terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Poema de Isabel de Sá - publicado na Antologia Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa - O binómio de Newton & a Vénus de Milo - Fundação Champalimaud, 2011

NÃO SE PASSA NADA

Nada de cinismo
a vida é boa
ainda não há guerra
nem peste nem fome.

Ninguém cospe no teu rosto.

O fruto cai da árvore
a fêmea é fertil
o macho  vigoroso
as crias alegram o prado
e o sol brilha brilha.

A ciência não pára
de nos surpreender
e dar conforto:
nascer crescer ser velho
e falecer. Moléculas
átomos e neutrões
amparam-nos na queda
dizem-nos o que é o amor.

O amor também é feito
de vermes e bactérias.
A sua chama
transforma os nossos corpos
na mais bela cinza.




O binómio de Newton & a Vénus de Milo, Edição Aletheia, Lisboa, 2011. Fundação Champalimaud

Poema de João Borges - publicado na Antologia Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa - O binómio de Newton & a Vénus de Milo - Fundação Champalimaud, 2011

A CIÊNCIA CONTINUA


Mudámos de ano, de década,
de século, de milénio
e não mudou nada:
a casa em frente é ainda bege,
a rua sinuosa
e as pessoas mascaradas.

O dia termina luminoso
no muro coberto de glicínias,
no passeio onde calcorreei
magma do cansaço.

A ciência continua, prolonga a vida
e invade os dias. Ainda não se descobriu
cura para o cancro
nem as pessoas estão confortáveis
com o silêncio
ou a realidade da morte.

Porto, 25 de Junho de 2010




O binómio de Newton & a Vénus de Milo, Edição Aletheia, Lisboa, 2011. Fundação Champalimaud

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Espaço Llansol em Sintra.


Visita ao Espaço Llansol em Sintra. A simpatia da Etelvina Santos e a disponibilidade do João Barrento desdobraram-se em cuidados explicativos sobre os objectos da casa, os livros de eleição da escritora e recordações dos últimos anos de vida do Augusto e da Maria Gabriela. Por razões de trabalho a ausência da Hélia Correia, que em conjunto com João Barrento e Etelvina Santos, desenvolvem um trabalho notório sobre a obra desta escritora. Imagens dos espaços de criação.

O lugar dos objectos íntimos de Llansol : os frascos antigos de família, os cheiros, os pout-pourri, as caixas de louça, o espelho.

Maria Gabriela Llansol: Um Beijo Dado Mais Tarde - Texto de João Borges

O LIVRO DOS PODERES DA CASA

No primeiro Livro de Horas publicado de Maria Gabriela Llansol, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), lemos que, originalmente, a escritora tinha pensado como título 'O Livro dos Poderes do Livro' para o livro que acabou por chamar-se 'A Restante Vida' (1982).
Aquele título ocorreu-me ao terminar, pela segunda vez, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' (1990), que poderia muito bem ser uma espécie de livro sobre os poderes da Casa. Entre 1977 e 1988, Maria Gabriela publicou seis livros essenciais da sua bibliografia, que compõem duas trilogias ligadas entre si: 'Geografia de Rebeldes' ('O Livro das Comunidades', 1977, 'A Restante Vida', 1982 e 'Na Casa de Julho e Agosto', 1984.) e 'O Litoral do Mundo' ('Causa Amante', 1984, 'Contos do Mal Errante', 1986 e 'Da Sebe ao Ser', 1988.). No entanto, se eu tivesse que relacionar 'Um Beijo Dado Mais Tarde' com livros anteriores de Maria Gabriela Llansol, talvez eu o relacionasse mais com os dois diários publicados até aí, 'Um Falcão no Punho' (1985) e 'Finita' (1987): talvez porque, neste romance, mais do que em qualquer outro dos até aí editados, sentimos muito profundamente uma presença da própria Maria Gabriela, que, desta vez, escreve sobre alguns episódios da sua infância, relacionados acima de tudo com a família. Pode parecer demasiado simplista ver assim este livro, no entanto, talvez estejamos na altura de não olhar mais a obra de Llansol como encriptada, e de começarmos a compreender a simplicidade que está depois da compreensão das regras e desvios da sua escrita.
O tema da família de Llansol não surge aqui pela primeira vez. Vale a pena recordar 'E Que Não Escrevia', um dos 'livros' que formava o segundo volume publicado da autora, em 1972, 'Depois de Os Pregos na Erva'. Em 'E Que Não Escrevia', encontramos já aquelas que serão as figuras matriciais para ler 'Um Beijo Dado Mais Tarde': a criança, que será uma projecção de Maria Gabriela, a criada Maria Adélia, o pai e a filha que o pai terá tido com essa criada, e que não chegou a nascer, que, no livro de 1972, se chama 'a irmã uterina'. Não sei se será muito adequado dizer que este livro é uma reescrita do de 1972, mas, sendo que a história é, de alguma forma, partilhada pelos dois, será impossível não notar que os quase vinte anos que separam estes dois textos são relevantes para aquilo que é 'Um Beijo Dado Mais Tarde', no que toca a uma outra fluidez do discurso escrito e a uma maior riqueza de imaginário que também se faz sentir: por assim dizer, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' tem mais elementos do que 'E Que Não Escrevia' e, no entanto, é escrito com maior clareza e maior simplicidade.
Este livro começa com uma imagem deveras violenta e grotesca. Uma cabra é presa a um castanheiro e, de seguida, o homem vem e corta-lhe a língua: mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da-boca, principiou a nascer-lhe,      e ela foi a voz.
(p.7)
A violência do corte da língua física é seguida do nascimento de uma segunda língua que, aqui, é também linguagem. Deste momento, surgem duas figuras tutelares para a restante obra de Llansol, Aossê (Que é Fernando Pessoa.) e a rapariga que temia a impostura da língua, Témia.
A imagem inicial da morte e renascimento da língua é continuado durante a morte de Assafora, tia da narradora, cujo aproximar da morte a leva de volta para a casa da infância, na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa. E assim, depois da morte de Assafora, a casa tem sobre a narradora, enquanto eu central, o poder de lhe devolver o tempo passado e, mais importante ainda, o tempo antes dela nascer. A casa vai sendo esvaziada dos seus móveis e dos seus objectos, alguns que a narradora leva para a sua casa actual, outros que vende em dois lugares distintos, e é no espaço que ali fica que a narradora descobre a sua própria história. Podemos relembrar Gaston Bachelard, que, no seu 'A Poética do Espaço' nos fala do espaço da casa como centros do devaneio que são meios de comunicação entre os homens do sonho. Mais ou menos assim poderíamos ver a casa da Rua Domingos Sequeira. Ela é o meio de comunicação entre o eu que nos conta a história e as figuras que orientarão, de certa forma, essa história. Há várias figuras presentes: Aossê, Johann (Bach), Infausta, Anna Magdalena e também a Jovem Vestindo o Seu Jardim (Que aqui surge pela primeira vez.), entre outras. No entanto, as figuras essenciais para esta história são mesmo Témia e Ana ensiando a ler a Myriam, a Estátua da Leitura.
Isto porque as relações essenciais entre a narradora e as dois elementos do seu passado, Maria Adélia e o pai, são expressas através do ensinar a ler, do aprender da língua, que se desenrola ao mesmo tempo que o medo da impostura dessa língua. E estes dois planos são também uma ponte para o nascimento da própria escrita, que, por si só, parece representar uma voz diferente, quase como uma segunda língua de características específicas
_Com voz mais baixa do que ler.
 _Com a voz de escrever.
(p.59)
Assim, a aprendizagem dessas vozes, de ler e de escrever, é o nascimento de um mundo, que se deseja, mas que, ao mesmo tempo se teme. Os objectos da casa, de alguma forma, acabam por responder à questão da escrita, ora aderindo a ela ou ora parecendo alinhar-se com o medo dela
um grande carneiro deitado, que eu julgava paralítico (...) move-se para ler
 (p.25)
Palonsa Gazela (...) Ela era, finalmente, o corredor que, no meu quarto quieto, desorientava, nas suas voltas, o meu coração e o meu texto
 (p.102)
Enquanto Ana ensina a ler a Myriam, a narradora vai escrevendo a sua casa, e o texto escrito é onde a casa se torna um espaço de confluência de tempos e de episódios, reunindo assim os homens do sonho de que Bachelard falava. A figura do pai, como Quimera ou Filipe, é uma espécie de figura que da sombra irradiasse, trazendo consigo toda a sorte de fantasmas já que, no fundo, todo este livro é construído precisamente em torno desses fantasmas, o que nos leva, de certa forma, de volta ao violento início deste livro.
__________ o homem só vulto esteve aqui hoje, com a sua imagem infeliz. (...) Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às costas um saco onde vai deitando todos os restos de misericórdia que há por aqui, incluindo a misericórdia por nós que brota de uma  fonte algures, ignore onde. (...) Há-de voltar esta noite, enquanto eu dormir, para entrar no meu sonho. Transporta também o que for intimamente nosso, e que lhe tivermos entregue, por bem.
(pp 97,98)
À medida que a história vai sendo escrita, percebemos que a relação essencial dela, e que, na verdade, se transpõe pela imagem da Estátua da Leitura, é aquela entre a criança e a criada, em que o amor da segunda pela primeira, espécie de compensação pelo bastardo perdido que é projectado na criança legítima, é compensado pela primeira através do ensinar a ler. E a leitura toma o lugar do amor, ou torna-se um veículo deste.
Quase no final do livro, Ana parte da Estátua da Leitura, e esta torna-se vazia. O tempo de abandonar de vez a casa que testemunha toda a história aproxima-se e, deslocando-se nos vários tempos que estão a ser escritos, a narradora recolhe os últimos objectos que quererá guardar para si, e este momento parece trazer de volta a descoberta da figura do homem como iniciador do Universo, mas também como origem da perturbação, uma vez mais questões que são explicadas através da imagem da casa:
Sob o olhar masculino, girava uma casa dentro de outra - um princípio do Universo onde estava em vias de expandir-se o verde inicial. Ele só podia ser teu companheiro filosófico e meu amante.
Nesta atmosfera verde, de possibilidades de outras cores infinitas,
descubro o afecto do negro.
(p.107)
e, mais à frente, esse afecto do negro que pode ser símbolo de uma espécie de sofrimento, parece ser especificado por um dos últimos símbolos da história da casa, o lenço da noite:
 
Apanho o lenço contemplando o sangue e as lágrimas que se esboçam nas dobras e secam sob o calor da noite,     que a noite exala. Sob o lenço da noite, sei que me oriento para o círculo do beijo que a jovem deposita na testa de meu pai___________ um Rei qualquer de papel.
_______________ e sofro, com receio de que o vento sopre, e leve o lenço onde eu me destino a ser semente de um outro Eu que ninguém delimita ou guarda.
(p.111)
como vemos, desafiando a percepção do tempo, a história termina quando o Eu está para nascer naquela casa.
Quase no final do livro, encontramos ainda um surpreendente texto, que surge de uma forma muito orgânica a todas as questões do livro, e que se prende com a própria escrita.
Grande parte dos poetas escrevem, a certa altura, a sua "arte poética", que é a sua explicação de como escrevem, de como fazem a sua poesia. Os prosadores também o fazem, senão nos próprios livros, muitas vezes em entrevista.
Este texto será uma das mais belas, mais complexas e mais completas explicações de como nasce e se transforma o texto de Maria Gabriela Llansol, em que as regras são constantemente redefinidas, tornando-se esse desvio uma nova regra:
 Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os meus olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho muito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever; depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permite. O olhar atento vai voltando a si mesmo e, então, o que eu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pontos. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feixes incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos.
Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.
(pp. 112,113)

13 de Outubro de 2011 –Postagem do  blogue Camel & Coca Cola  http://camelecocacola.blogspot.com

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Alguns dos livros de Maria Gabriela Llansol, publicados nos anos 80, pela editora Rolim e com capas criadas por mim (Graça Martins)

A cozinha da escritora. Pormenores como a planta Filomena do Nó e o livro Um Falcão no Punho, com capa e design gráfico da minha autoria.

Uma sala de leitura no Espaço Llansol, em Sintra. Livros e mobiliário da escritora.

Maria Olhuda

Jodoigne, 12 de Dezembro de 1976.

Envolvo-me
para me aquecer,
em mantas textuais e animais:
Jade, Herman Hesse, Rilke, Proust, os livros deste fim de ano; deitei-me na cama do quarto que não partilho com o Augusto; pus Maria Olhuda, a boneca de trapos que comprei em Lovaina, quando ainda habitava a mansarda da rua de Tirlemont, ao pé de mim.

(Finita, 131)

A boneca Juta - Maria Gabriela Llansol

...Juta, uma boneca da infância da minha tia Assafora, de há quase cem anos; mudei-lhe o nome para Miosótis e, ao querer lavá-la com algodão embebido em alcool, tirei-lhe o verniz do peito...


(Um beijo Dado Mais Tarde, 72)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O local onde Maria Gabriela Llansol escrevia, rodeada dos seus objectos , que tanto a motivaram. A boneca Juta de vestido amarelo junto de outras irmãs e, ao fundo do lado direito, a Maria Olhuda...


Interior de uma das salas da ultima casa de Maria Gabriela Llansol.

Páginas manuscritas do 1º Diário de Maria Gabriela Llansol.

Diários inéditos de Maria Gabriela Llansol, em depósito para consulta, no Espaço Llansoniano, em Sintra.

MARIA GABRIELA LLANSOL : Um Arco Singular, Livro de Horas II - Texto de JOÃO BORGES

SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA A ESCREVER
Maria Gabriela Llansol não é uma autora de fácil leitura. Seria interessante quantificar o trabalho crítico já desenvolvido sobre os seus livros (1). Não me presto a este trabalho, mas as críticas e ensaios com que ocasionalmente me tenho cruzado, mostram que as leituras possíveis de Llansol são tantas quantos leitores houver, ou até mais, porque o mesmo leitor não consegue ter apenas uma leitura desta obra. Acontece assim com toda a grande literatura, mas a natureza do texto Llansoliano é particularmente incitante a esta situação.
Falecida a autora em 2008, livros inéditos continuam e, esperemos, continuarão, a ser publicados. É importante que assim seja, pois cada novo livro é mais uma porta para um universo que pode ser fechado, mas não é blindado, e nele podemos penetrar através da leitura.
O projecto da série de Livros de Horas foi o último da autora, sendo o primeiro destes, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), o livro pensado por Llansol para suceder a 'Os Cantores de Leitura' (2007).
O presente 'Um Arco Singular: Livro de Horas II' é pois o segundo volume desta série, cobrindo os anos de 1977 e 1978, passados em Jodoigne.
É com bastante pertinência que João Barrento e Maria Etelvina Santos assinalam na introdução algumas distinções entre os dois Livros de Horas até agora publicados. Por um lado predominam registos tendencialmente mais pessoais (por vezes mesmo íntimos) do que no primeiro volume. (...) Por outro lado, põe-se mais à vista  a oficina de Llansol, sobretudo no que se refere ao trabalho de entrosamento da experiência com a narração e a escrita (pags 14,15).
Dois livros se encontram aqui em formação: 'A Restante Vida' (1982) e 'Na Casa de Julho e Agosto' (1984), segundo e terceiro volumes da trilogia Geografia de Rebeldes.
'Um Arco Singular' será, e aqui retorno à ideia da abertura do mundo fechado, uma excelente leitura a fazer paralelamente à destes livros, em particular de 'Na Casa de Julho e Agosto'. Aqui encontramos diversos registos das pesquisas de Llansol sobre as beguinas e a alquimia -dois universos que em muito definem o livro de 1984 -e também a aproximação, que se dá a nível de uma intimidade reflexiva, às personagens que integram os livros -caso de Luís M., das Damas do Amor Completo e de Hadewijch. A informação que temos aqui sobre estes assuntos menos comuns, pelo menos na cultura portuguesa, e as aproximações de Llansol às suas figuras podem, portante, ser boas formas de acedermos à génese dos livros que a escritora desenvolvia à data, e também uma forma de perceber a sua origem -o momento em que estas figuras e estes universos chegam à escrita de Maria Gabriela Llansol (2).
Os processos são complexos e por vezes demorados, mas -por isso mesmo -extremamente fiéis ao que terá sido a dinâmica de escrita dos livros. Tão fiéis que, não raras vezes, a fulgurância destes escritos diarísticos é capaz de nos surpreender, de nos comover.
É aqui que entra outra característica que me parece crucial nestes Livros de Horas e que é o seu valor enquanto texto isolado. Ou seja, se bem que a leitura de 'Um Arco Singular' seja um bom paralelo aos dois livros cuja escrita acompanha, é importante que não se pense que a leitura do diário é mero complemento. Pelo contrário, estes textos demonstram-se auto-suficientes e, na maior parte das vezes, acabados. Ainda que a escrita llansoliana tenha sido sempre pródiga em assumir o fragmentário e dele aproveitar as melhores potencialidades, muitos destes textos são realmente textos acabados, dispensando qualquer outro apoio para a leitura.
Voltando ao adequado apontamento dos introdutores, 'Um Arco Singular' também dá uma visão da vida pessoal de Maria Gabriela Llansol. São raros os textos realmente íntimos, mas muito menos raros são os textos que nos dão uma perspectiva do quotidiano da escritora. Não se trata de textos confessionais, mas, na maioria dos casos, de textos bastante analíticos sobre as condição em que, à data, viviam Llansol e o marido, Augusto Joaquim. Dentro deste tema encontramos as dificuldades económicas, os crescentes problemas na Quinta de Jacob, as pesquisas de Llansol sobre a sua família, e ainda alguns trabalhos, como cozer o pão ou costurar. E se em 'Uma Data em Cada Mão' a situação editorial de Llansol não lhe merecia grandes comentários, 'Um Arco Singular' contraria essa tendência. Recorde-se que o diário anterior inicia em 1972, um ano antes da edição de 'Depois de Os Pregos na Erva', e a ausência de anotações sobre ela pode causar alguma estranheza (Além de Llansol ter assegurado os custos da edição na Afrontamento, representa também o encontrar de um editor após onze anos sem publicar.), talvez isso se possa explicar pelo facto de Llansol não ter dado particular importância a esse livro -dos três textos que o compõem, apenas um foi reeditado.
Neste segundo livro, encontramos já em fase de edição 'O Livro das Comunidades' (1977), e com a edição, não só análises da situação editorial como até cartas ao editor, a antologiadores, a amigos, família e críticos; e ainda algumas notas sobre reacções ao livro, particularmente a primeira de duas críticas de João Gaspar Simões.
Um outro assunto recorrente neste Livro de Horas é o das leituras de Llansol. Talvez este assunto possa ser um meio-termo entre a escrita e o quotidiano da autora. Porque se a leitura preenche uma considerável parte do dia-a-dia de que o livro dá conta, a leitura muitas vezes é fonte de reflexão -que pode ou não ter parte nos romances em formação  -e também recolha de informação necessária para a escrita. Assim encontramos autores que não têm uma relação especial com os livros que Llansol escrevia, caso de Katherine Mansfield ou Virginia Woolf; e também outros que são procurados pela informação que fornecem, caso de Henri Corbin, Regine Pernoud, Julius Evola, entre muitos outros.
A escrita deste diário é também em parte paralela a 'Finita' (1987), segundo diário publicado em vida pela autora, que cobre os anos de 1974 a 1977. Uma comparação nem muito profunda entre os dois livros, partindo do princípio que 'Finita' é um conjunto seleccionado por Llansol de cadernos como os que dão origem à nova série, pode elucidar-nos sobre as diferenças entre os três diários editados em vida e estes, que se prendem essencialmente com a questão do texto acabado. De certa forma, 'Finita' tem também uma certa presença em 'Um Arco Singular'.
Acima de tudo, este livro dá-nos a observar uma mulher que luta pela sua escrita -por descobri-la, por formulá-la, por solidificá-la. E daí nos fica também a consciência de que foi essa a ocupação e a preocupação de Maria Gabriela Llansol. O título deste volume, seleccionado pelos organizadores, é sugerido a Llansol pela leitura de Rilke. Porém, a mim fez-me pensar na famosa Arte Poética II de Sophia de Mello Breyner Andresen: O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos (3). O mesmo podemos dizer do texto de Maria Gabriela Llansol.

NOTAS:
(1) O presente texto tem data de 8 de Outubro de 2010. Nas Terceiras Jornadas Llansolianas, em Sintra, a 24 e 25 de Setembro de 2011, foi editado um 'Caderno de Leituras' (ed. Mariposa Azual) que recolhe alguns textos críticos publicados sobre a autora, particularmente nos livros em que está presente a temática da Europa.
(2) Também nas Terceiras Jornadas Llansolianas foi lançado o livro/álbum 'Europa em Sobreimpressão: Llansol e as Dobras da História' (ed. Assírio e Alvim) em que esta questão, entre outras, tem lugar.
(3) Poema publicado pela primeira vez na revista Távola Redonda em Janeiro de 1963; e depois coligido no livro 'Geografia' (ed. Moraes), de 1967.

Postagem de 22 de Outubro de 2011 -Blogue  http://camelecocacola.blogspot.com

domingo, 11 de dezembro de 2011

QUADROS DE BOLSO

Os meus trabalhos para a colectiva Arte Móvel que inaugurou esta sexta, 9 de dezembro no espaço João Pedro Rodrigues, rua Nossa Senhora de Fátima, Porto (ao lado do Labhirinto). Acrílico sobre tela, 13x18cm.
QUADROS E ESCULTURAS DE BOLSO

O projecto “Arte Móvel 2011” vai de encontro à ideia que originou a Exposição "Arte Móvel sobre T-shirts" - Colectiva apresentada nesta Galeria no verão de 2010 – revendo-se por isso com o mesmo intuito de estimular a criação e produção de obras de arte passíveis de se transportar.

Para fechar o ano de 2011, o Espaço João Pedro Rodrigues lançou o repto a mais de trinta artistas de diversas áreas criativas, para desenvolverem trabalhos originais que se enquadrassem em duas grandes vertentes: Quadros de Bolso e Esculturas de Bolso.
Para a mostra dos Quadros de Bolso, contámos com o patrocínio da Papelaria Sousa Ribeiro, a qual disponibilizou três telas por artista (formato 13x18cm).
Aos artistas convidados foi lançado ainda o desafio de criação de obras tridimensionais dando origem à mostra paralela de Esculturas de Bolso, de suportes e técnicas de intervenção livres.
O resultado do trabalho desenvolvido pelo grupo de artistas, culmina na Exposição Colectiva Arte Móvel 2011, a qual poderá visitar a partir de 9 de Dezembro, na Galeria João Pedro Rodrigues. A exposição ficará patente até 18 de Janeiro de 2012.

A Galeria João Pedro Rodrigues aguarda a sua visita!

sábado, 10 de dezembro de 2011

O AMIGO QUE DORME


Que vamos dizer esta noite ao amigo que dorme?
Sobem-nos aos lábios palavras frágeis
de um atroz sofrimento. Vamos olhar para ele,
para os seus lábios inúteis que permanecem silenciosos,
e falar baixinho.


A noite terá o rosto
da antiga dor que todas as tardes renasce
impassível e viva. O silêncio longínquo
sofrerá como uma alma, mudo, no escuro.
Vamos dirigir-nos à noite que respira baixinho.


Ouviremos os instantes a ressumar no escuro
para lá das coisas, na espera ansiosa da manhã,
que aparecerá de repente a imprimir as coisas
no silêncio morto. A luz inútil
descobrirá o rosto estático do dia. Os instantes
calar-se-ão. E as coisas falarão baixinho.


20 de Outubro de 1937

Cesare Pavese

O VÍCIO ABSURDO, &etc, 1990
DIAS DE 1993


Não voltei a encontrá-los - esses tão depressa perdidos....
esses olhos poéticos, esse pálido
rosto....no anoitecer da rua....


Não os encontrei mais - aos adquiridos inteiramente por acaso,
que tão facilmente deixei;
e que depois com ansiedade queria.
Esses olhos poéticos, esse pálido rosto,
aqueles lábios não os encontrei mais.


Konstandinos Kavafis



Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio D'Água, 1994

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Mário Cesariny

You Are Welcome To Elsinore


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras noturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos conosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

"Entre nós e as palavras há perfis ardentes" Mário Cesariny

domingo, 4 de dezembro de 2011

Foto de Lidia Martinez

OH, NÃO AMES DEMASIADO TEMPO

Amada, não ames demasiado tempo;
Eu amei tanto, tanto
E fui passando de moda
Como uma velha canção.

Ao longo desses anos da nossa juventude
Não podíamos distinguir
O nosso pensamento do pensamento alheio
Porque tão unidos éramos apenas um.

Mas em breve, breve instante ela mudou -
Oh, não ames demasiado tempo
Ou irás passando de moda
Como uma velha canção.


W.B. Yeats

UMA ANTOLOGIA, Assírio & Alvim, 1996

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Foto de Mapplethorpe

basta que te dispas até te doeres todo,
retoma-te no tocado, no aceso,
e fica cego e,
por memória do tacto, desfaz os nós,
muitos, muito
atados uns nos outros,
e que inteiramente te alcance o ar, e,
depois de te haver abraçado de alto a baixo, apareça já
inextricável, ar
falado, a fino ouvido: cacofónico,
mas de um modo exacto, acho,
música inquieta, inconjunta, impura,
isso: essa música


Herberto Helder

A FACA NÃO CORTA O FOGO, súmula & inédita, Assírio & Alvim, 2008