sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Foto de Lidia Martinez

ANNA AKHMATOVA

(Sobre os anos 10)


E nenhuma infância cor-de-rosa...
Nem pequeninas sardas, nem ursinhos, nem aneis de cabelo,
Nem tias bondosas, nem tios aterradores, nem mesmo
Amigos entre pequenas pedras do rio.
A mim própria desde o próprio início
O sonho de alguém parecia ou o delírio,
Ou o reflexo em espelho alheio,
Sem nome, sem carne, sem razão.
Já sabia a lista dos crimes
Que devia cometer.
E eis que, andando qual sonâmbula,
Entrei na vida e assustei a vida:
Diante de mim estendia-se como um prado,
Onde outrora passeava Proserpina,
Diante de mim, sem raizes, sem jeito,
Abriram-se portas inesperadas,
E saíam gentes e gritavam:
«Ela chegou, ela por si própria chegou!»
Mas eu olhava-os com espanto
E pensava:«Perderam o juízo!»
E quanto mais me elogiavam,
Quanto mais me admiravam,
Mais medo me dava neste mundo viver
E mais me apetecia despertar,
E sabia que pagaria  muito caro
Na prisão, no túmulo, no manicómio,
Em qualquer lugar onde devem acordar
Os como eu - mas continuava a tortura da felicidade.

4 de Julho de 1955
Tradução do russo selecção e notas de Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev, Cotovia, 1992

Foto de Lidia Martinez

INÊS LEITÃO

Cartas a S.



(carta nº 1, a última)



Afoguei o que restava das nossas memórias num balde água quente. A paciência de um afogamento individual,
quieto
tranquilo
de memória a memória
(uma a uma,
dor a dor)


até ao alinhamento rigoroso de todos esses pequenos cadáveres retirados mortos do balde,
mortos
molhados
quentes
deitados em fila no chão da cozinha até à solenidade do seu enterro.

E estranhamente.


Tão estranhamente, toda a água que escaldava no balde e me ajudava a cada execução por afogamento, não terá sido suficiente para me queimar as mãos.
Não vejo queimaduras. Não restam marcas.



No fundo, é como se nunca tivesse acontecido.