As palavras são seres intranquilos. Mesmo as mais conformadas e mais comuns, dessas que servem, não para dizer, mas para comunicar, têm sobressaltos e caprichos de sentido que nos deixam de repente ainda mais desamparados diante do ameaçador mundo de todos os dias. E palavras desmesuradas e antigas, pelas quais pensámos um dia ser capazes de morrer e envelheceram connosco ou julgávamos mortas, assomam-nos ainda às vezes aos lábios vindas do fundo da memória ( ou, quem sabe?, do fundo do coração) como se nos dissessem: «Sou eu, não me ouves chamar?»
Quando era jovem, gostava da palavra «todavia». Parecia-me haver nela algo alado, simultaneamente som e sentido, que dava alturas poéticas à prosa mais banal e rasteira.
E da palavra «fidelidade», que encontrei intacta num livro de Jorge de Sena emprestado por uma biblioteca itinerante da Gulbenkian. Nas intermináveis noites da adolescência, acreditava então que havia palavras secretas que podiam proteger-me da solidão e da incoincidência, e enchia de versos folhas e folhas à sua procura ou inventava línguas desconhecidas para elas ( ainda hoje, tantos anos depois, escrevo por vezes nessas línguas). Noutras alturas deixava que as minhas palavras falassem sózinhas, repetindo-as alto até perderem sentido ou até se desmoronarem para dentro de si mesmas em novas palavras, (...)
As palavras, porém, gastam-se, como disse Eugénio. E compram-se e vendem-se, mesmo aquelas de que somos mais intimamente feitos. (...)
Temos cada vez menos palavras a cuja sombra nos acolher ou capazes, não só de nos nomear, mas de nos convocar. (...)
Notícias Magazine, 04.JUL.2010