Acrílico s/tela, 80x120cm, 2010
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Texto de JOÃO BORGES para o catálogo da exposição BROKEN HEARTS BLOODY HEARTS de GRAÇA MARTINS.
Os retratos falam sempre a verdade, as pessoas reais não.
Agustina Bessa-Luís
Agustina Bessa-Luís
Estamos perante um universo de desencontros, nos vários sentidos que esta palavra pode ter. Desencontros com as convenções sociais, o desencontro com o consciente que representa o sono, o desencontro entre pessoas e o desencontro próprio, da vida quando interceptada pela morte, em verdadeiras situações limite. E o que une estes desencontros, senão aquilo que temos dentro de nós: afectos, sentimentos, ideias, defesas? É este um dos pontos mais interessantes da pintura de Graça Martins: numa pose quase psicanalítica, ela mostra-nos como o que está dentro de nós pode salvar-nos ou destruir-nos, e não há nada mais violento. Refira-se o objecto Sweet Dreams Are Made Of This, uma travesseira que encerra, mais do que os pesadelos, toda a canga inconsciente que o indivíduo carrega.
Os elementos simbólicos desta pintura são, por isso, formas de tornar visível, aquilo que não tem rosto, fazem a ponte entre o que é visto e quem vê, pois, como bem apontou Luísa Dacosta, o mundo existe porque tu lhe emprestaste o teu rosto (1).
Graça Martins é, então, uma pintora que se recusa a conceptualismos, a grandes e intrincadas teorias. Escolhe algo de mais profundo e profundamente difícil: dá um rosto ao que não o tem, reconhecendo a essas entidades invisíveis a sua verdadeira força. Por isso encontramos, nesta série, como em todas as do percurso desta pintora as flores, escolhidas de acordo com o pendor ora romântico ora erótico, mas sempre dramático; os pássaros, símbolos por excelência da liberdade e da transformação; as palavras que nos abrem segundos sentidos para as imagens; os corações, numa forma associada ao catolicismo, remetendo para o significado original da paixão: o do sofrimento; o arame farpado que aponta para o carrasco dentro de nós. E interessa referir tudo isto para reforçar que em Graça Martins não encontramos um virtuosismo que se esgota em si mesmo, antes nos fornece elementos para uma compreensão profunda de imagens que são, por si só, extremamente complexas.
Ainda sobre os elementos desta pintura interessa falar do retrato: ele foi sempre essencial na pintura de Graça Martins, mas note-se que não somos incitados a olhar estas telas como retratos e nem os seus títulos nos dão essa indicação. Isto porque esta pintura não procura evidenciar um nome ou a imagem de determinada pessoa, mas sim encontrar algo de mais profundo, de mais verdadeiro. É essa a grande pesquisa de Graça Martins: a da verdade das pessoas, o avesso dos seus gestos e dos seus sorrisos, desmontando os detalhes, a pintora chega ao lugar onde a máscara, seja ela hipocrisia ou defesa, não existe. Por isso, estas imagens resultam numa revelação da verdade íntima de cada um, e só o atingir dessa verdade justifica que estas pinturas nos confrontem com indivíduos em situações de uma fragilidade desarmada.
Parece-me ser esta a razão por que a pintura de Graça Martins tem essa relação tão estreita com os sentimentos no seu estado mais natural. Não há aqui uma procura da beleza de sentimentos, de um final feliz: com o próprio título da exposição, Graça Martins reconhece que, como dizia certa cantora, Hearts that don’t love can’t be broken (2). E assim nos confrontamos com dois momentos essenciais: o acto de amar profundamente, e o acto de perder, aproximando-se assim Eros de Thanatos, os dois pontos essenciais da psicanálise, e de toda a grande poesia. Eis por que me sinto tentado em, por vezes, sobre Graça Martins, me parecer mais adequado falar de poesia do que propriamente de pintura.
João Borges
(1) Luísa Dacosta, Corpo Recusado, 1985
(2) Delta Goodrem, Bare Hands, 2007
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