sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Espaço Llansol em Sintra.


Visita ao Espaço Llansol em Sintra. A simpatia da Etelvina Santos e a disponibilidade do João Barrento desdobraram-se em cuidados explicativos sobre os objectos da casa, os livros de eleição da escritora e recordações dos últimos anos de vida do Augusto e da Maria Gabriela. Por razões de trabalho a ausência da Hélia Correia, que em conjunto com João Barrento e Etelvina Santos, desenvolvem um trabalho notório sobre a obra desta escritora. Imagens dos espaços de criação.

O lugar dos objectos íntimos de Llansol : os frascos antigos de família, os cheiros, os pout-pourri, as caixas de louça, o espelho.

Maria Gabriela Llansol: Um Beijo Dado Mais Tarde - Texto de João Borges

O LIVRO DOS PODERES DA CASA

No primeiro Livro de Horas publicado de Maria Gabriela Llansol, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), lemos que, originalmente, a escritora tinha pensado como título 'O Livro dos Poderes do Livro' para o livro que acabou por chamar-se 'A Restante Vida' (1982).
Aquele título ocorreu-me ao terminar, pela segunda vez, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' (1990), que poderia muito bem ser uma espécie de livro sobre os poderes da Casa. Entre 1977 e 1988, Maria Gabriela publicou seis livros essenciais da sua bibliografia, que compõem duas trilogias ligadas entre si: 'Geografia de Rebeldes' ('O Livro das Comunidades', 1977, 'A Restante Vida', 1982 e 'Na Casa de Julho e Agosto', 1984.) e 'O Litoral do Mundo' ('Causa Amante', 1984, 'Contos do Mal Errante', 1986 e 'Da Sebe ao Ser', 1988.). No entanto, se eu tivesse que relacionar 'Um Beijo Dado Mais Tarde' com livros anteriores de Maria Gabriela Llansol, talvez eu o relacionasse mais com os dois diários publicados até aí, 'Um Falcão no Punho' (1985) e 'Finita' (1987): talvez porque, neste romance, mais do que em qualquer outro dos até aí editados, sentimos muito profundamente uma presença da própria Maria Gabriela, que, desta vez, escreve sobre alguns episódios da sua infância, relacionados acima de tudo com a família. Pode parecer demasiado simplista ver assim este livro, no entanto, talvez estejamos na altura de não olhar mais a obra de Llansol como encriptada, e de começarmos a compreender a simplicidade que está depois da compreensão das regras e desvios da sua escrita.
O tema da família de Llansol não surge aqui pela primeira vez. Vale a pena recordar 'E Que Não Escrevia', um dos 'livros' que formava o segundo volume publicado da autora, em 1972, 'Depois de Os Pregos na Erva'. Em 'E Que Não Escrevia', encontramos já aquelas que serão as figuras matriciais para ler 'Um Beijo Dado Mais Tarde': a criança, que será uma projecção de Maria Gabriela, a criada Maria Adélia, o pai e a filha que o pai terá tido com essa criada, e que não chegou a nascer, que, no livro de 1972, se chama 'a irmã uterina'. Não sei se será muito adequado dizer que este livro é uma reescrita do de 1972, mas, sendo que a história é, de alguma forma, partilhada pelos dois, será impossível não notar que os quase vinte anos que separam estes dois textos são relevantes para aquilo que é 'Um Beijo Dado Mais Tarde', no que toca a uma outra fluidez do discurso escrito e a uma maior riqueza de imaginário que também se faz sentir: por assim dizer, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' tem mais elementos do que 'E Que Não Escrevia' e, no entanto, é escrito com maior clareza e maior simplicidade.
Este livro começa com uma imagem deveras violenta e grotesca. Uma cabra é presa a um castanheiro e, de seguida, o homem vem e corta-lhe a língua: mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da-boca, principiou a nascer-lhe,      e ela foi a voz.
(p.7)
A violência do corte da língua física é seguida do nascimento de uma segunda língua que, aqui, é também linguagem. Deste momento, surgem duas figuras tutelares para a restante obra de Llansol, Aossê (Que é Fernando Pessoa.) e a rapariga que temia a impostura da língua, Témia.
A imagem inicial da morte e renascimento da língua é continuado durante a morte de Assafora, tia da narradora, cujo aproximar da morte a leva de volta para a casa da infância, na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa. E assim, depois da morte de Assafora, a casa tem sobre a narradora, enquanto eu central, o poder de lhe devolver o tempo passado e, mais importante ainda, o tempo antes dela nascer. A casa vai sendo esvaziada dos seus móveis e dos seus objectos, alguns que a narradora leva para a sua casa actual, outros que vende em dois lugares distintos, e é no espaço que ali fica que a narradora descobre a sua própria história. Podemos relembrar Gaston Bachelard, que, no seu 'A Poética do Espaço' nos fala do espaço da casa como centros do devaneio que são meios de comunicação entre os homens do sonho. Mais ou menos assim poderíamos ver a casa da Rua Domingos Sequeira. Ela é o meio de comunicação entre o eu que nos conta a história e as figuras que orientarão, de certa forma, essa história. Há várias figuras presentes: Aossê, Johann (Bach), Infausta, Anna Magdalena e também a Jovem Vestindo o Seu Jardim (Que aqui surge pela primeira vez.), entre outras. No entanto, as figuras essenciais para esta história são mesmo Témia e Ana ensiando a ler a Myriam, a Estátua da Leitura.
Isto porque as relações essenciais entre a narradora e as dois elementos do seu passado, Maria Adélia e o pai, são expressas através do ensinar a ler, do aprender da língua, que se desenrola ao mesmo tempo que o medo da impostura dessa língua. E estes dois planos são também uma ponte para o nascimento da própria escrita, que, por si só, parece representar uma voz diferente, quase como uma segunda língua de características específicas
_Com voz mais baixa do que ler.
 _Com a voz de escrever.
(p.59)
Assim, a aprendizagem dessas vozes, de ler e de escrever, é o nascimento de um mundo, que se deseja, mas que, ao mesmo tempo se teme. Os objectos da casa, de alguma forma, acabam por responder à questão da escrita, ora aderindo a ela ou ora parecendo alinhar-se com o medo dela
um grande carneiro deitado, que eu julgava paralítico (...) move-se para ler
 (p.25)
Palonsa Gazela (...) Ela era, finalmente, o corredor que, no meu quarto quieto, desorientava, nas suas voltas, o meu coração e o meu texto
 (p.102)
Enquanto Ana ensina a ler a Myriam, a narradora vai escrevendo a sua casa, e o texto escrito é onde a casa se torna um espaço de confluência de tempos e de episódios, reunindo assim os homens do sonho de que Bachelard falava. A figura do pai, como Quimera ou Filipe, é uma espécie de figura que da sombra irradiasse, trazendo consigo toda a sorte de fantasmas já que, no fundo, todo este livro é construído precisamente em torno desses fantasmas, o que nos leva, de certa forma, de volta ao violento início deste livro.
__________ o homem só vulto esteve aqui hoje, com a sua imagem infeliz. (...) Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às costas um saco onde vai deitando todos os restos de misericórdia que há por aqui, incluindo a misericórdia por nós que brota de uma  fonte algures, ignore onde. (...) Há-de voltar esta noite, enquanto eu dormir, para entrar no meu sonho. Transporta também o que for intimamente nosso, e que lhe tivermos entregue, por bem.
(pp 97,98)
À medida que a história vai sendo escrita, percebemos que a relação essencial dela, e que, na verdade, se transpõe pela imagem da Estátua da Leitura, é aquela entre a criança e a criada, em que o amor da segunda pela primeira, espécie de compensação pelo bastardo perdido que é projectado na criança legítima, é compensado pela primeira através do ensinar a ler. E a leitura toma o lugar do amor, ou torna-se um veículo deste.
Quase no final do livro, Ana parte da Estátua da Leitura, e esta torna-se vazia. O tempo de abandonar de vez a casa que testemunha toda a história aproxima-se e, deslocando-se nos vários tempos que estão a ser escritos, a narradora recolhe os últimos objectos que quererá guardar para si, e este momento parece trazer de volta a descoberta da figura do homem como iniciador do Universo, mas também como origem da perturbação, uma vez mais questões que são explicadas através da imagem da casa:
Sob o olhar masculino, girava uma casa dentro de outra - um princípio do Universo onde estava em vias de expandir-se o verde inicial. Ele só podia ser teu companheiro filosófico e meu amante.
Nesta atmosfera verde, de possibilidades de outras cores infinitas,
descubro o afecto do negro.
(p.107)
e, mais à frente, esse afecto do negro que pode ser símbolo de uma espécie de sofrimento, parece ser especificado por um dos últimos símbolos da história da casa, o lenço da noite:
 
Apanho o lenço contemplando o sangue e as lágrimas que se esboçam nas dobras e secam sob o calor da noite,     que a noite exala. Sob o lenço da noite, sei que me oriento para o círculo do beijo que a jovem deposita na testa de meu pai___________ um Rei qualquer de papel.
_______________ e sofro, com receio de que o vento sopre, e leve o lenço onde eu me destino a ser semente de um outro Eu que ninguém delimita ou guarda.
(p.111)
como vemos, desafiando a percepção do tempo, a história termina quando o Eu está para nascer naquela casa.
Quase no final do livro, encontramos ainda um surpreendente texto, que surge de uma forma muito orgânica a todas as questões do livro, e que se prende com a própria escrita.
Grande parte dos poetas escrevem, a certa altura, a sua "arte poética", que é a sua explicação de como escrevem, de como fazem a sua poesia. Os prosadores também o fazem, senão nos próprios livros, muitas vezes em entrevista.
Este texto será uma das mais belas, mais complexas e mais completas explicações de como nasce e se transforma o texto de Maria Gabriela Llansol, em que as regras são constantemente redefinidas, tornando-se esse desvio uma nova regra:
 Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os meus olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho muito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever; depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permite. O olhar atento vai voltando a si mesmo e, então, o que eu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pontos. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feixes incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos.
Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.
(pp. 112,113)

13 de Outubro de 2011 –Postagem do  blogue Camel & Coca Cola  http://camelecocacola.blogspot.com