de Godot
Ontem não anoiteceu. Queria ver a lua cheia do teu olhar. Mas não aconteceu. Não sei. Talvez alguém se tenha esquecido. As pessoas estão sempre a esquecer-se de alguma coisa. Estão sempre a varrer a memória. Ontem não anoiteceu. Mas não me importo. Agora estás aqui. É essa a minha certeza. Agora!
Aqui! Aqui! Aqui! Aqui! Aqui! Aqui! Aqui! Aqui! Aqui! Aqui!
Chega-te a mim. Aproxima-te. Deixa que os teus olhos falem com os meus numa língua muda de palavras. Apenas o silêncio. Há tanta coisa que o silêncio pode dizer. O silêncio revela aquilo que a razão oculta. Desnuda o teu pensamento e entra em mim. Faz-me estremecer com o silêncio do teu olhar. Olha para mim. As pessoas já não se olham. Têm pressa. Têm pressa de partir. Têm pressa de chegar. Partir e chegar a algum lugar, mesmo que esse lugar seja um não-lugar qualquer. Eu não tenho pressa. Ou então têm medo. Medo de si próprias. Medo dos outros. Medo da liberdade. Medo de sentir. Medo de viver. Não entendo o medo. Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo! Medo!
Aproxima-te. Quero sentir o calor dos teus lábios roçarem os meus e perder-me na tua respiração ofegante. Beija-me. Beija-me se for esse o teu desejo. Eu não tenho pressa. Posso esperar. Posso esperar por aquilo que ainda não conheço. é como esperar por Godot. É como esperar por um beijo de Godot. Hoje já ninguém tem paciência para esperar. Tu és extensão de mim. Somos todos extensões uns dos outros. Vejo tantos rostos à minha frente. São como as ondas do mar. Um vaivém inquietante que não se questiona. Porquê? Quem sabe porquê? Eu ainda não sei porquê. Penso que já não quero saber porquê. Estou cansada de pensar.
Ontem, quando não anoiteceu, cruzei-me contigo no elevador. Desviaste o olhar com um sorriso húmido. Pensei nas gotas de chuva que acariciam as pétalas das rosas depois de as terem fustigado na tempestade. O veludo das pétalas das rosas é tão macio. Às vezes pensamos tanta coisa ao mesmo tempo. Mergulhamos numa trovoada de pensamentos. Imaginei as tuas carícias perfumadas de pétalas de rosa a suspirarem de prazer na minha pele sedenta. Sempre esta perturbação por conhecer o teu silêncio, essa imensidão que me aquece sem pedir licença. É assim que a tua ausência permanece em mim.
Filipa Aranda