sexta-feira, 13 de maio de 2011
A MUSA...
«Havia nela como que uma falha,que provinha da exaustão e da deficiência alimentar, dando-lhe um ar furtivo de gazela, que fez cair as apresentações. (...)
Jonh Everett Millais comprendeu a origem do fascínio de Miss Sid. Tinha um corpo selado na tragédia, um apetite sacrificial. "Hei-de pintar esta mulher", pensou. Imaginava-a num cenário de narcisos. Não sabia que estava a vê-la morta.»
Hélia Correia
ADOECER, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010
Jonh Everett Millais comprendeu a origem do fascínio de Miss Sid. Tinha um corpo selado na tragédia, um apetite sacrificial. "Hei-de pintar esta mulher", pensou. Imaginava-a num cenário de narcisos. Não sabia que estava a vê-la morta.»
Hélia Correia
ADOECER, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010
Fragmento do livro ADOECER de HÉLIA CORREIA, a propósito da Musa dos Pré-Rafaelitas ELIZABETH SIDDAL e inspiradora de OFÉLIA de JONH EVERETT MILLAIS
"Lizzie entrou na minha vida muito cedo, sem que eu a conhecesse pelo nome. Era Ofélia e , nos meus dezasseis anos, já eu amava a quantidade de poder que se disfarça numa morte erotizada. Parti pela mão dela para o texto, o que fez com que nunca usufruísse inteiramente de Hamlet. Fiquei sempre na margem do ribeiro e o fim não me deixava começar. O tempo da tragédia convergia com velocidade para aquela imagem e então parava, como a suicida. Lizzie Siddal flutua numa tela e Ofélia é sustentada à superfície sem que as águas deslizem, sem que o resto do que acontece ao afogado ocorra.
Assiste-se, na Tate Gallery, a essa suspensão da narrativa. As palavras de Shakespeare: «Não tardou muito que o seu vestido, tornando-se pesado com as águas que o iam embebendo, arrastasse aquele pobre despojo para a lodosa morte», não se cumprem. É certo que as pessoas têm pressa e se acumulam junto ao quadro, como quem gosta de confirmar uma atoarda. Mas, no momento da contemplação, um novo entendimento se estabelece: uma cerimónia, aquela intimação da arte, uma bolha que envolve o visitante e o pequeno quadro. Dois corpos chegam para o ocultar e há que sentar-se no banquinho em frente, pacientemente, à espera do momento em que o espaço se mostre de novo transponível.
É um momento humilde pois deixamos tudo aquilo que sabemos para trás, como à entrada já deixamos as mochilas.. Não vemos a perícia do pintor, nem a biografia do modelo, nem a massa poética de Shakespeare. O olhar dispensou o pensamento, soltou-se do devir. Podia comparar-se com o olhar de Deus, fora do tempo. Ou o do animal, que não projecta e que não sabe recordar. Mas o que temos neste olhar pertence ao humano, ao que só no humano paralisa e deixa perceber o mal da carne. Millais pintou aquilo que jamais tencionou pintar: o incitamento às emoções necrófilas.»
Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010
Poema de JOÃO BORGES
AS ROSAS DO DESERTO
Foi-nos fatal a descoberta do amor.
Talvez a força do encontro tenha
sido a primeira a destruir-nos.
Houve um tempo em que te falei
das rosas do deserto, sem saber
que seriam elas
a matar a escuridão.
Fomos antes do tempo.
Só isso agora nos perdoa.
Enfrentámos o corpo,
a perda alucinante da inocência.
Hoje conhecemos o isolamento.
Não sei como é a vida sem ti.
Não sei como é a vida.
AS SOMBRAS DE UM CORPO SÓ, Edição do autor, Lisboa, 2011
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