sábado, 16 de janeiro de 2010
DOIS POEMAS DE JOÃO BORGES
TRAVESSA DO CORONEL PACHECO
Da janela de guilhotina
vêem-se os telhados,
as varandas abertas
anunciam a casa perfeita
da família-modelo.
Do lado de cá, é
um quarto de pensão.
Sem artifícios, luz fraca,
pouca mobília.
Podia ficar a viver aqui.
A colcha enrodilhada da
cama quase guarda a
forma dos nossos corpos.
Algumas manchas de esperma
secam enquanto eu vagueio
nu pelo quarto. Lentamente
tudo se esquece que estivemos
aqui. As vozes das pessoas
lá em baixo
chegam em tempo real a esta morte.
Partiste para os teus
afazeres, mas eu demoro-me
um pouco mais. Demoro-me
sempre. O vento agita as
cortinas e gela-me.
Na varanda em frente,
uma menina corre provavelmente
para dizer à mãe que está
ali um homem nu.
O homem nu está morto.
E tu combinaste um encontro
para esta noite, neste quarto,
com o homem nu.
Talvez realmente nos encontremos
e de novo as tuas mãos
não se amedrontem ante o
frio da minha pele.
Um cheiro íntimo teu
nas pontas dos meus dedos
diz que já uma vez
não tiveste medo.
Vou sair. Vou percorrer
o Porto desconcentrado do nosso
potencial encontro. Amar a chuva
como se ama um rosto beijado
pela boca ardente,
sedenta de alegria viva.
Não quero que me relembres,
tu que aprecias um bom drama,
que amanhã logo de manhã
nos despedimos até mais ver.
Vou percorrer a cidade
fixo no infinito.
O teu corpo destruído por dentro
mas suave ao toque
não mais será que uma memória.
Vou percorrer a cidade
nu e morto. Serei feliz
e eterno. Porque ninguém nos rouba
a nudez nem a morte.
Afinal a carta
não veio.
As trevas tomavam
cada vez mais o coração.
As palavras eram parcas
e não poderiam
mudar nada do que
aconteceu.
A tristeza vem.
O tempo passará
sobre o sepulcro em que
deixámos cada beijo
de cada abraço.
A escuridão substitui
a dor.
E o abandono vem.
Ao sentar-me no café
relembro a última vez que
te vi. Foi aqui. O teu rosto alternava
entre a alegria de me reencontrar
e o abismo que a tua vida
sempre foi.
E a memória vem.
Eu olhava-te ainda
com o afecto confuso de sempre.
Que agora se mudou.
E o ódio vem.
O empregado entra com os
sacos do talho, carne crua
e ensanguentada, apertada
dentro do plástico como se
quisesse rompê-lo.
É um vislumbre tão nítido
do meu coração.
E a ameaça vem.
E neste café onde estivemos
a última vez antes do ódio,
a carne será confeccionada,
destruída.
E a morte vem.
Da janela de guilhotina
vêem-se os telhados,
as varandas abertas
anunciam a casa perfeita
da família-modelo.
Do lado de cá, é
um quarto de pensão.
Sem artifícios, luz fraca,
pouca mobília.
Podia ficar a viver aqui.
A colcha enrodilhada da
cama quase guarda a
forma dos nossos corpos.
Algumas manchas de esperma
secam enquanto eu vagueio
nu pelo quarto. Lentamente
tudo se esquece que estivemos
aqui. As vozes das pessoas
lá em baixo
chegam em tempo real a esta morte.
Partiste para os teus
afazeres, mas eu demoro-me
um pouco mais. Demoro-me
sempre. O vento agita as
cortinas e gela-me.
Na varanda em frente,
uma menina corre provavelmente
para dizer à mãe que está
ali um homem nu.
O homem nu está morto.
E tu combinaste um encontro
para esta noite, neste quarto,
com o homem nu.
Talvez realmente nos encontremos
e de novo as tuas mãos
não se amedrontem ante o
frio da minha pele.
Um cheiro íntimo teu
nas pontas dos meus dedos
diz que já uma vez
não tiveste medo.
Vou sair. Vou percorrer
o Porto desconcentrado do nosso
potencial encontro. Amar a chuva
como se ama um rosto beijado
pela boca ardente,
sedenta de alegria viva.
Não quero que me relembres,
tu que aprecias um bom drama,
que amanhã logo de manhã
nos despedimos até mais ver.
Vou percorrer a cidade
fixo no infinito.
O teu corpo destruído por dentro
mas suave ao toque
não mais será que uma memória.
Vou percorrer a cidade
nu e morto. Serei feliz
e eterno. Porque ninguém nos rouba
a nudez nem a morte.
Afinal a carta
não veio.
As trevas tomavam
cada vez mais o coração.
As palavras eram parcas
e não poderiam
mudar nada do que
aconteceu.
A tristeza vem.
O tempo passará
sobre o sepulcro em que
deixámos cada beijo
de cada abraço.
A escuridão substitui
a dor.
E o abandono vem.
Ao sentar-me no café
relembro a última vez que
te vi. Foi aqui. O teu rosto alternava
entre a alegria de me reencontrar
e o abismo que a tua vida
sempre foi.
E a memória vem.
Eu olhava-te ainda
com o afecto confuso de sempre.
Que agora se mudou.
E o ódio vem.
O empregado entra com os
sacos do talho, carne crua
e ensanguentada, apertada
dentro do plástico como se
quisesse rompê-lo.
É um vislumbre tão nítido
do meu coração.
E a ameaça vem.
E neste café onde estivemos
a última vez antes do ódio,
a carne será confeccionada,
destruída.
E a morte vem.
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