quinta-feira, 20 de agosto de 2009
Poema de JOÃO BORGES
Cada pessoa enrola
um pouco mais
o pano preto da noite
à volta do meu corpo.
Agora, é lentamente
que me matam
e eu deixo. Fico parado
a sorrir, sem saber porquê.
Posso amar ou enlouquecer
quando te entregas,
sem rodeios,
na solidão das cidades.
Adormecidos no chão,
o brilho da pele,
nas gavetas o silêncio.
Escrevemos na parede,
sobre a cama,
que seria para sempre.
Brilho no Escuro, revista de poesia, nº1, edições anjo da guarda, Porto, 2009
Cada pessoa enrola
um pouco mais
o pano preto da noite
à volta do meu corpo.
Agora, é lentamente
que me matam
e eu deixo. Fico parado
a sorrir, sem saber porquê.
Posso amar ou enlouquecer
quando te entregas,
sem rodeios,
na solidão das cidades.
Adormecidos no chão,
o brilho da pele,
nas gavetas o silêncio.
Escrevemos na parede,
sobre a cama,
que seria para sempre.
Brilho no Escuro, revista de poesia, nº1, edições anjo da guarda, Porto, 2009
Poema de JOSÉ MIGUEL SILVA
Ameaças
Aviso-te, velhaca, mais uma vez:
mete-te com os da tua laia, ladra,
que me levaste da mesa os copos
por onde bebia e deixaste na alma
as cadeiras frias. Arrepende-te, Morte,
e devolve-me as veias, os amigos,
as sementes de papoila. Restitui-me o intacto
futuro da minha juventude, a fotografia
onde cabíamos todos e a minha solidão
era uma onda quebrada nas pedras de gelo.
Traz-me de volta o silêncio do Jaime,
o cheiro a serrim, traz-me o Leal e ainda
o Artur, com todas as músicas desse verão,
o nó da fortuna, de '89. Não te esqueças
também do Luís, deixou por contar
o resto da história. Nem do Joel,
o mais desgraçado rapaz,
que me confessou um dia haver morrido
sem nunca ter sido beijado.
Fazes-me isso, e perdoo-te o resto. Mas
se torno a ver-te a menos de quinze passos
dos meus - eu juro que te mato.
Ulisses já não mora aqui, & etc, 2002
Ameaças
Aviso-te, velhaca, mais uma vez:
mete-te com os da tua laia, ladra,
que me levaste da mesa os copos
por onde bebia e deixaste na alma
as cadeiras frias. Arrepende-te, Morte,
e devolve-me as veias, os amigos,
as sementes de papoila. Restitui-me o intacto
futuro da minha juventude, a fotografia
onde cabíamos todos e a minha solidão
era uma onda quebrada nas pedras de gelo.
Traz-me de volta o silêncio do Jaime,
o cheiro a serrim, traz-me o Leal e ainda
o Artur, com todas as músicas desse verão,
o nó da fortuna, de '89. Não te esqueças
também do Luís, deixou por contar
o resto da história. Nem do Joel,
o mais desgraçado rapaz,
que me confessou um dia haver morrido
sem nunca ter sido beijado.
Fazes-me isso, e perdoo-te o resto. Mas
se torno a ver-te a menos de quinze passos
dos meus - eu juro que te mato.
Ulisses já não mora aqui, & etc, 2002
Dois poemas de ROSA ALICE BRANCO
Palmeiras inclinadas. Ao longe o casario. É na água que o vejo, que sinto a cidade acordar.
Mais uma mulher que olha o rio. Tenho as mãos desatadas, os pés a caminho. As margens alargam quando estou perto, mas do outro lado as mulheres não reflectem o rosto ou mesmo a sua ausência.
São matéria do verbo fazer e caminham junto ao chão, na curva da noite para o marido. Gastos os sonhos por usar. Descorado pano que ficou ao sol. Nelas a cidade não acorda, não regressam os barcos à tardinha.
Vêm pela beira dos caminhos, a tristeza amável, a raiva cega e às vezes um sorriso que sacode os ombros porque até a tristeza tem um custo, uma esperança na sola do sapato. Vejo-as todos os dias e é como se a vida me atasse os pés, me anelasse os dedos. Como eu, outras mulheres olhando o rio, desbordando o pano, descozendo a sopa. Ama-se o homem que vira a esquina connosco e sabe que não podemos fingir que a ferida está fechada. As casas acendem.
E na água que vejo a sua luz descendo o rio. As mulheres passam em silêncio para as casas, atravessam a pele — deixam um retrato puído nas entranhas. Olho o rio e não sei fingir que finjo tanto mar.
Vozes e Olhares no Feminino, Edições Afrontamento, Porto 2001 p. 147
Palmeiras inclinadas. Ao longe o casario. É na água que o vejo, que sinto a cidade acordar.
Mais uma mulher que olha o rio. Tenho as mãos desatadas, os pés a caminho. As margens alargam quando estou perto, mas do outro lado as mulheres não reflectem o rosto ou mesmo a sua ausência.
São matéria do verbo fazer e caminham junto ao chão, na curva da noite para o marido. Gastos os sonhos por usar. Descorado pano que ficou ao sol. Nelas a cidade não acorda, não regressam os barcos à tardinha.
Vêm pela beira dos caminhos, a tristeza amável, a raiva cega e às vezes um sorriso que sacode os ombros porque até a tristeza tem um custo, uma esperança na sola do sapato. Vejo-as todos os dias e é como se a vida me atasse os pés, me anelasse os dedos. Como eu, outras mulheres olhando o rio, desbordando o pano, descozendo a sopa. Ama-se o homem que vira a esquina connosco e sabe que não podemos fingir que a ferida está fechada. As casas acendem.
E na água que vejo a sua luz descendo o rio. As mulheres passam em silêncio para as casas, atravessam a pele — deixam um retrato puído nas entranhas. Olho o rio e não sei fingir que finjo tanto mar.
Vozes e Olhares no Feminino, Edições Afrontamento, Porto 2001 p. 147
POR UM DIA DE INVERNO
O homem do talho morreu. Deixou mulher,
dois filhos e carne fresca estendida como roupa
no varal. Lembro-me do orgulho com que passava a mão
pelo cachaço. Lembro-me da peixeira
que nos acordava de manhã «peixe fresco
tão vivinho» e como era caro o estertor do linguado.
Mesmo as alfaces são frescas depois de mortas,
o molho de nabiças, até de uma cenoura esperamos
que seja fresca ali no prato com o linguado rigorosamente
apartado das espinhas. Tão fresco! O homem do talho
vai a enterrar depois do almoço. Agora jaz na capela mortuária
de rosto descoberto para a família e os curiosos. O homem
do talho morreu cansado, mas agora está fresco:
foi abatido ontem, será embalado às quatro da tarde.
Da Alma e dos Espíritos Animais, Porto, Campo das Letras, 2001
O homem do talho morreu. Deixou mulher,
dois filhos e carne fresca estendida como roupa
no varal. Lembro-me do orgulho com que passava a mão
pelo cachaço. Lembro-me da peixeira
que nos acordava de manhã «peixe fresco
tão vivinho» e como era caro o estertor do linguado.
Mesmo as alfaces são frescas depois de mortas,
o molho de nabiças, até de uma cenoura esperamos
que seja fresca ali no prato com o linguado rigorosamente
apartado das espinhas. Tão fresco! O homem do talho
vai a enterrar depois do almoço. Agora jaz na capela mortuária
de rosto descoberto para a família e os curiosos. O homem
do talho morreu cansado, mas agora está fresco:
foi abatido ontem, será embalado às quatro da tarde.
Da Alma e dos Espíritos Animais, Porto, Campo das Letras, 2001
Poema de José Miguel Silva
Pelos beijos que poupei,
pelas pratas empenhadas,
pelas horas que não sei
onde foram derrubadas;
pelo breve candeeiro
que me tem encandeado,
pela falta de dinheiro
para o supermercado;
pela fuga dos amigos,
pela música calada,
pelos dias resumidos
ao encontro com o nada;
pelo pó da autoria
no fundo das estantes,
e pela miopia
dos soluços dominantes;
pela tinta nos meus dedos,
pelos passos sem destino,
pelos tojos e penedos
no meio do caminho;
pela vida dicionária,
exangue de ilusão,
e a arte solitária
de morrer do coração.
José Miguel Silva, in O Sino de Areia, Gilgamesh, Agosto de 1999.
Pelos beijos que poupei,
pelas pratas empenhadas,
pelas horas que não sei
onde foram derrubadas;
pelo breve candeeiro
que me tem encandeado,
pela falta de dinheiro
para o supermercado;
pela fuga dos amigos,
pela música calada,
pelos dias resumidos
ao encontro com o nada;
pelo pó da autoria
no fundo das estantes,
e pela miopia
dos soluços dominantes;
pela tinta nos meus dedos,
pelos passos sem destino,
pelos tojos e penedos
no meio do caminho;
pela vida dicionária,
exangue de ilusão,
e a arte solitária
de morrer do coração.
José Miguel Silva, in O Sino de Areia, Gilgamesh, Agosto de 1999.
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