sexta-feira, 8 de agosto de 2008


DOIS POEMAS DE JOÃO BORGES

Longamente A Madrugada

Aqui me levantei. Aqui me deito.
Alguém anda em círculos,
o meu nome impõe-se.
Longamente a madrugada.
Desconhecidos um do outro
chegamos ao mesmo lugar.
De mim terias o corpo,
os lugares e o desejo.
Lentamente a madrugada e a luz dos teus olhos.

Um Corpo Transparente

Se me dissessem da existência da invisibilidade
eu ficaria interessado.
Nada mais prático do que um corpo transparente.
A minha voz irrompe e sinto que nada sei sobre mim.
Aqueço-me na respiração do outro.





Desenho e Poema de

valter hugo mãe



poema das coisas aladas no coração da minha irmã flor

as coisas aladas ensinam o chão. explicam-lhe quanto há entre terra e céu, o caminho livre do voo, a vista elevada de deus. eu vejo anjos e os anjos são das coisas aladas os sonhos mais completos. erguem-se braçados de asas a educar o vento, percursos de sopro que se abrem nas dimensões, e luzem nas nossas cabeças como homens enfim pássaros. como se as árvores pudessem ser casas nossas e nada nos acordasse na força do frio ou da chuva. como se nos cumprimentássemos em pleno ar, seres tão leves atarefados com mais nada. seríamos só pulmões cheios, máquinas de pairar, alegres imprecisões ao alto.

livro de maldições, objecto cardíaco, 2006

SILENCE


Pintura de Graça Martins, acríico s/tela, 2004
POEMA DE ISABEL DE SÁ

Só o lume dos teus beijos rompe
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado.

Conhecemos o ritmo e a sede,
a convulsão do desamparo.
No sentido do corpo, no acerto
desce a força pelos braços
na violenta festa do prazer.

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.

Repetir O Poema, edições Quasi,2005
LOVE COME BACK TO MY ARMS


Graça Martins, acrílico s/tela, 2008, fragmento.

ANDROGINIA

"Masculino-feminino: categorias demasiado grosseiras, e também demasiado simplistas, para poderem satisfazer um fim- de-século atormentado por desejos túrbidos. A rejeição da moral tradicional, passando pela indiferenciação sexual e pelas metamorfoses da imagem da mulher, encontram expressão numa figura legitimada pela tradição estética: o andrógino. Tanto quanto obceca a pintura, em que impera a ambiguidade sexual, este "sexo artístico por excelência"

(Praz, 1977), obceca a literatura da época, do Monsieur Vénus de Rachilde (1889) à Morte em Veneza de Thomas Mann (1912), passando por Le Désir et la poursuite du tout de Frederick Rolfe (1911) e Le Martyre de saint Sébastien de D'Annunzio (1911). Além da carga claramente fantástica, o andrógino, ao remeter para o mito platónico das origens, representa a procura de uma unidade inacessível, o sonho de uma reconciliação entre o paganismo e cristianismo, entre a idealização do ser amado e os imperativos de Eros."

Texto de François Vergne, professor na Universidade de Paris III - Sorbonne Nouvelle.













Espelho e Reflexo de Graça Martins
acrílico s/tela, 70x90cm, 2003

"Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que, mais do que a paz invocada como instrumento de opressão, mais do que a paz dos cemitérios, é a paz, a harmonia das repartições públicas, dos desfiles militares, da concórdia doméstica, das instituições de benemerência. Ao escrever, mato-me e mato. A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida.O poeta deve surpreender-se e surpreender, recusar-se como instituição, fugir da integração, da reforma que até mesmo pessoas e grupos aparentemente progressivos lhe começam subtilmente a tentar impor o mais tarde aos trinta anos. Abaixo o oportunismo, a demagogia, seja a que pretexto for. O poeta deve desconfiar dos aplausos, do êxito e até passar a abominar o que escreveu logo depois de o ter escrito."
Ruy Belo
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"O receio da morte é a fonte da arte"
Ruy Belo