge no retrato fotográfico, pela natureza instantânea e capturante*.
(...)Finalmente não me parece defensável uma ideia de ruptura entre o retrato fotográfico e o retrato pintado. Será mais interessante defender uma «aceleração» dos processos de questionamento do indivíduo e da angústia de morte subsquente, como factores que priviligiam o sucesso e determinam a diferença do retrato fotográfico. A velocidade de construção mecânica e a «colagem à realidade» dão ao retrato fotográfico a possibilidade de se tornar num instrumento imediato de acção não exigindo todo o trabalho de construção artesanal a que a pintura obriga. Neste sentido poderíamos estabelecer um paralelo entre as duas técnicas de retrato e dois modelos de pensamento: enquanto o retrato pintado implica uma transformação do mundo pelo pensamento ( a matéria pela ideia), o retrato fotográfico apenas exige, aparentemente, uma acção imediata do sujeito sobre esse mundo, no sentido da sua completa assimilação.
*Este aspecto «mortífero» é para Barthes a questão central:«O Fotógrafo tem de lutar imenso para que a fotografia não seja a Morte. Mas eu, objecto, não luto. (...)assim que me descubro no produto desta operação, aquilo que vejo é que me tornei Todo-Imagem, ou seja, a Morte em pessoa. Os outros- desapropriam-me de mim próprio, fazem ferozmente de mim um objecto, têm-me à sua mercê, à sua disposição, arrumado num ficheiro, preparado para todos os truques subtis.» Barthes 1980
Margarida Medeiros, Fotografia e Narcisismo - O Auto-Retrato Contemporâneo
Um Supermercado na Califórnia
Que pensamentos tenho de ti esta noite, Walt Whitman, porque desci as ruas laterais debaixo das árvores com uma dor de cabeça auto-consciente olhando para a lua cheia.
Na minha fadiga faminta, e querendo comprar imagens, entrei no supermercado de fruta com néon, sonhando com as tuas enumerações!
Que pêssegos e que penumbra! Famílias inteiras fazendo compras à noite! Corredores cheios de maridos! Mulheres nos abacates, bebés nos tomates!- e tu, Garcia Lorca, que estavas a fazer ao pé das melancias?
Vi-te , Walt Wihtman, sem filhos, velho comilão solitário, apalpando as carnes no frigorífico e deitando o olho aos marçanos.
Ouvi-te fazer perguntas a todos: Quem matou as costelas de porco? O preço das bananas?
És o meu Anjo?
Vagueei por entre as pilhas brilhantes de latas seguindo-te, e seguido na minha imaginação pelo detective da casa.
Percorremos juntos os grandes corredores na nossa fantasia solitária provando alcachofras, tirando todos os manjares congelados, e sem nunca passarmos pela caixa.
Aonde é que vamos, Walt Whitman? As portas fecham dentro de uma hora. Que caminho a tua barba aponta hoje?
(Toco no teu livro e penso na nossa odisseia no supermercado e sinto-me absurdo).
Passearemos toda a noite por ruas solitárias? As árvores juntam sombra com sombra, luzes nas casas, estaremos os dois solitários.
Sonhando com a perdida América de amor passaremos por automóveis azuis estacionados, a caminho da nossa casa silenciosa?
Ah, querido pai, barba grisalha, velho e solitário mestre de coragem, que América tiveste quando Charon deixou de empurrar o seu barco e tu desceste para a margem enfumarada e ficaste a vê-lo desaparecer nas águas do Lethe?