sábado, 30 de agosto de 2008
Cartas a um poeta
Rainer Maria Rilke
Carta IX
Furnborg, Jonsered, Suécia,
4 de Novembro de 1904
Rainer Maria Rilke
Carta IX
Furnborg, Jonsered, Suécia,
4 de Novembro de 1904
Meu caro senhor kappus: Durante todo este tempo, em que não teve notícias, andei em viagem e estive muito ocupado. É-me ainda difícil escrever: cartas numerosas cansaram-me a mão. Se pudesse ditar, dir-lhe-ia muitas coisas; mas, como não posso, aceite estas poucas palavras como resposta à sua longa carta.Penso tantas vezes em si, meu caro senhor Kappus, concentro de tal forma os meus votos sobre a sua vida, que , de qualquer modo, isto deveria ajudá-lo. Bem pelo contrário, duvido muitas vezes de que as minhas cartas lhe sejam benéficas. Não me diga que o são. Aceite-as simplesmente, sem me agradecer demasiado, e deixe agir o tempo.Talvez não seja necessário entrar no pormenor do que me diz. Tudo o que poderia dizer-lhe sobre as suas tendências para a dúvida, sobre as dificuldades que tem em conciliar a sua vida exterior com a sua vida interior, ou sobre quaisquer outras dificuldades, já lho disse. Apenas posso formular, uma vez mais, o voto de que possa encontrar em si próprio paciência bastante para suportar a simplicidade bastante para crer. Confie-se cada vez mais à sua solidão e a tudo o que é difícil. Quanto ao resto, tenha confiança na vida. Acredite: a vida tem sempre razão.Pelo que diz respeito a sentimentos, puros são todos os sentimentos em que concentra todo o seu ser e que o elevam; impuros, todos aqueles que apenas correspondem a uma parte de si próprio e por consequência o deformam. Tudo o que pensa quando se reporta à sua infância - é bom. Tudo o que faz de si mais do que era até então nas suas melhores horas - é bom. Se toda a sua substância nela participar, toda a exaltação é boa, desde o momento que não seja simples perturbação ou embriaguez mas alegria clara e transparente.Compreende o que quero dizer? A sua própria dúvida, se a educar, poderá tornar-se uma coisa salutar, isto é, transformar-se em instrumento de conhecimento e selecção. Pergunte-lhe, cada vez que a vir tentada a estragar qualquer coisa, por que razão acha essa coisa feia. Exija-lhe provas. Observe-a: vê-la-á talvez desorientada, em busca de uma pista. Sobretudo, não abdique nunca. Não se esqueça nunca de perguntar-lhe as suas razões. Virá o dia em que a dúvida, essa destruidora, se transformará num dos melhores artífices - o mais inteligente, talvez, de todos os que trabalham na construção da sua vida.Eis meu caro senhor Kappus, tudo o que por hoje posso dizer-lhe. Mando-lhe, pelo menos correio, uma tiragem especial de um poema que acabo de publicar na Deutsche Arbeit, de Praga. Nesse poema continuo a falar-lhe da Vida e da Morte, duas coisas grandes e magníficas. Seu
Rainer Maria Rilke
MARÍA ZAMBRANO
A Metáfora do Coração e outros escritos
A Metáfora do Coração e outros escritos
(...)O amor transcende sempre, é o agente de toda a transcendência. Abre o futuro; não o porvir, que é o amanhã que se pressupõe certo, repetição com variações do hoje e réplica do ontem. O futuro essa abertura sem limite, para outra vida que nos aparece como a vida de verdade. O futuro que atrai também a História.
Mas o amor lança-nos para o futuro, obrigando-nos a transcender tudo o que concede. A sua promessa indecifrável desacredita tudo o que consegue, toda a realização. O amor é o agente de destruição mais poderoso, porque, ao descobrir a inanidade do seu objecto, deixa livre um vazio, um nada que é aterrador no princípio de ser apercebido. É o abismo em que se some não somente o amado, mas a própria vida, a própria realidade do que ama. É o amor que descobre a realidade e a inanidade das coisas, e que descobre o não ser e até o nada.
(...)A consciência aumenta após um desengano de amor, como a própria alma se dilatara com o seu engano.
Mas não existe engano algum no amor, que, por o haver, obedece à necessidade da sua essência. Porque, ao descobrir a realidade no duplo sentido do objecto amado e do que ama, a consciência de quem ama não sabe situar essa realidade que a transcende. Se não houvesse engano, não haveria transcendência, porque permaneceríamos sempre encerrados dentro dos mesmos lomites.
(...)Pois o amor que integra a pessoa, agente da sua unidade, condu-la à sua entrega; exige fazer do próprio ser uma oferenda, isso que é tão difícil de dizer hoje: um sacrifício. E este abatimento que há no próprio centro do sacrifício antecipa a morte. O que verdadeiramente ama, aprende a morrer. é uma verdadeira aprendizagem para a morte.
(...) O amor aparecerá perante o olhar do mundo na época moderna como amor-paixão. Mas essa paixão, essas paixões, quando se dão realmente, serão, têm sido sempre, os episódios da sua grande história semi-escondida. Estações necessárias para que o amor possa dar o seu último fruto, para que possa actuar como instrumento de consumação, como fogo que depura e como conhecimento.
María Zambrano, filósofa, tradução de José Bento, ASSÍRIO & ALVIM
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