Entra a Rainha.
RAINHA
Uma desgraça nunca vem só!
Uma doutra logo vem no encalço
E logo a seguir: Vossa irmã, Laertes, afogou-se.
LAERTES
Afogada!? Oh! Aonde?
RAINHA
Há um salgueiro à beira de um regato
No cristal da corrente espelhando encanecidas folhas;
Aí foi ela dar com estranhas grinaldas
De rainúnculos, urtigas, margaridas
E das grandes flores purpúreas a que os pastores
De língua solta dão um nome feio
E as nossas raparigas chamam dedos de mortos;
Sua estranha fantástica coroa,
Quebrou-se um tronco invejoso
E ela e seus trofeus floridos
Caíram no regato em pranto!
Enfunaram-se-lhe os vestidos sustendo-a e
Qual nova sereia, cantava velhos cantares,
Pedaços de canções antigas, sempre alheada
De por onde ia ou como criatura
Nativa dessas águas. Mas não foi longe:
Suas vestes empapadas de água
Levaram donzela e seus melodiosos lais
À morte no lodo.
(Quarto acto, Hamlet de Shakespeare, tradução de José Blanc De Portugal, Editorial Presença, 1973
sábado, 1 de janeiro de 2011
Poema publicado no catálogo Metamorfoses de Graça Martins
Ela vem do exterior, arrasta tumultos, ideias, um frágil ramo de árvore. A vida confusa, dividida. Aquilo que é interior e nasce involuntáriamente. Violetas deixadas em água, o desenho incompleto para sempre inútil.
Dizia: Tenho que organizar. Como um esquema. São fotografias. Catalogar. O tempo. Perco-me. Um pormenor, muitas vezes só um pormenor. Não sei como sair de tantos fios.
O instante poético abre caminhos, a fita de veludo prende uma chave. Máscaras de cal quase gesso de tão pouco móveis. Lábios de carmim. Objectos de infância e de morte.
Debruçava-se sobre a imensa folha - redemoinho impossível. A música. O insecto azul-violeta fixo de encontro à parede. A moldura doirada e negra. Um sinal fúnebre. A asa de veludo em relevos aquáticos; o tom insidiosamente devorado pela luz. A bola de cristal ainda na memória.
1981
ISABEL DE SÁ
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