sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Foto de Graça Martins



5 POEMAS de

ISABEL DE SÁ

Lembrar-te, é amar os corpos que partilhamos. O que me atrai em ti pertence à sabedoria do texto, à primeira palavra murmurada. O que me atrai no amor é a indeterminação, o impulso inicial. Os rostos que amei na tua ausência foram tocados por ti através da minha pele. Ninguém pode esclarecer a sua alma à margem deste pacto. O nosso amor desfaz o trio.
É na treva que sou obrigada a reconhecer o que escrevo. Sucumbo a uma grave abstracção de pensamento donde chego a sair tocada pela invocação da palavra.


DANCEI CONTIGO

Dancei contigo ao som
de uma canção sentimental
da minha adolescência. No teu pescoço
o perfume, sobre a mesa o desenho
por pintar, a luz do candeeiro,
a caixa de aguarelas Rembrandt.

Releio os poemas
do que nasceu em quarenta e cinco
e, na cassete, a canção chega ao fim.

Dancei contigo beijando-te
o pescoço, a pele bronzeada
do sol deste Verão.


Só o lume dos teus beijos rompe
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado.

Conhecemos o ritmo e a sede,
a convulsão do desamparo.
No sentido do corpo, no acerto
desce a força pelos braços
na violenta festa do prazer.

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.


REALIDADE

Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolaram-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infãncia, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.




CELEBRAÇÃO
Que dizer do surto de afecto unindo o que parecia desligado, não sabemos, Partilhamos a indeterminação, o lume de um instante.
Ela geme porque sente a carícia e a dureza desse caule e abre-se até onde não é mais possível. Penetro em ti o centro donde irradia o prazer, repetes o gesto, violentas o que se esconde nesta noite de Setembro, na celebração da própria vida. Os corpos exigem intimidade recíproca. Há um sentido subterrâneo neste encontro.
Repetir o Poema, colecção Finita Melancolia, Quasi Edições, Famalicão, 2005

5 poemas de

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES


Era como estar só. Mas
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ver.


Estava ali por esse dia.
Diante da janela, além
nos bancos de trás. Sorriu,
o ar ergueu-se em labirintos,
a tarde pousou-lhe na tez.
A cultura tornou-se um conflito
de desalento. No fim da aula
fomos tomar café.

Diante dos outros tocava só
na sua chávena, no maço
dos cigarros, era o seu corpo
que eu queria atingir.

Não és real, eu não existo.
Raizes desertas do auriga.


De novo o perfume se sentava
sereno e moreno no lugar
ao meu lado do carro, ia
pela noite de verão até
à sua casa, crescia
para a porta por abrir.

E voltava-se e ria e pedia
um último beijo com as luzes
nos máximos para ninguém
nos ver. Os pés hesitam no
asfalto, as mãos remordem
a beira da janela.


olhava nos meus ombros
o peso do seu pior adeus.


O cabelo rasgado de carícias, o orvalho da camisa.
Peguei no vidro dos sais, no sabonete
com musgo de linho, no ígneo frasco
de champô à névoa tão tensa
da lâmpada turva. O sândalo,
o bálsamo servo com vapor de mal.

Quando danço contigo as romãs do jardim
ardem no seu sangue. Quando danço contigo
no terror do salão tu és a viagem
mais rápida do meu olhar. Pego num copo
donde te vi beber e esmago-o
como se te apertasse a mão.


Meu amigo, amigo que depois foste de nós dois,
abençoado de rosto e corpo, gardasses-me tu
na convulsão de tábuas de um abraço,
nessa prisão que na altura não entendi.
Seria agora um galardão, uma honra tão alta
na memória, não apenas uma noite,
dessas curvadas pela despedida. Desse-me Deus
de novo, meu amigo, o torreão, a desordem , os teus passos,
esses laços que podia ser eu a desatar. Nada
em toda a extensão e duração do mundo
desejava mais do que dizer-te: foste
quem naufragou em maior temor e amor
a minha, a nossa - é difícil dizer - vida.


Uma luz com um toldo vermelho, colecção forma, Editorial Presença, Lisboa, 1990